António Bagão Félix (sobre Portugal)
Miguel Torga escrevia num dos seus diários: “A olhar a mentira dos salões, esquecemos a verdade das celas”. A citação é feita por António Bagão Félix e funciona como um bom intróito a esta entrevista. Nela se fala dos salões e das celas, apontam-se algumas verdades (apesar da militante omissão de nomes), não se chama mentiroso a ninguém. Fala-se de um país pobre, desalentado, sob protectorado (a expressão também é dele).
Bagão faz parte da entourage – assume que é ouvido por vários membros deste Governo – e aponta o dedo quando pede mais “personalismo” numa economia dominada pelo binómio custo-eficiência. Ou quando diz que “uma coisa é a inflação aumentar meio por cento. Outra coisa é a taxa de desemprego aumentar meio por cento.” É um católico, e não é um liberal.
Foi ministro do Trabalho e da Solidariedade e ministro das Finanças. Dá aulas numa universidade privada, onde nos encontrámos.
É um apaixonado pela botânica. Sabe de alguma planta que se pareça com Portugal?
Sim. Uma árvore, a oliveira. As oliveiras têm uma longevidade acentuada, e Portugal é um país de quase nove séculos. Olhando para ela, não só para as folhas mas para o caule, retorcido: consegue exprimir a mistura que faz parte da nossa idiossincrasia. A paciência, a ternura, a persistência. A fúria, a solidão, a austeridade. A austeridade como valor ético, entenda-se. É ao mesmo tempo gregária e individualista (sabe viver só). É uma árvore que gosta de conviver, que não se zanga com as plantas à volta.
Nada que ver com o eucalipto?
O eucalipto tem uma má fama, em parte injusta. É uma árvore também imponente. Australiana, só existe em Portugal há pouco mais de cem anos. Essa característica – secar tudo à volta, porque há um grande consumo de água e nutrientes – não há em Portugal. A não ser em algumas falsas elites.
Políticos?
Também. Até porque são os mais expostos, e por isso aqueles onde mais rapidamente detectamos a existência de eucaliptos.
Já tinha pensado nesta associação, ou ela ocorreu-lhe na sequência da minha pergunta? A sua resposta foi rápida.
Nunca me tinha ocorrido a associação entre Portugal e uma árvore. Estudo há muitos anos a oliveira e penso que é a árvore que congrega a guerra civil que vai dentro de nós. Curiosamente, não disse sobreiro, apesar de há dias ter saído em Diário da República a resolução que o declara como árvore nacional.
O que, entre outras coisas, tem em vista os índices de exportação da cortiça. Já agora, gosta mais do azeite português, do espanhol ou do grego?
Daquele que me faz menos azia. [riso] Gosto do azeite português, por razões melancolicamente patrióticas.
Permite-se dizer agora, que já passaram muitos anos sobre a sua passagem pelo governo, e apesar da assumida proximidade a um dos partidos que constituem a coligação, tudo o que pensa sobre o país?
Sim. Considero-me uma pessoa bastante livre. Certo ou errado, digo aquilo de que estou convicto. Procuro preservar o valor da autenticidade. Tenho condições para isso. Não pertenço a nenhuma organização político-partidária, não pertenço a nenhuma facção religiosa ou para-religiosa. Não tenho de prestar contas a nenhum patrão. Esta independência tem os seus custos.
Que custos?
Custos de diversa natureza, designadamente financeiros.
Pode concretizar?
Não interessa. Cada um assume a sua maneira de estar na vida. Há pessoas que estão mais perto de centros de decisão e que se insinuam mais do que outras.
Está a dizer que não o convidaram para a EDP?
Não. Também, não aceitaria. Não percebo nada de electricidade. Certamente errei muitas vezes, e estou arrependido de decisões que tomei. Mas só aceitei lugares onde achei que podia ter alguma competência. Não sou caso único, mas pertenço à parcela minoritária de gestores e economistas que chegaram depois [do percurso na] privada a lugares políticos de relevância. Com a maior parte das pessoas em Portugal é exactamente o contrário: a seguir ao exercício dessas funções é que atingiram lugares de topo ao nível gestionário.
Não é disso que está a falar, mas uma coisa que entronca nisso é o problema dos boys.
Boys e girls.
