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Anabela Mota Ribeiro

António Jorge Gonçalves

10.04.23

Vou começar por um verso de Chico Buarque: «meu sangue errou de veia e se perdeu». A imagem da veia como caminho ocorreu-me ao olhar para um dos desenhos do seu último livro.

Aquilo que ressoa dessa frase do Chico Buarque é a inadaptação. Essa ideia acompanha-me desde cedo. Com o tempo, aprendi que é uma característica de quem trabalha nesta área. É preciso haver um grau de inadequação para sentir um chamamento ou uma necessidade de ser artista. Como se isso fosse uma forma de resolver, de contornar, de abraçar a nossa inadequação. Quando cheguei a Belas-Artes, ao encontrar a bizarria dos meus colegas, tive pela primeira vez a sensação: «Uau, não há problema de se ser fora do baralho. É normal sermos todos diferentes.» Só então, tarde, percebi que podia dar-me esse direito.

 

A noção de caminho, de encontrar um caminho, de já estarmos num caminho é central no modo como vê a vida e o seu trabalho.

O desenho é o caminho, mas também uma grande companhia. O desenho e a escrita são formas de nos acompanharmos. Nas nossas solidões, nos nossos tédios. Na nossa incapacidade de nos inscrevermos no mundo, de nos inscrevermos no grupo.

 

É uma forma de auscultação íntima? É um escutar dentro e um exprimir para fora que se torna visível?

Não me lembro onde tudo isto começou. O maior privilégio que tive com o nascimento da [minha filha] Miranda foi ter podido observá-la. Com os filhos, podemos observar a nossa pré-história. É engraçado vê-la, aos quatro ou cinco anos, a fazer desenhos de teor emocional muito forte, a fazer coisas para mim perturbadoras. Porque eu olhava e pressentia do que estava a falar. Ela lidava com formas, com cores, com motricidade fina. Com a habilidade de construir esses desenhos. Representava histórias, aludia a histórias que tinha ouvido. A sensação que tenho é que não tinha consciência de estar a representar a vida dela. O único paralelo que encontro com esse estado é o meu estado quando faço desenho digital, em improviso absoluto.

 

Porquê, especificamente, no desenho digital? Tem que ver com o instante e com a intensidade daquele instante?

A improvisação é a única altura em que consigo voltar a ligar-me com o tempo em que tinha quatro, cinco anos e uma disponibilidade absoluta para fazer. Não há preparação de espécie nenhuma, não existe uma atitude projectual. Em geral, o trabalho de papel do desenhador é projectual.

 

Pode vincar as diferenças?

No papel, temos a ideia, fazemos um esboço, aperfeiçoamos o esboço, finalizamos, arrumamos, editamos, está feito. Tem uma atitude construtiva. No improviso digital, usamos tudo o que temos à mão naquele momento, mas não temos tempo suficiente para reflectir no que estamos a fazer. É como ligar a ficha directamente no lado emocional. Muitas vezes nem sequer me lembro, no fim do espectáculo, do que aconteceu ao certo.

 

Ou seja, no desenho em papel, é como se desenhasse com a cabeça. Há uma deliberação e um tempo de reflexão no que vai sendo feito. No digital, desenha com entranhas, com qualquer coisa que não sabe de onde vem, mas que aparece e ganha aquela forma. É isto?

Sim. Claro que os processos se contagiaram, de alguma maneira. Quando comecei a fazer desenho digital, já trazia muitas e muitas horas de voo de desenho em papel. E de construção de livros. Mas o que fez diferença foi o momento charneira que apanhei: a mudança do analógico para o digital. Os meus primeiros livros foram todos construídos de forma analógica. O processo de construção da banda desenhada é muito projectual. Tem de se fazer uma planificação estudada, depois tem de se fazer um esboço para arrumar tudo na página; no momento em que se executa a página final, tem-se a respiração suspensa, faz-se como na caligrafia japonesa. Porque, depois de se trabalhar trinta horas naquela página, se se faz qualquer coisa mal, acabou. Preparamo-nos muito para ter aquele momento, para não falhar.

