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Anabela Mota Ribeiro

António de Almeida

10.08.15

E agora, António? Agora, ele tem 71 anos e já plantou árvores e fez filhos e escreveu um livro. Agora ele sabe que só fica enquanto dele tiverem memória. Que tem raízes e que deixa descendentes. As coisas que são do senso comum.

O incomum: a barba que fazia ao pai, carinhosamente, nas últimas semanas de vida, com a intenção de pedir-lhe perdão. Dizer que o seu cadastro social não é impoluto. Fazer da coragem uma arma e saber que, ainda assim, não é um suicida e que mede o alcance das palavras. Descrever o deserto, as mãos sujas da gasolina. Transportar-nos para Londres e para a perna de galinha que metia no forno.  A sobremesa de Natal de um menino pobre. O primeiro licenciado da família. O que não ligou nada aos filhos porque estava a pavonear o cargo e a competência. O que faz mea culpa.

Para já, é ele que faz a barba. Na esperança de que um dia o filho lha faça a ele.

António de Almeida, chairman da EDP. Primeiro, encontrámo-nos num almoço. Ele queria ser simpático e perceber ao que eu ia. A seguir, foi a entrevista propriamente dita numa manhã de confissões. Leiam-nas a seguir.

  

Disse-me que o período mais feliz da sua vida foi aquele em que viveu em Londres. Porquê?

Foram cinco anos em que tive uma grande tranquilidade pessoal e profissional. Seguiu-se a um período de grande agitação da EDP e a uma doença grave que debelei.

 

Descreva-me a sua vida lá.

Tive tempo para gozar uma cidade encantadora. Caminhar, visitar, apreciar a arquitectura. Cumpria, durante a semana, este regime: levantava-me cedo, quando estava sozinho preparava eu o pequeno-almoço e apanhava o metropolitano para a City.

 

Andar de metro em Londres não é o mesmo que em Lisboa. Mesmo assim, como é que foi voltar a usar transportes públicos depois de anos a andar de motorista?

Foi uma experiência útil. No princípio, alguma dificuldade com os apertos – queria entrar no metropolitano e não conseguia porque já estava cheio. Depois aprendi que horários eram os mais adequados. Habituei-me à leitura durante o trajecto, que era relativamente longo.

 

Esperar-se-ia que um administrador de um banco, mesmo em Londres, onde toda a gente usa o metro, optasse por um motorista… Porque é que ia trabalhar de metro?

Em Londres, a cultura do ponto de vista empresarial é radicalmente diferente da de Portugal. No BERD, só o presidente tinha automóvel. Todos os administradores usavam metropolitano; os que queriam usar viatura própria e estacionavam no parque do banco, pagavam um fee mensal elevadíssimo.

 

No outro dia, li num jornal inglês que a mulher do Príncipe Carlos, Camila, foi para o aeroporto de comboio, no Gatwick Express. E depois li noutro que o Tony Blair não tinha dinheiro para pagar o bilhete do Heathrow Express. Cá, seria bizarro encontrar a mulher do presidente ou o antigo primeiro-ministro nos transportes públicos. Mas o que quero é saber o que significou para si, um homem de origens humildes, voltar ao anonimato.

Tive motorista pela primeira vez quando fui administrador do Instituto de Crédito de Moçambique. Tinha 34 anos. Era aquela fase da vida em que ficamos deslumbrados por ser administradores de um banco e temos carro com motorista e somos convidados para os melhores restaurantes e viajamos em primeira classe. Não seria honesto consigo se não dissesse que esse deslumbramento assalta todos os jovens quadros quando atingem estes lugares.

 

Teve sempre motorista, então.

Sim. Quebrei esse ciclo em 1991 quando fui despedido da Presidência da União de Bancos Portugueses. Até 96, tinha o meu automóvel particular, era eu que punha ar nos pneus, que o lavava. Aprendi a saber quanto custam os combustíveis, quanto custa sujar as mãos na bomba da gasolina. Voltei um pouco às minhas origens. Isso ajudou-me, depois, em Londres, a andar de autocarro e metropolitano.

 

Voltemos a Londres, ao homem que procura as melhores carruagens do metro para ler.