A colocação de pessoas afectas aos partidos em determinados centros decisionais é um dos cancros da vida portuguesa? Falo da promiscuidade entre o poder político e o financeiro e o empresarial.
É. E com metástases perigosas. Ou seja, mesmo quando o Estado deixa de ser detentor de determinadas posições na economia, as posições privadas não deixam de se sentir condicionadas pelo poder político. Há fenómenos de transacção de influências que são mais ou menos implícitos, mais ou menos explícitos, e que condicionam a vida. É uma questão de tempo. Todos os governos caem com maior ou menor intensidade nesse tipo de recidivas.
Porque é que todos caem? Porque é que não se pode arrancar a raiz do problema?
Faz parte da erosão do poder. A pureza da política é mais vincada nos primeiros tempos que nos seguintes. A filtragem desse tipo de situações tende a diminuir com o passar do tempo. Ou por cansaço. Ou por acomodação. Ou por resignação. Ou por cedência às pressões.
Porque é que se cede às pressões? Fica-se com medo de quê, exactamente?
Tenho dificuldade em explicar. Mas este triângulo – política, empresas (ou economia) e comunicação social – consegue tornar as decisões numa espécie de pedra-pomes.
Pedra-pomes?
Sim. Com pouca densidade específica, leve e com alguns buracos ao nível dos valores axiológicos.
Outra característica da pedra-pomes é o seu efeito esfoliante. Logo, provoca erosão.
Claro.
Uma outra boa expressão para isso: os sapos que têm de se engolir.
Todos [engolem]. Eu também engoli os meus. Uns maiores, outros menores. Faz parte da política. Melhor, faz parte da governação. A minha experiência na política é ao nível da governação. Porquê? Porque a governação não é um acto isolado. É um acto que envolve compromissos colegiais – desde logo no conselho de ministros. Temos de encontrar o maior denominador comum para evitar o maior divisor comum. E às vezes, temos de fazer cedências.
Presumo que não queira nomear os sapos que teve de engolir…
Alguns são públicos. Basta uma pesquisa para se saber. Mas não quero falar de pessoas.
Teve de engolir o seu sapo com Cavaco quando integrou o Conselho de Estado? A disputa não foi com Cavaco, mas foi num governo liderado por ele que foi exonerado das funções de vice-governador do Banco de Portugal.
Com o presidente da República, tenho muitos pontos de convergência e tive alguns de divergência. Pensamos em muitos aspectos de maneira igual e num ou noutro de maneira diferente. Sou do Conselho de Estado nomeado pelo presidente da República. Tenho respeito por ele. Não tive que engolir nenhum sapo no exercício das minhas funções [de ministro] por causa de Aníbal Cavaco Silva. Fui secretário de Estado dele.
Disse que mais cedo ou mais tarde os governos acabam por escorregar para a situação da nomeação política. Foi uma surpresa para si que no último mês – porque as nomeações mais sonantes aconteceram no último mês – tivesse dado sinais de cedência?
Não sei se é cedência a palavra certa. Será “situação de stress que provoca a tal erosão”. Cedência tem uma conotação não-positiva. O primeiro-ministro, que considero um político elegante do ponto de vista pessoal, da honestidade, do carácter, laborioso, traduziu mal coisas que eventualmente queria dizer de outra maneira. A questão da pieguice. A tolerância [de ponto] no Carnaval. Em meu entender foram erros, desde logo de comunicação.
E o “custe o que custar”, outra expressão que provocou grandes reacções?
Percebo a ideia do “custe o que custar”. Deixemo-nos de lérias: o país, e o primeiro-ministro em particular, vive numa tensão brutal entre aquilo que acha que se deve fazer e o que é a imposição dos credores. Por outro lado, o Governo tem de perceber uma coisa – e tem sido o erro destes programas apertadíssimos de austeridade: em Portugal e na Grécia (casos bem diferentes) a riqueza nacional resulta muito do consumo. O nosso consumo privado são dois terços do PIB. Quando se faz um programa em que se retrai o consumo público, e bem, mas também o consumo privado – o investimento – está a dar-se desesperança a um país. Do ponto de vista económico, está a retrair-se ainda mais a possibilidade de crescimento. Do ponto de vista social, e isso não tem sido muito referido, está a proletarizar-se a classe média.