Estava a lembrar-me de um filme, Homem no Arame, acerca de Philippe Petit, que atravessou as Torres Gémeas nos anos setenta, num cabo, de uma torre à outra. Uma loucura completa. Está lá em cima quarenta e cinco minutos, faz oito travessias entre as Torres Gémeas num cabo de aço!

 

O Petit vinha a propósito da preparação, do treino.

No final da série Filipe Seems (com o Nuno Artur Silva), e nA Arte Suprema (com o Rui Zink), chegou o computador à minha vida. Passei a usar um método: desenhar tudo à mão, mas editar e montar as páginas no computador. Podia fazer imagem a imagem, já não precisava de fazer a página. Comecei a trabalhar num sistema de takes. No fundo, é aquela ideia muito picassiana de ter um tema e de fazer noventa desenhos do mesmo tema. E depois digo: «É este!»

 

O que o faz compreender «ser este»? É uma compreensão ou é  apenas um impulso, uma intuição?

O Nuno Saraiva diz-me que muitas vezes tem o desenho todo na cabeça. Eu não. Tenho um cheiro do desenho. E, quando estou a desenhar, sinto se está ou não está a cheirar àquilo. Muitas vezes não é um processo de poder dizer que é mais à esquerda ou mais à direita. Por isso falo de cheiro: é uma questão de tom.

 

Há artistas que trabalham mais no fazer, no acto. Há outros que são talvez mais cerebrais e que já têm isso dado à partida (depois trata-se de concretizar). Estava a lembrar-me de uma conversa do jovem Eduardo Souto de Moura com o já mestre Siza Vieira. Siza dizia-lhe: «Não percebo nada do que me está a dizer, desenhe.» Era no desenhar que Souto Moura percebia que ele mesmo ainda não tinha percebido o problema. Desenhar ajudava-o a exprimir-se com clareza.

Não é sempre igual. Não sou como o Nuno Saraiva. Às vezes acontece, mas é muito raro ter na minha cabeça a coisa fechada. O caminho faz-se no desenhar. O que há lá sempre é uma vontade, uma atmosfera, qualquer coisa a que quero chegar. Uma qualquer coisa que quer irromper, que bate à porta. É uma espécie de conversa de estúpidos: «Estás aí a falar e eu não estou a perceber o que estás a querer dizer.» Então parto para o fazer, muitas vezes para tentar perceber o que é isso que me bate à porta. A história do meu último livro A Minha Casa não Tem dentro é muito essa.

 

Conte.

Em Dezembro [de 2015] começo a pensar que tinha um livro confessional, que estava a chegar a altura. Há coisas neste livro que me acompanhavam há anos num estado latente. Nessa altura, apanho uma infecção na próstata, algo violento. Quando passei três semanas a antibiótico, senti esse chamamento: «É agora que vou fazer este livro.» E, não sei explicar porquê, começo a trabalhar no livro. Os tratamentos deixaram-me o corpo um pouco do avesso. No final de Janeiro, tenho uma primeira versão. Puxo o livro de frente para trás, de trás para a frente, e sinto que não bate certo com a música ou o cheiro que senti. Dou a ler a uma ou duas pessoas, para ver se me dão de volta o que aquilo éE em Fevereiro há a veia rebentada, o estar entre a vida e a morte que muda as coisas de lugar. Na primeira noite que passo acordado na enfermaria do hospital, com o meu caderninho, a primeira coisa que se tornou claríssima na minha mente foi: «Estás aqui, é isto que vai ser o teu livro. Esta é a parte do teu livro a que não conseguias chegar.» E no meio de tudo aquilo há, não sei se lhe posso chamar alegria, mas uma sensação de pertença.

 

Uma plenitude, quase?

Não sei dizer. É um fazer sentido. Uma certa serenidade no meio do pânico que vem disto: «Está atento, desenha, escreve, abre-te porque este é o momento.»