Aprendi o gozo da solidão e do silêncio. Aproveitei bem os fins-de-semana: calçava as sapatilhas, vestia o fato de treino e andava km a pé. No Verão, dormi umas boas sonecas debaixo das árvores do Hyde Park. Tive uma vida simples. Fazia compras no [supermercado] Waitrose.

 

Há quanto tempo não sabia o preço dos iogurtes? Há quanto tempo não sabia o que tinha na despensa ou no frigorífico?

Se calhar, nunca. Aprendi em Londres o preço das coisas, a fazer saladas, a meter uma perna de galinha no micro-ondas. Aprendi a ir à lavandaria, sei tratar da minha roupa.

 

É um homem rico, já na altura era um homem rico. Podia com certeza levar uma governanta daqui, contratar um butler lá…

Sabe, há uma ideia um pouco errada do que era a remuneração de um administrador do BERD…

 

Quando digo que é rico, estou a pensar no que está para trás, nas indemnizações.

Só tive indemnização quando saí da EDP e apliquei-a totalmente na compra do apartamento onde vivo. No BERD ganhava 150 mil euros por ano. Em moeda antiga, ganhava 2500 contos por mês, 12 meses, e pagava 4000 euros por mês de renda de casa.

 

Nesse tempo, ficaram famosas as crónicas que escrevia para jornais portuguesas – London Smiles. Mais que tudo, pareciam um acerto de contas com o país…

Numa primeira fase, as crónicas foram um acerto de contas. Apesar de reconhecer que o governo foi simpático em ter-me convidado para esta experiência, tive dificuldade em esconder que a maneira como saí da EDP foi traumática. Eu tinha feito a privatização da EDP – a primeira fase foi de grande sucesso. Fiz a operação debilitado – tinha um cancro e fazia tratamentos todos os dias muito penosos para me poder aguentar. Fui operado em Bruxelas, onde estive bastante tempo internado, e pouco depois de regressar o Governo começou a procurar uma pessoa para me substituiu.

 

Saiu com indemnização.

Saí, indemnizaram-me, convidaram-me para o BERD, não tenho razões de queixa. Mas a forma como saí, depois de uma operação de grande sucesso e de uma situação de saúde que era conhecida, deixou marcas. E nos primeiros artigos, acertei contas com esse tratamento que considerei inadequado. Acertei contas com pessoas que se portaram de maneira menos correcta. Mas eu também tenho, no meu passivo, atitudes que não foram as mais correctas…

 

É surpreendente que diga isso. Que nem sempre foi exemplar. O Nelson Rodrigues diz que todo o homem tem o seu momento de canalhice…

Tenho na minha vida atitudes das quais me orgulho e outras de que tenho vergonha – do ponto de vista pessoal, familiar, profissional. Se calhar, na altura, tentei encontrar desculpas para o que fiz; mas hoje, os anos passaram e reconheço que não foram as mais adequadas. 

 

Consegue perceber porque é que foi canalha? Porque é que sucumbiu? Apesar de denegar para si mesmo e encontrar justificações… O que fica, nesse encontro a sós com o espelho?

De uma maneira geral, é aquilo que marca as pessoas que têm sucesso: a vaidade, o gosto pelo poder, alguma ambição e um sentimento de superioridade em relação aos outros. Esta mistura é explosiva e no relacionamento com amigos, subordinados e colegas conduz-nos a práticas que nos envergonham. Faz parte da natureza humana. Se fizer esta entrevista a outras pessoas, se tiverem coragem, provavelmente a resposta não será diferente da minha.

 

Em que momento foi capaz de se olhar ao espelho desta maneira?

Se me tivesse entrevistado aos 50 anos, não lhe respondia assim. Como me está a entrevistar aos 71, já lhe respondo assim. A grande viragem da minha vida foi a doença. No dia em que fui visitar o meu médico e ele me disse que tinha um cancro na próstata, aprendi que a vida é mesmo finita e que as coisas têm uma importância relativa. Estava convencido de que era imune a qualquer doença – tinha aquele sentimento, muito típico, de que os aviões só caem quando os outros viajam.