Não há retracção ao nível da classe mais rica. É interessante que ontem [segunda-feira] a página de cobertura de um jornal diário trouxesse um BMW, alemão! Ao mesmo tempo que a chanceler Merkel fala da nossa necessidade de disciplina ao nível do consumo.
Temos uma expressão popular que ilustra bem isso: quem se lixa é sempre o mexilhão. Quem se lixa não é a lagosta ou o lavagante.
Mas o mexilhão aqui é uma vasta classe média. Um país não tem – não digo futuro, porque futuro tem sempre – mas uma ideia de esperança se a classe média ficar destroçada. A austeridade tem de ser inteligente. Tem de ser exemplar – esse é o primeiro ponto.
O que quer dizer que tem de ser transversal?
Uma das coisas piores que se pode fazer num programa de austeridade é, ao mesmo tempo que as pessoas vêem as suas pensões reduzidas ou a baixa de salários, aparecerem casos, epifenómenos, que destroem a ideia da coesão que é necessária.
Por exemplo.
Umas remunerações que têm sido tornadas públicas. Não estou a dizer que são justas ou injustas.
Catroga?
É interessante como agora se fala de Catroga e não se falou do seu antecessor que esteve lá seis anos, a ganhar o mesmo. Não queria particularizar. Posso não conhecer a situação toda. Uma coisa que aprendemos com a idade é que temos que ter cautela quando falamos de pessoas. Já me enganei muitas vezes. Umas vezes pensando mal de uma situação que afinal de contas tinha explicação contextualizada, e outras vezes o contrário.
Voltando à análise que estava a fazer…
… falava da necessidade de o sacrifício ser justamente repartido. Que tenha sentido geracional. E tem que ser inteligente; as pessoas têm que o perceber. Talvez seja essa a parte mais criticável do discurso político do governo (entendo, e estou solidário com o Governo na maior parte das suas medidas): a austeridade não é um fim em si mesmo, é um meio. A austeridade é sempre instrumental. As pessoas têm de ver alguma coisa para além da austeridade. O “custe o que custar” podia ser feito de outro modo.
Do que precisamos, para não soçobrar, é de economia e de alento?
Sim. Mas também precisamos de valorizar eticamente alguns valores. Já falámos do valor da exemplaridade. A ética do esforço. Não há nenhum país que possa evoluir deixando degradar a ética do mérito.
Nunca fomos uma meritocracia.
Mas deveríamos ser, e temos de ser. Estamos a regredir, na minha opinião. Não concordo com a ideia de que o país tem de empobrecer. O empobrecimento é o movimento e pressupõe uma finalidade. Este modelo em que produzimos menos do que aquilo que consumimos não é viável. Temos de nos adaptar. Mas esta alteração de escala não significa um maior empobrecimento do país. Significa uma maior exigência de coesão e justiça social. Esta equação é a essência de um programa de futuro e devia ser a essência de um programa de austeridade.
Uma das acusações feitas a este Governo é a de que tenta ser o aluno bem comportado, para que não lhe puxem as orelhas, como acontece à Grécia, e que vai além do estabelecido no acordo assinado pelo governo anterior. “Custe o que custar”, como disse o primeiro-ministro. Concorda com esta tentativa de parecer um aluno exemplar ou pensa que o programa devia ser cumprido de outra maneira?
A questão não é ser o melhor aluno. Perante a troika, a questão é ser o melhor devedor. Uma coisa é o efeito escolar, de demonstração, do aluno que cumpre as regras, que tem uma perspectiva adulta na construção da União Europeia; outra coisa é mostrar que temos condições para satisfazer os nossos compromissos.
A Europa neste momento é uma construção estranhíssima. A única coisa que tem [em comum] é a moeda. Que devia ser a última, e não a primeira. A Europa, que devia ser, e é do ponto de vista fundacional, uma construção solidária, está a transformar-se numa construção egoísta. Já reparou que nenhum país quer ser o outro? Portugal não é a Grécia, a Espanha não é Portugal, a Itália não é a Espanha, a Irlanda não é nenhum dos outros…
E também não parece, apesar de tudo, que Portugal queira ser a Alemanha.