 

Quando falo de plenitude, aparece-me a imagem de um corpo que fica cheio até ao tecto. O instante fica preenchido. O instante faz sentido. É tremendo que ao mesmo tempo isso seja acompanhado da noção de perigo, da consciência de finitude, do medo. Estava a falar, não sei se concluiu, sobre a transição do analógico para o digital... É algo determinante.

Perguntou-me o que me levava a escolher determinado desenho. O desenho é talvez a coisa mais permanente na minha vida.

 

Então vamos lá atrás, ao começo da história.

A minha primeira banda desenhada acontece aos quatro anos. É o nascimento de uma zebra. Uma página A4 ao alto, em tiras horizontais. Uma daquelas coisas que vi numa série de televisão sobre a natureza. Achei fascinante. Se calhar por causa das risquinhas. Era natural para mim que, para contar uma história, era precisa uma sequência de imagens.

 

A sua zebra era branca e preta?

Era. E a esferográfica.

 

Colori muitas zebras brincando com as cores. Não queria o real da zebra, o branco e o preto, queria que a minha zebra fosse um arco-íris.

Isso bate certo com essa altura das nossas vidas, com a possibilidade de fazermos o que queremos. Outra coisa que me lembro de desenhar na infância são touradas, a pega dos forcados. Sempre me fascinou a pega dos forcados. O meu tio, irmão da minha mãe, era aficionado. Aquele momento em que o forcado, o líder, avança para o meio da arena, põe a mão nas ancas, se volta para o bicho de seiscentos ou setecentos quilos à sua frente – «Ei, touro! Ei, touro!» – ainda hoje me arrepia. O embate, saber pôr-se entre os cornos, saber aguentar a finta do touro… É impossível não olhar para isto como uma forma de olhar para a vida, para a nossa capacidade de chamar o touro, e depois de nos aguentarmos ali.

 

A vida é capaz de ser uma pega em que estamos cheios de medo, mas em que nos atiramos ao bicho.

Acho que a frase é da Teresa Villaverde: ela falava da «força dos fracos». Dizia que tinha a força dos fracos. Revi-me nisso. A força dos fracos é essa, a força de quem tem imenso medo, mas que se lança com esse medo. Mas essa temeridade depois… é como a inadaptação. A inadaptação é muito dolorosa (particularmente na adolescência): é não conseguir encontrar lugar, ter a sensação de que o mundo não nos entende, que não encontramos lugar.

Mais tarde, essas horas de resistência permitem-nos muito, porque nos habituámos a essa pega. Habituámo-nos a ter de encontrar o caminho.

 

Estava a falar de estar sempre lá a compreensão de que é preciso contar uma história.

Antes de saber o que era banda desenhada, já a fazia. Passei a infância a fazer banda desenhada, imensas, imensas. A contar histórias através de desenhos e de sequências.

 

Não teve sequer a fase de fazer desenhos soltos? Fazer banda desenhada não é o mesmo que ter a compulsão de desenhar.

Não. Os desenhos a que tenho acesso (porque os meus pais mos deixaram, e ainda são bastantes) são quase sempre sequenciais. Depois tenho álbuns por colecções. Por exemplo, os dos animais. Ia todos os anos pelo menos uma vez ao Jardim Zoológico desenhar os animais. Com cinco, seis anos, eu e os meus dois irmãos fazíamos uma revista de exemplar único. À mão. O meu irmão do meio também desenhava; o mais velho, posteriormente advogado, escrevia artigos de opinião. É muito engraçado que, a certa altura, aos dez, doze anos dele (tem mais quatro que eu), escrevia artigos nessa revista sobre a minha obra [risos].

 

Que referências tinham?

Replicava nessa revista algo que tinha directamente relacionado com a revista Tintin. Curiosamente, dirigida pelo Dinis Machado. Essas ligações…

 

Anos mais tarde, conhece o Dinis por causa da peça O Que Diz Molero, em que trabalhou. Falaremos dela adiante.