 

Qual foi a sua reacção?

Entrei no carro e chorei, chorei, chorei. Tinha 59 anos. Tinha terminado um ciclo da minha vida e começado outro.

 

Teve muito medo de morrer?

Tive. Tive e tenho. Gosto muito da vida. Ainda hoje me custa a ideia de que vou deixar de ter a companhia de pessoas, mais do que de coisas materiais. De ouro, tenho a aliança, tenho um relógio, e… Não ligo a coisas materiais.

 

Esse desprendimento resultou também da doença? Antes disso, guindado pela ambição e pela sede de poder, sonhava com um conforto financeiro? Uma recompensa de um menino que nasceu pobre.

O dinheiro era importante, era. Vivi em África, comia banana como sobremesa todo o ano e no Natal tinha direito a comer maçã ou pêra. O meu pai era operário dos Caminhos-de-ferro; tinha de trabalhar de noite para poder manter três filhos a estudar em Portugal. Quando vim estudar para a Universidade a roupa que trouxe foi feita pela minha mãe. Por isso, quando fui convidado a ser administrador da banca aos 34 anos, e comecei a ter automóvel, motorista, secretária, gabinete, um bom ordenado, quando almocei no Ritz com o Daniel Barbosa ou fui recebido em Lisboa pelo ministro do Ultramar, embriaguei-me do ponto de vista material.

 

Partilhava isso com os seus pais? Eles sentiam-se orgulhosos, vingados até, pelo seu sucesso?

Os meus pais sentiam um enorme orgulho. Fui o primeiro licenciado na família. Ainda em Moçambique, fui convidado para administrador não executivo dos Caminhos-de-ferro – isso deu-lhe um grande orgulho. Depois do 25 de Abril fui convidado para Governador do Banco de Angola e depois fui para o Governo, como Secretário de Estado. Tudo isso o encheu de orgulho. Não partilhei com os meus pais, e é um peso que tenho. Na embriaguez da carreira, do sucesso, do poder, fiz-lhes muito pouca companhia.

 

Os seus pais assistiram ao seu sucesso?

O meu pai faleceu há 20 anos e a minha mãe há 10. Infelizmente não os fiz partilhar o meu sucesso. Se calhar os meus filhos vão fazer-me o mesmo. É uma dor muito grande que a gente tem depois de os pais morrerem: não lhes ter dado… um bocadinho.

 

Fiquei comovida, no seu livro, com a descrição que faz da relação com o seu pai enquanto “um cancro o levava em meses”. Visitava-o e fazia-lhe a barba. De que é que vale o dinheiro todo na doença…

Aquele gesto de pegar no pincel, pôr-lhe o sabão na cara e fazer-lhe a barba, nas últimas semanas de vida, pretende redimir-me de uma falta de companhia. No fundo, ele tinha enfermeiros para lhe fazer isso…

 

O que é que deixava de fazer para ir fazer a barba ao seu pai?

Era presidente da União de Bancos, saía de Lisboa ou do Porto onde estava e ia à casa de saúde de Viseu. Fazer a barba era um modo de lhe pedir perdão. Por exemplo, um dos sonhos do meu pai era ir a Paris. Gostava de ver o túmulo de Napoleão, a Torre Eiffel. A União de Bancos Portugueses tinha um banco em Paris, fui a Paris centenas de vezes… O meu pai morreu sem eu ter tido a generosidade de sacrificar um fim-de-semana para lhe dar esse prazer. 

 

O seu filho far-lhe-ia a barba?

Acho que sim. Ou por outra: vivo na convicção que sim. Se isso não sucedesse, seria para mim uma morte muito deprimente e dolorosa.

 

Philip Roth é um autor de que gosta. Em “Património”, conta como tinha limpo a casa de banho depois de o pai, doente, a ter usado. Temos ali o grande escritor, a grande figura, meticulosamente empenhado, amorosamente empenhado em qualquer coisa que não imaginaríamos que pudesse fazer. Que património lhe deixou o seu pai?