[riso] Alguém dizia com muita piada que a diferença entre os portugueses e os alemães é que os portugueses têm muita qualidade mas falta-lhes a qualidade; os alemães têm poucas qualidades, mas têm a qualidade.
O que se está a fazer com a Grécia é acintoso demais. Trata-se a Grécia e os gregos como se fossem marionetas. Estes líderes europeus não sabem História. Não sabem o que foi o Estado na Grécia que fez ressurgir uma nação depauperada pelo império Otomano, pela ocupação nazi... Era isso que Schuman e De Gasperi sabiam – História. Seguem uma política de um pragmatismo puro e duro. Alguma vez se viu uma chanceler da República da Alemanha falar de uma “autarquia” como a Madeira, generalizando, passando do particular para o geral, a propósito de túneis e auto-estradas? É uma Europa que se permite mudar governos na Grécia ou na Itália. Perdeu-se pudor.
Ou vai caindo as máscaras. A conversa da semana passada entre Vítor Gaspar e Schäuble tornou patente o que já se sabia: verdadeiramente, quem manda é a Alemanha.
Claro, quem manda é a Alemanha.
O acordo com a troika foi negociado por um governo de gestão. Não vou fazer um juízo de quem negociou. Mas negociar um acordo destes, sabendo que um mês depois não se está em funções, não é a mesma coisa que negociar podendo, daí a dois ou três meses, continuar em funções. O acordo falhou em alguns aspectos: no tempo, no montante. Percebo que o primeiro-ministro use a expressão (embora pudesse usar outra) “custe o que custar” para, primeiro, dar sinais de inflexível cumprimento, e depois ter bases para negociar alguma plasticidade.
Se voltarmos à imagem da oliveira, é uma árvore resistente às intempéries. Fica. Outra coisa é dar um bom azeite.
Sem dúvida. Em Portugal sempre foi mais fácil, e até mais barato, comprar o leite do que ter uma vaca. A oliveira é uma árvore de grande austeridade. No princípio da nossa conversa falei da palavra austeridade, não como ela agora é usada. [Assistimos] a uma degenerescência, este uso não tem que ver com o seu valor ético. Quando escolho uma coisa tenho de renunciar a outra. O pobre não consegue ser austero porque não tem por onde escolher. Tem pobreza de escolhas e oportunidades. Mas é preciso regressar à austeridade nesse sentido ético, na família, nas empresas, na política.
Ouço-o e vejo este tempo, em meados de Fevereiro. Colheitas e problema da seca à parte, pergunto como podemos viver segundo esse princípio da austeridade quando o que queremos é estar ao sol?
É a história da cigarra e da formiga, certo? Mas só podemos construir futuro sendo formigas. Sabe porque é que não há outra alternativa? Porque já esgotámos todos os outros modelos. Esgotámos o modelo de consumo público (o Estado consome 50% da nossa riqueza). Acho piada aos que agora falam muito em Keynes. Quando Keynes era vivo, a despesa pública no Reino Unido não chegava a 20% do PIB. Se Keynes tivesse ressuscitado, morria de repente com o susto! O ambiente é de completa globalização. Só podemos lutar na mesma frente. Lutar na mesma frente é sermos melhores, mais capazes, mais produtivos, mais militantes do risco.
Porque é que, tendo feito este diagnóstico repetidamente ao longo da nossa história, somos uma promessa adiada? Nunca demos o passo.
É verdade. Conseguimos, em ambiente próprio, ser formigas. Veja os nichos em que isso acontece, em Portugal e fora de Portugal. Para se ser formiga, a grande revolução é na educação. O verdadeiro ministério da economia é o ministério da educação.
Estava a pensar que pôs as suas filhas no colégio alemão. Se me permite o desvio, que características nos alemães o fizeram preferir essa escola?
Por questões de proximidade de casa, questões laterais. E porque me entusiasmou incutir nas minhas filhas a ideia de um maior rigor e de que nada se consegue sem esforço. Só aprendemos na dificuldade. Não aprendemos no facilitismo e na permissividade. Eu, pelo menos, só aprendo com os meus erros e obstáculos que me surgem. Até porque isso fica depois encravado na memória. Não se volta a repetir.
Não?