A revista Tintin saía todas as semanas e tinha só duas páginas de cada história. Era a revista pós-moderna por excelência. Várias narrativas fragmentadas. Histórias de automóveis, de heróis, de índios. Narrativas paralelas e simultâneas. Quando começámos, os meus irmãos e eu, a fazer essa revista, eu desenhava a história dos carros, a história da menina, o conto tradicional, a ficção científica. Quando, com doze, catorze anos, comecei a fazer o meu fanzine, então já policopiado, fazia-o todo com as várias histórias.

 

Nunca lhe ocorreu que podia ser advogado, como o seu irmão?

Não. No fim da adolescência, quando comecei a ter amigos e namoradas, entendi que havia pessoas que não sabiam o que queriam fazer da vida. Para mim era tão óbvio, mas tão óbvio. Em todo o caso, hesitei no momento de entrar em Belas-Artes. Tinha uma banda, tocava: a música interessava-me muito. Cheguei ao pé do meu pai e da minha mãe: «Não sei se quero ir para música, se quero ir para desenho.» Eles entraram em parafuso. Para eles, música era sexo, drogas e rocknroll [risos]. Uma família completamente católica. Nos primeiros três meses em que estive em Belas-Artes, alguém assaltou o pavilhão onde ensaiávamos, uma quinta isolada. Fizeram um buraco no canhão da fechadura e levaram tudo! Entendi isso como o destino a decidir por mim.

 

Tocava o quê?

Viola baixo e guitarra.

 

Gostava que falasse da literatura e da importância da palavra. Exprime-se especialmente bem, tem um vocabulário rico. Não é tão comum assim.

A convivência com os escritores fez-me bem. Muito. A amizade com o Nuno Artur [Silva]. Conheci o Nuno Artur no final dos anos oitenta. Sempre li, mas não me lembro de a palavra ser central na minha adolescência. A pintura era central. Das recordações mais gratas que tenho: o meu pai ia muitas vezes comigo à Gulbenkian, ao Museu Nacional de Arte Antiga. O meu pai fazia este jogo: tínhamos uma história de arte ilustrada, eu estudava os clássicos renascentistas, os barrocos; depois ele abria uma gravura ao calhas e eu tinha de adivinhar quem era o pintor e qual era a obra. Foi com ele que descobri o Naufrágio de Um Cargueiro, de Turner, no museu da Gulbenkian. Fiquei fascinado.

 

O seu pai tinha uma ligação com o desenho?

Sim, desenhava. O meu pai teve a particularidade de ser a pessoa que imprimiu o meu fanzine. No escritório, mais ou menos uma organização sindical (isto depois do 25 de Abril), tinham uma pequena máquina de offset; e o meu pai, que já lá tinha passado a semana toda de trabalho, ao fim-de-semana ainda ia comigo para lá imprimir. Não sou só grato por ter feito isso com ele, também aprendi muito cedo, numa pequena escala, o ofício da impressão. Será também decisivo mais tarde.

 

As visitas à Gulbenkian e ao Museu Nacional de Arte Antiga eram coisas faladas, comentadas? Pergunto se ver era de uma intimidade silenciosa entre os dois ou se havia discussão.

Falávamos muito. Herdei isso do meu pai, ele era um existencialista. Não sei se leu Camus, mas poderia imaginá-lo a ler Camus. Era como que um filósofo no sentido do questionamento pessoal, do questionamento do sentido das coisas. Fomos ver o 2001 – Odisseia no Espaço, de Kubrick. Não sei se tinha dez anos. Lembro-me do momento a seguir, dos dois a discutir o que raio queria dizer o final do filme. Esses momentos de questionamento são muito gratos. De alguma maneira, vou encontrar o meu pai no Dinis Machado.

 

Em que é que podia rever o seu pai no Dinis?