O meu pai, do ponto de vista material, não me deixou nada. Tenho uma fotografia dele quando tocava música na banda do Clube Ferroviário de Moçambique com as medalhas que ganhou. E da minha mãe tenho um gato de cristal. Mas recebi deles uma coisa muito importante: do meu pai, a coragem de um homem que, sendo caiador em Celorico, em 37, quando eu nasci, disse: o nosso filho vai ficar igual a nós, eu tenho que sair. E meteu-se num barco e foi para Angola e depois Moçambique. Da minha mãe, recebi uma capacidade de trabalho e uma determinação espectacular. Deram-me o exemplo. E deram-me a ferramenta para poder singrar na vida: os estudos.

 

O que deixa aos seus filhos?

Não deixo um património tão bom quanto aquele que o meu pai me deixou. Julgo que o meu pai não tinha grandes coisas que lhe perturbassem a consciência. Eu tenho – e os meus filhos acompanharam-nas. Dei-lhes formação, e em termos materiais deixo mais do que uma fotografia. Medalhas, não, porque nunca recebi nenhuma. Mas deixo esta atitude perante a vida: de combate, de frontalidade, e uma capacidade de trabalho invulgar. 

 

Se recebesse uma medalha, ela iria premiar o quê? A capacidade de trabalho?

A capacidade de trabalho e a frontalidade. Eu resisto mal, muito mal, a pactuar com aquilo que acho que não está certo. Isso tem-me trazido grandes dissabores. Numa sociedade como a portuguesa, em que os lugares bons são escassos, as pessoas têm uma atitude artificial no sentido de manterem os lugares. Tenho muita dificuldade em pactuar com isso. Os políticos portugueses, os empresários portugueses, os gestores portugueses não gostam desta atitude. Isto talvez justifique o facto de ter ocupado tantos lugares e, sempre que fico de fora, nunca sou convidado por privados. É sempre o Estado a convidar-me. 

 

É corajoso?

Relativamente. Sou consciente, medianamente inteligente e pondero a coragem de acordo com o ambiente em que vivo. Não sou um suicida. Mesmo quando sou frontal, sei estabelecer os limites da minha frontalidade. Isso nota-se na minha escrita. Se eu pudesse publicar o que escrevo antes de corrigir… Faço-lhes a barba, também. Não a barba do peso na consciência. Mas a barba da inteligência.

 

O que é que faz de si um vencedor? Nasceu num casebre e muito cedo foi administrador de um banco na terra onde cresceu – isto contrariando o prognóstico social, enfrentando um sistema classista. De que ferramentas dispôs para singrar?

Quando conseguimos singrar, há sempre uma dose de sorte e azar que persegue o humano.

 

A sorte protege os audazes, como diz o ditado.

Quando acabei o curso e acabei o serviço militar fui para Moçambique como funcionário público, com o ordenadão de 9000 escudos. A minha família achava que eu estava arrumado. Eu era um tipo importante.

 

A parte do reconhecimento social também era muito importante?

Sim. Mas percebi que aquilo não me levava a lado nenhum e tive a coragem de me despedir ao fim de dois anos. Não quis a licença sem vencimento que me propuseram – porque iria para a privada sempre a pensar nesta segurança. A juntar a este gesto, as minhas qualidades de trabalho e determinação fizeram com que, entre 65 e 71, fosse notado. O governo queria um indivíduo novo e convidou-me para administrador. A partir daí, a sorte protegeu-me. A sorte e algumas pessoas. Quando veio o 25 de Abril e vim para Portugal, onde ninguém me conhecia, dificilmente eu seria governador do Banco de Angola se o ministro da altura não fosse o meu querido amigo António Almeida Santos. 

 

É uma coisa que o persegue: ser um protegé do Almeida Santos. O “sobrinho”. Na boca dos seus inimigos, é o homem de mão do Almeida Santos. Falemos desta relação. Como é que se conheceram?

Conheci o Almeida Santos em Moçambique. Ele era muito amigo do pai de um grande amigo meu e trocávamos impressões. Reconhecia nele um homem de grande cultura, ouvia-o com atenção, e ele reconhecia em mim algumas ideias, a frontalidade. Nasceu uma grande empatia. Quando vim para Portugal, passámos a encontrar-nos muito.