Em algumas coisas, não. Só volto a repetir quando a emoção me tolda a razão. Mas isso é porque não sou eu numa situação normal. Há também a perspectiva religiosa, muito presente em mim. Com a idade aprendemos a consciência dos limites, e esta é a maior das sabedorias. Isso dá-nos uma humildade natural, e não artificial, no juízo dos outros, e uma maior exigência em relação a nós próprios. Somos muito fortes na ética da terceira pessoa. O problema da ética é um problema a pôr na primeira pessoa – o que é que eu devo fazer?
Portugal, ao contrário, repetidamente comete o mesmo erro, alguns dos mesmos erros. Dois dos principais: malbaratar oportunidades e ficar sempre aquém do passo que faz a diferença. Apesar da repetição do erro, e da consciência de que aquilo é um erro, não se criam condições para que seja diferente.
O português tem uma relação curiosa com o interdito e a transgressão. Se nos disserem que uma coisa é proibida, gostamos mais de a fazer do que se formos obrigados por lei [a fazê-la]. Esse jogo faz de nós, como povo, adeptos da distracção, do epifenómeno, da espuma. Olhe para o país nas últimas semanas: de que é que falámos de importante?
A narrativa do frio polar distraiu-nos, por uns dias, da crise, que é uma narrativa gasta e depressiva, da qual estamos saturados.
É verdade. Temos uma relação conflituosa com o tempo. A esperança precisa de tempo, e não damos tempo ao tempo. Dantes as pessoas não tinham nada que fazer e matavam o tempo – expressão curiosa. Agora, é o tempo que nos mata. Não paramos para pensar, reflectir. Voltando à política: as questões demográficas, que vão ser a base do enterro ou a sustentação do Estado Social, as questões dos recursos naturais… Não abrem os telejornais, não são notícia de primeira página, nos programas dos partidos aparecem em rodapé.
O que abre o telejornal é a notícia de que metade dos jovens portugueses não tem emprego ou é obrigada a emigrar.
É uma realidade duríssima. Vai a alguns municípios e só há emprego público! Erro enorme das últimas décadas, em especial dos últimos 15, 20 anos: a desertificação [do interior]. O país vive duas desertificações. Ao nível da administração pública vive a desertificação das competências; em vez da ética do mérito, está-se a desestimular as pessoas a serem competentes. O Estado desertificou-se e está refém de interesses particularistas.
Partidários.
Particularistas, nos quais incluo os partidários. A outra situação é que o país abriu auto-estradas, artérias por todo o interior, e fechou postos de correio, centros de saúde, escolas, tribunais. Um velhinho tem de andar de táxi 50 quilómetros para fazer um curativo. É um problema muito grave, porque a economia está dominada pelo utilitarismo do binómio custo-eficiência.
Explique isso.
As coisas só se podem fazer se o binómio custo-eficiência tiver um resultado algebricamente positivo. Por exemplo, tenho uma pequena casa no Alentejo num sítio onde vivem 50, 60 pessoas num raio de alguns quilómetros. Por esse binómio, nunca lá teria chegado a electricidade, porque ela tem um custo superior à sua utilidade em termos económicos. Outro exemplo: sou contra a privatização dos CTT. Uma das razões é porque, se a empresa se torna privada, percebo que tem legitimidade para dizer que não pode haver um posto dos correios na aldeia mais recôndita do país. Simplesmente tem que haver um posto dos correios na aldeia mais recôndita do país! Em nome de outros valores – personalistas, sociais – que não os do custo-eficiência. Até como economista, estou cansado da análise árida, despojada de humanismo, com que às vezes se actua. A sensibilidade é uma forma superior de pensar a economia e a política.
A sua conversa leva-nos aos mínimos que não podem ser tocados. Os números não se podem equiparar por se tratar de realidades distintas, mas a semana passada uma notícia dava conta do prejuízo dos hospitais, na ordem dos 380 milhões de euros. O da Caixa Geral de Depósitos foi de 488 milhões.
Tem razão na sua observação, não tinha pensado nela. Neste momento só há uma medida comum para as questões de Portugal e da Europa: a métrica do euro. O que é um disparate. Uma coisa é um euro numa situação, outra coisa é um euro noutra situação. Um défice de 3% não é o mesmo em Portugal e na Alemanha, porque estamos em estádios de desenvolvimento completamente diferentes, com necessidades diferentes. Estes Pactos de Estabilidade e Crescimento são muito bonitos, mas são instrumentos de papel. Não atendem à diferença. Atendem ao ponto de chegada, que deve ser o mesmo, mas não ao ponto de partida, que não é.