O meu pai também não tinha tido uma educação académica. Ele tinha começado a trabalhar muito cedo. Na ausência da figura do pai, fez o seu percurso no mundo. Foi para a Marinha cedo e ficou quatro anos embarcado. Usava a sensibilidade para ir auscultando o mundo. Quando se parte de uma infância, ou de uma proveniência social popular, chega-se ao conhecimento da arte e da linguagem da arte, e dos artistas, pelo instinto puro. E depois começa-se a construir um entendimento. Isso aconteceu-me com a palavra.

 

Que coisas lhe deram a ler os seus amigos escritores?

Comecei a entrar, muito pela mão do Nuno Artur, em Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Dinis Machado. Foi o Rui Zink quem me ofereceu Narciso e Goldmundo, de Hermann Hesse. Calvino, Cidades Invisíveis. Mas, quando cheguei lá, andava a desenhar há vinte anos. É diferente quando crescemos num berço em que isso está lá desde o início. Essa percepção, essa construção, esse sistema. Muito do fulgor que o Dinis tinha vinha de um olhar desassombrado, das vivências de bairro e de pancadaria. De ver acontecer a vida, de ter olhado a vida. E de perceber, mais tarde, que a arte inventa ou refaz essa vida.

 

Mas não estava, não está no lugar do Dinis ou do seu pai, já está no degrau a seguir. Digo «degrau» porque as escadas são constantes nos seus desenhos. Continua a ter esse corpo-a-corpo com a vida, com o objecto artístico, com aquilo que depois metaboliza e expele de uma certa maneira, mas já existe uma retaguarda que vem com o seu pai, uma educação que não é formal, mas já elaborada.

Sim, declaradamente.

 

Contudo, não prescinde daquilo que lhes deu, ao seu pai e ao Dinis, esse tal fulgor.

As coisas têm todas o seu lugar. Houve uma determinada fase, na juventude, quando comecei a entrar nesse mundo, em que senti necessidade de legitimação. Foi um período em que queria que as pessoas reconhecessem que eu também era culto, que eu também sabia as regras, o protocolo. O meio da cultura está cheio disso, de porteiros de discoteca que nos autorizam a entrar segundo um código de vestuário. Passei pelo momento em que queria espetar a minha bandeirinha, que os outros me dissessem que eu podia entrar. Agora estou noutro momento. O último livro foi talvez o primeiro em que não dei comigo a pensar (enquanto estava a fazê-lo) qual o lugar que ele ia ocupar na história da arte. É uma maneira pomposa de falar dessa legitimação [que eu procurava]. Agora é o momento de estar perto do sentir da vida, dessa pulsão, dessa voz.

 

Sente que é mais exacto no que quer dizer?

o sei se é exactidão, o desenho não é exacto. As palavras às vezes dão uma ilusão de exactidão. Quando falo, parece que sou engenheiro, parece que estou a construir uma ponte de um lado ao outro, com os parafusos nos sítios certos, com o verniz certo para resistir às temperaturas e à natureza. No desenho posso permitir-me ser mais livre. Muito mais livre do que com as palavras. As palavras também aprisionam. Frequentemente, com as palavras, penso: «Fui falsário quando lhe disse aquilo, não é nada verdade.» Isso nunca me acontece com o desenho.

 

Sabe que associação imediata faço com a palavra «falsário»? Pirata.

Talvez.

 

Histórias de piratas, tesouros. Quer seguir esta pista?

Bom, Sandokan, Emilio Salgari.

 

Sandokan e Marianna.

Lembro-me muito disso. Havia um desenhador italiano fabuloso, Franco Caprioli, era pontilhista. Devia ser um maníaco, obsessivo--compulsivo, mas supervirtuoso. Adaptava os livros de Emilio Salgari. Éramos três irmãos, como é que três irmãos não têm aventuras de tesouros? Claro, com certeza, caça ao tesouro.

 

Mas o detective Filipe Seems não se interessa por decifrar o enigma, por chegar ao tesouro: só lhe interessam as pistas.