 

Incomoda-o que digam que é protegido do Almeida Santos porque isso ofende o seu mérito, o brio.

Os meus sucessos e os meus insucessos devem-se aquilo que fiz, ao meu trabalho e ao meu esforço. Quando fui convidado para o Instituto de Crédito de Moçambique foi o regime anterior no que me convidou – e os oposicionistas não tinham influência. Admito que ele me tenha recomendado para o Banco de Angola; mas depois, foi o meu trabalho que levou Nobre da Costa a convidar-me para o seu governo e Mota Pinto para o governo dele.

 

Quando almoçam, falam sobre quê?

Falamos muito da família. Falamos muito de política, do Governo, do que poderá vir a acontecer. O Almeida Santos, desde que o conheço, está sempre envolvido em negócios – está-lhe na massa do sangue; uma parte da conversa tem que ver com os projectos nos quais está envolvido. Aí dou-lhe algum conselho, em coisas políticas dá-me ele a mim. 

 

Outra relação muito antiga e importante é com Jorge Jardim Gonçalves.

Fomos colegas no tempo da faculdade, do mesmo lar. É uma relação cimentada no tempo de estudantes.

 

É uma relação entre dois competidores? Fiquei com essa impressão depois de ler o seu livro.

Nunca competi com ele, não sei se alguma vez ele pensou que eu era competidor dele. Acho que não. Ele foi presidente do Banco Português do Atlântico quando eu estive no governo e o convidei. E de repente, com a criação do BCP aconteceu o mesmo que com o preço dos combustíveis: guindou-se a um nível de notoriedade, influência e importância muito altos. Este gap nunca se verificou na minha relação com Almeida Santos, que podia ser ministro, vice-primeiro ministro… Vamos almoçar, se é tempo de cerejas começamos o almoço com uma boa pratada de cerejas.

 

Uma relação entre iguais.

A minha relação com o Jardim Gonçalves era uma relação entre iguais e de repente ele catapultou-se para uma posição de grande importância. O Almeida Santos foi sempre solidário comigo, mesmo quando não era necessário. Quando saí da EDP há dez anos, foi praticamente a única pessoa que veio a público dar a cara contestando aquela decisão. Já os banqueiros, o Jardim Gonçalves, apesar de ser um grande amigo, não foi capaz de assumir publicamente a mesma posição.

 

Isso custou-lhe, emocionalmente?

Custou-me muito. Eu saí da União de Bancos em 91, fiquei no deserto muito tempo. Fiquei no deserto mesmo. Tive que fazer programas na Rádio Capital, o Nicolau Santos teve que me convidar para escrever no Diário Económico…

 

Precisava desse dinheiro?

Precisava. Eu saí da União de Bancos Portugueses, fui para o Banco de Portugal e o meu rendimento eram 200 contos por mês. Tive que comprar carro, deixei de ter telemóvel, secretária, cartão de crédito… Fiquei pendurado. Digo-lhe que recebi ontem a comunicação da reforma da Segurança Social: são 990 euros. E recebo do Banco de Portugal 2000 euros por mês. Portanto, quando eu sair da EDP vou viver com 2000 e poucos euros líquidos.

 

E olhava para o seu amigo Jardim, que viajava, e viaja, num avião privado…

Era amigo e é. Eu não tenho inveja de ninguém.

 

Porque é que acha que o Jardim Gonçalves não lhe deu a mão quando esteve no deserto?

Essa é uma pergunta que terá de lhe fazer a ele. Posso adiantar hipóteses – uma vez que nunca lhe perguntei, nem teria de perguntar, porque ele não tinha obrigação de deitar a mão. Quando saí da União de Bancos, estava plenamente convencido de que, com o currículo que tinha, que saía num dia e que no dia seguinte me estavam a convidar para alguma coisa. O grande choque da minha vida foi ter visto passar as semanas e os meses e os anos, e, de facto…

 

O telefone não tocava.