O prejuízo dos hospitais e da Caixa dá força às críticas ao Governo, quando o acusam de ser ultra-liberal?
Não sei o que é ser ultra-liberal. Sei o que é ser liberal.
Qual é a sua definição?
Liberal é a pessoa que aposta sobretudo na iniciativa privada como motor do progresso. Não assenta os alicerces fundamentais do desenvolvimento no Estado mas na iniciativa privada, que produz riqueza, que por sua vez alimenta as funções soberanas do Estado, incluindo a do Estado Social. Devo dizer que não sou liberal. Sou democrata-cristão.
Uma das coisas em que me diferencio de um liberal, e que é um princípio da doutrina social da Igreja: o de que o destino dos bens é universal. Ou seja, sobre qualquer bem incide uma hipoteca social. Se qualquer um de nós tiver uma colecção de Picasso, é dele, mas não a pode destruir. Se tiver terrenos agrícolas que deixo ao abandono, não tenho esse direito enquanto membro da sociedade.
No liberalismo, há confusão de conceitos fundamentais. Legislação laboral: uma coisa é liberalizar despedimentos, a outra é flexibilizar despedimentos. Eu sou pela flexibilização, como instrumento que compatibiliza, tanto quanto possível, a defesa da parte mais fraca com a necessidade de o país avançar. A liberalização é dar a uma das partes mais força do que à outra parte. Desequilibra o próprio sistema.
Já falamos mais detalhadamente sobre as questões laborais. Mas queria retomar um fio que deixámos. Ao longo destes oito meses, o Governo foi ultra-liberal, como o acusam, pecando, aos seus olhos, por não observar princípios democrata-cristãos? Pode fazer uma avaliação?
É minoritária a corrente democrata-cristã no Governo, faz parte de uma coligação. É um Governo de pessoas comuns. Eu gosto disso. São pessoas que têm a sua vida normal, que hesitam, que erram, que acertam, umas mais, outras menos.
Está a pensar no Paulo Macedo?
No Paulo Macedo, no primeiro-ministro, no ministro da Economia, que é uma espécie de bombo da festa e que é um homem comum no bom sentido [da expressão]. Não quero fazer apreciações individuais. Há áreas, aliás, sobre as quais não tenho opinião porque não as domino.
É um Governo que se segue a um Governo de fantasias e de quimeras. Fez bem o contraponto. O contexto é muito difícil. É um governo tutelado. É um certo protectorado, sem dúvida. Se se pudesse corrigir alguma coisa, uma das vertentes a reforçar seria uma perspectiva mais personalista. E é um Governo que tem de construir a esperança, mais. As crises são como os aviões. Toda a gente percebe porque é que o avião cai. O que é preciso é perceber porque é que o avião não cai. O governo tem de explicar porque é que o avião não pode cair e as razões por que ele não deve cair.
Quando diz que o ministro da Economia tem sido, de certa maneira, o bombo da festa, isso passa por uma particular maneira de estar, mas também por aquela ser a área mais debilitada na vida do país.
É um ministério demasiado vasto, na minha opinião. Percebo que é das tais coisas que se fazem para assinalar a diferença, mas que não produzem grandes resultados. O Governo ter 11 ministros ou 14 ministro é a mesma coisa. Não é por aí que se resolvem as coisas. Às vezes, piora-se. Um governante que tem seis secretários de Estado, tem um mini-conselho de ministros, e de áreas tão diversas.
Uma das secretarias de Estado agora alocada no super-ministério de Santos Pereira esteve consigo. O Emprego.
Era meio-ministério.
O problema número um de Portugal é a falta de crescimento económico?, a falta de emprego?
Qualquer finalidade última da acção política têm de ser as pessoas. Portanto, o primeiro grande problema do país é o desemprego. As estatísticas, em si, são falaciosas. Uma coisa é a inflação aumentar meio por cento. Outra coisa é a taxa de desemprego aumentar meio por cento. Aqui, estamos a falar de pessoas, na outra estamos a falar de consumo. A estatística foi alcandorada a mãe de todas as análises. Respeito, mas detrás do biombo da estatística estão as pessoas. Era neste sentido que há pouco usava a palavra “personalização”.