O Filipe Seems ficaria feliz a deambular por aquela Lisboa, simplesmente. O Filipe Seems sou eu e o Nuno, os dois a deambular por Lisboa. Eu a desenhar e ele a inventar frases, a ir buscar citações, a fazer listas de coisas que lhe agradam. É um grande momento de paixão pela cidade. Vivi um ano nas Avenidas Novas, mas não me lembro. Fui viver para Benfica com um ano, e fiquei nesse subúrbio até vir para Belas-Artes, que são no Chiado.

 

Estamos no começo dos anos oitenta?

Em meados dos anos oitenta.

 

Como conheceu o Nuno Artur? É um encontro decisivo.

Começámos por nos cruzar no Clube Português de Banda Desenhada, quando fazíamos os nossos fanzines. Trocámos correspondência, mas o Nuno Artur andava com os seus amigos em plena movimentação surreal, eu ainda estava sob a alçada da família. Mais tarde, o Luís Miguel Viterbo, amigo de ambos, diz que o Nuno vai fazer a sua primeira peça de teatro e que eu posso fazer o cartaz. Aí entrei. Fiquei fascinado por aquele caleidoscópio de pessoas com quem ele estava, cada uma com brilho próprio.

 

Foi o início de uma nova fase em que criava com outros.

O desenho é uma actividade extremamente solitária. Essa foi talvez a razão por que me aproximei dos palcos. O Nuno foi a primeira namorada artística. Sentávamo-nos tardes e noites em casa dele, ficávamos a imaginar o que podíamos fazer, mesmo antes de fazermos o Filipe Seems.

 

De quem partiu a ideia dos golfinhos no Tejo, de gôndolas venezianas no Terreiro do Paço?

É difícil dizer neste momento o que pertence a um e ao outro, para ser sincero. Eram momentos de discussão de ideias. E o Nuno sempre foi muito desapegado das suas ideias, é uma característica da personalidade dele. Foi alguém muito fácil de trabalhar.

 

Trabalhou com outros escritores. O Rui Zink e, nos anos mais recentes, o Ondjaki são as colaborações mais consistentes. Quer falar do encontro com o Dinis Machado?

É por causa do Dinis Machado que chego ao desenho digital. É um facto.

 

É uma concatenação de vários elementos muito antigos. Com o Dinis, veio junto a revista Tintin, a banda desenhada, a palavra, apareceu a cenografia. Tudo ganhou expressão no palco dO Que Diz Molero.

É um momento muito feliz. O teatro era uma linguagem que me era completamente estranha. O Nuno disse: «Podíamos ter uns desenhos teus de Lisboa, projectados, se fizermos a peça.» E eu: «Está bem.» Conheço o António Feio e o [José] Pedro Gomes. O António, que era quem encenava, disse-me: «Acho que devias era fazer tudo.»

 

Figurinos, cenário, desenhos.

Tudo. Fazia parte do grupo o Nuno Rebelo, que conhecia e de quem era fã, dos Mler If Dada. Uma personagem inspiradora de liberdade. Um louco também, sem rede. Mas lembro-me de ter desenhado tudo, os figurinos, sem fazer a mínima ideia de como se fazia. A costureira, que trabalhou contrariadíssima, velha senhora do Teatro Nacional D. Maria II, achava que aquilo era um disparate. Um dia chego aos ensaios e o Zé Pedro está com o fato que eu tinha desenhado, e ele era muito melhor que os meus desenhos! Não há desenho, não há personagem que eu desenhe que possa ser tão boa como aquele ser humano que está em palco.

 

Ele estava a vestir o seu desenho.

Mais do que vestir, dava-lhe vida. «Então as artes cénicas, o teatro, é acerca de estar vivo. Não é como um desenho, que invoca. Não, está vivo.» Todo o caminho que fiz a partir daí com as artes cénicas tem que ver com isso.

 

Fale mais do processo de trabalhar em conjunto, da co-criação.