Chocou-me. Esperava que uma pessoa na posição do engenheiro Jardim Gonçalves, pelo menos, me faria uma proposta – mesmo que eu não aceitasse. E isso falhou. Saí da União de Bancos em conflito com o governo de Cavaco Silva – na altura em que Cavaco teve a segunda maioria. Sobretudo dei uma entrevista ao “Público” fazendo na primeira página afirmações destemperadas… Perguntavam-me sobre o Ministro das Finanças e eu disse: “Esse Ministro não existe”.

 

Tratava-se de Miguel Beleza.

Portanto, eu compreendo que um presidente da banca, que está muito dependente do Ministro das Finanças, aparece um indivíduo que diz que o ministro das Finanças não existe… Convidá-lo, pode levantar um mal-estar. Admito que tenha sido um raciocínio estratégico do grupo que geria. Mas já lá vai, passaram 17 anos. E nestes 17 anos, nomeadamente nos últimos dois, sucederam muitas coisas… Gostaria de dizer também que ele me ajudou noutras alturas. Sobretudo quando estive doente, ele foi um irmão. Pôs o seu médico pessoal à minha disposição. Vale muito mais esse activo que um pequeno passivo – o de 91.

 

Teve um cancro na próstata. Que ameaça os homens na sua virilidade.

Teve que confessar que foi muito preocupante. Sabia que após a operação a probabilidade de ficar impotente sexualmente situa-se na ordem dos 80%; preocupou-me de tal maneira que foi a primeira pergunta que fiz quando acordei.

 

A sua vida mudaria?

Como tive a sorte de ficar nos 20%, tenho dificuldade em responder.

 

Estamos novamente no Philip Roth, no grande tema do envelhecimento. Mas os homens, regra geral, têm dificuldade em falar disto. Como se os diminuísse socialmente. Como se falar de incontinência urinária ou de impotência fosse impróprio. Porque é que o senhor fala?

Eu falo porque faço parte de uma geração em que todos esses temas eram tabu, no relacionamento com os pais ou professores. Tudo o que tinha a ver com o aparelho sexual era tabu. Nos meus 12, 13 anos chegou-me às mãos um livro técnico com imagens dos órgãos sexuais e o meu pai quis dar-me uma tareia!

 

Na sua amizade com Jardim Gonçalves e Almeida Santos, cabem estas conversas? Não é fácil imaginá-lo a falar com o engenheiro Jardim de impotência…

Consigo [falar disto] com os dois. Com o Almeida Santos, apesar de ele ser mais velho, sempre falámos destas questões com grande à vontade. Com o Jardim Gonçalves é mais difícil, mas admito que, entre as pessoas que lhe são próximas, sou capaz de ser o único que lhe fala destes temas e de outros semelhantes… Falo-lhe das dificuldades por que passei e dos aditivos que hoje existem que permitem ultrapassar estas pseudo-deficiências. Ele reage sempre com uma gargalhada, com humor.

 

Confesse que faz isso para o chocar… Para saber até onde ele se diverte…

10% é informação, 90 % é provocação.

 

Foi também por isso que no seu livro publicou uma fotografia onde todos aparecem de roupão? Ver o engenheiro Jardim de roupão é tão surpreendente quanto ver a Rainha de Inglaterra agarrada a uma botija de água quente!

Quando escrevi o livro ele estava no auge do seu prestígio. Vi políticos, presidentes, gente importante, todos muito solícitos com o Jardim. Pus a fotografia para mostrar que ele é tal e qual como nós. Que nos tratemos com menos formalismo e com mais humanismo. O objectivo não foi, de maneira nenhuma, degradar a figura dele. Tenho muita amizade e respeito por ele, mas é importante que as pessoas percebam que o grande banqueiro também veste pijama.

 

De que falavam quando partilharam o lar?

Falámos muito dos diferentes cursos. Ele tinha já uma propensão missionária. Tentava orientar-nos para aquilo que achava ser o bom caminho. Fui sempre arredio disso. Preocupava-me mais com desporto, que praticava. Com o Jardim não, mas com outros colegas falava das raparigas mais bonitas.

 

Entre rapazes, como é que resultava esta coisa de um ser baixo e o outro ser, comparativamente, um gigante, e atlético? Tinham atitudes opostas em relação ao corpo…

Nunca jogámos um com o outro. Nunca tivemos disputas em que a pujança física entrasse. Os nossos encontros eram muito à hora de almoço, eram conversas.