A aposta devia ser mais por aí?
Sem dúvida. Reconheço que não é fácil. É mais fácil falar, que é a posição em que estou.
Se tivesse esta pasta em mão, a sua prioridade seria…
A minha prioridade seria aumentar a possibilidade de emprego, indiscutivelmente. Para isso é preciso haver economia, crescimento, empresas, e ter políticas sociais (o Estado Social pode ter uma função, não substantiva, marginal, mas com algum peso). Voltamos ao acordo com a troika: se no montante inicial tivesse havido mais 20 a 25 mil milhões de euros para substituir o crédito que os bancos dão às empresas públicas, então os bancos teriam dinheiro para as empresas privadas, para as pequenas e médias empresas. O país vive com duas brutais tenazes. A tenaz da dívida e a tenaz monetária, do crédito. As duas estrangulam.
É a favor de uma renegociação da dívida para abrir este aperto das tenazes?
Sou. E acho que mais tarde ou mais cedo se vai fazer. Agora, estou do lado do Governo no sentido em que este não é o momento certo para isto. Temos, primeiro, que ter uma avaliação que nos diferencie, nomeadamente da Grécia, e que prove que estamos a cumprir do ponto de vista técnico e político [aquilo a que nos obrigámos].
A troika está cá esta semana. Depois desta avaliação, crê ser possível fazer essa renegociação?
Depois desta avaliação, não. Antes do final do ano, creio, esta questão vai colocar-se. Todos olham para a Grécia, não por causa do acordo estabelecido no parlamento grego, mas no parlamento alemão e no finlandês... Vamos estar em banho-maria.
Qual é a sua opinião sobre o Código do Trabalho recentemente alterado?
Permita-me dizer, embora tenha sido responsável político por isso, que [o Código em que trabalhei] foi um passo bom. Codificou-se, arejou-se, derrubou-se o Muro de Berlim laboral (eram matérias intocáveis). Isso permite com mais facilidade tratarem-se agora estas questões. O Código do Trabalho, seja ele qual for, não é uma peça de museu. Como todas as outras, a legislação laboral tem de se adaptar aos novos desafios. O que foi decidido pela Concertação Social e pelo Governo, obedecendo ao que está no acordo com a troika, parece-me razoável. Aprecio muito a questão da maior flexibilidade da gestão do trabalho, do tempo de horas, etc. Quanto aos despedimentos, hesito. Acho que a prioridade não é flexibilizar os despedimentos, e muito menos liberalizá-los. Esse é um álibi para muitos empresários. Quando se diz que o país não progride porque os despedimentos não são liberalizados… Bom seria que o grande problema do país fosse tornar os despedimentos mais baratos. Era um clique! Sou favorável à flexibilização, não dos despedimentos, mas da contratação. O grande estrangulamento, sobretudo para os jovens, é não haver oportunidade de entrar no mercado de trabalho. Se um empresário quiser contratar uma pessoa por cinco anos, sete anos, porque é que não há-de fazê-lo? Não é o modelo ideal, mas é aquele que melhor se adapta às variáveis em jogo.
É ouvido por membros do Governo?
Sou, por alguns ministros. Por afinidades políticas e pessoais – o Paulo Portas, o Mota Soares. Ou porque nos encontrámos profissionalmente no caminho – o ministro da Saúde, que me substituiu na Médis.
E depois foi seu director-geral dos impostos.
O ministro Álvaro Santos Pereira, não conhecia pessoalmente, mas tive vários contactos. É uma pessoa encantadora e de grande abertura de espírito. O primeiro-ministro. Se puder ajudar em alguma coisa, estou disponível. Às vezes a minha opinião não coincide com a do Governo – caso da Taxa Social Única, a transferência de fundos das pensões da banca, determinados aspectos técnicos. Não temos de coincidir.
Não sei se acontece com a oliveira haver uns anos em que não dá azeitona?
Dá sempre. Há anos em que dá menos. A recuperação depende do sol, da água, também depende da idade. O ano passado foi um ano óptimo em termos de azeitona. Este ano não sei como vai ser.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012