 

Como é que saiu tão alto?

O meu pai era um bocadinho mais baixo do que eu, e o meu filho é mais alto do que eu. Não sei se o meu neto vai chegar aos dois metros. Gosto de ser alto. Notei isso quando fui oficial de marinha e vesti a primeira farda: tirei uma fotografia que tenho hoje exposta em casa. Gosto de me ver alto e elegante.

 

A farda, ainda a tem?

Infelizmente, não. Levei-a para Moçambique em 1963e o empregado encantou-se com as fardas e um dia não resistiu, levou-as e fugiu! Espero que tenha feito um grande sucesso na terra para onde foi, no interior de Moçambique, fardado de oficial da marinha! Fugiu e foi a única coisa que levou, a farda branca e a azul.

 

Até que momento o perseguiu o peso de ser um rapaz pobre que singra na vida?

Nunca tive esse trauma. Talvez o tenha sentido mais no liceu, em Lourenço Marques. Na faculdade, os que viviam em lares tinham situações muito semelhantes à minha. Eram filhos de operários, pequenos comerciantes, vinham do Ultramar. Os filhos de fazendeiros não iam para os lares. E, quando voltei para África, foi com o chorudo ordenado de nove mil escudos – passei a fazer parte da burguesia. Por isso não tive esse problema.

 

Fez-me em África, singrou em África, mas diz de si que é um beirão.

Vivi numa comunidade de celoricenses e acompanhei a vida da terra, com o meu pai, com os meus primos, na comida, nas histórias. Nunca cortei o cordão com Celorico. Quando regressei a Moçambique, casado, licenciado, bem, senti-me moçambicano. Vi que tinha futuro naquela terra. Houve uma hesitação, pensei ficar ali para sempre. O 25 de Abril ajudou a resolver tudo. Toda a perturbação – de me considerarem um colonialista… Coitado de mim, fui para lá com dois anos, o meu pai era operário… colonialista! Começaram a chamar-me fascista e isso facilitou o regresso a Portugal. Consciencializei-me que não era ali que estava a minha vida. Apaguei África, não tenho nostalgia de África. Aqui reencontrei-me com a terra e a cultura. E singrei, sem descriminação. Sou beirão: no feitio, na teimosia, na persistência.

 

O seu pai tinha o sonho de ir a Paris. Que sonho tem por cumprir?

Bem, eu já fiz quase tudo: já plantei árvores, já escrevi um livro, já fiz filhos. Do ponto de vista da carreira, já atingi o topo, do ponto de vista da saúde, tirando aquele acidente, tem sido impecável. Não tenho nenhum desejo nem nada que me crie ansiedade. Mas gostava de ir à Austrália!

 

Sozinho?

Não. Viajo sempre com a minha mulher.

 

Não falámos de mulheres nesta entrevista. Nem da sua mãe, nem da sua mulher, nem da sua filha.

São pessoas completamente diferentes. Sou uma fotocópia do feitio da minha mãe. A minha mãe não se ficava, respondia, era uma trabalhadora incansável. Não há dia nenhum que não os recorde [os pais] e não utilize frases deles.

 

Qual é a frase que mais cita da sua mãe?

Quando nós nos portávamos muito mal – e eu costumo dizer isso aos meus netos – dizia: “Estão a portar-se como uns húngrios”. Não húngaros, mas húngrios. Devia haver a ideia que os ciganos vinham dessa zona. Da minha mulher, que é muito serena, sobretudo elogio o apoio que me deu. Ela tolerou tudo na minha vida profissional. Deu uma grande ajuda na educação dos filhos – que eu não liguei nenhuma aos filhos, só pensava na minha carreira; e ter tido a grandeza de alma para perdoar alguns desvios do caminho matrimonial. A minha filha é uma fotocópia minha. Quando a vejo a trabalhar e a discutir, vejo a minha cópia. Sem desprimor para o meu filho de quem gosto muito, ela é a herdeira da minha matriz. Isto dá-nos o sentimento óptimo de termos raízes e descendentes.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Junho de 2008