Há uma sensação para quem já tocou em grupo que não é repetível. Juntar numa sala quatro pessoas que não se conhecem, que nunca tocaram juntas e que começam a tocar música. Uma começa a fazer uma linha instrumental, seja rítmica, seja melódica, e os outros vão entrando. Lembro-me de tocar na banda e de pensar: «Porque não posso fazer isto em desenho?»

 

O Molero mostrou que era possível. Na peça Conspiração, que fizeram a partir dos álbuns do Filipe Seems, já com desenho digital, foram convocados outros artistas e disciplinas. No fundo, é a declinação desta ideia: um grupo de cúmplices, que fala uma linguagem compreensível para outro, pelo seu discurso, modo de falar, língua própria, enriquece e potencia a língua própria do outro. Isso está também na peça O Telhado do Mundo, com o Ondjaki e o Filipe Raposo.

As artes performativas são por definição um território colaborativo. Dependo de toda a gente, tudo depende de toda a gente. Isso fez muito por mim. Esse é o mundo. O mundo é estarmos com os outros, é estarmos juntos, é fazermos. Comecei a desenvolver algo que não tinha: a capacidade de escutar o outro. Hoje, até para montar uma peça em digressão, chego a uma sala e sei que tenho de ouvir o técnico. Tenho de o perceber. Essa é a grande característica dos processos colaborativos: a escuta.

 

Gosto muito que a palavra play queira dizer brincar e representar. Estava a ouvi-lo e ocorreu-me esta associação. Tudo isso parece um prolongamento da brincadeira da infância, da experimentação e do processo de descoberta que se vive por excelência na infância.

Completamente. Estava outra vez a lembrar-me desse filme, Homem no Arame. Depois de toda aquela coisa por que Petit passou, e os amigos dele, para chegar de forma anónima ao topo das Torres Gémeas, esticar os cabos, montar tudo, quando está lá em cima começa a rir-se. A quatrocentos e cinquenta metros de altura! Aparece a polícia, claro que a polícia não pode ir para cima do cabo; então ele, quando está quase à distância de poderem agarrá-lo, ri-se e volta para trás. É isso que mais gostamos de fazer na vida: brincar.

 

Os desenhos que fez no metro são, de certa maneira, o oposto. São um exercício solitário, que também implica a escuta, neste caso a observação cuidada e um gesto rápido. Fazia aquilo com grande determinação nos poucos instantes disponíveis. Porém, aqui não parece o rapaz que se diverte com outros, mas um rapaz à procura, sozinho.

É engraçado falar disso dessa maneira. Sozinho, não diria. Diria o contrário. Começo a fazer desenho digital quando acabo o Subway Life. Tinha feito o Molero, mas é no Subway Life que me apercebo do que é fazer coisas com as pessoas, e não para as pessoas. No Subway Life, pela primeira vez aquilo é directo. Era em tempo real, o desenho ainda nem estava acabado, as pessoas já estavam a comentar. E eu, depois de um certo choque inicial ou emocional, habituei-me àquilo e comecei a beber da embriaguez que é fazer as coisas com as pessoas. A vida começa a misturar-se com o que estamos a fazer. Quando a senhora, a matrona egípcia no Cairo, me pede para a desenhar e tenho a carruagem toda em silêncio a olhar para mim enquanto a desenho…

 

Quantos minutos?

Cinco, oito minutos. Ainda é um momento voyeur, num certo sentido, mas para mim é o momento em que o arco estica e a flecha vai para o mundo.

 

O que mudou tão radicalmente nessa viagem pelos subterrâneos do mundo? A sua direcção foi outra depois de voltar do Subway Life.

Não é que tenha pensado que uma coisa levasse à outra. A moldura mental tem que ver com a maneira como Londres me abriu. Com o facto de ter ido estudar cenografia. Uma das coisas que descubro é que a cenografia não me interessa. Não percebia porque é que as pessoas que cuidavam visualmente de um espectáculo – os desenhadores de luz e os cenógrafos – faziam coisas que estavam paradas. Na melhor das hipóteses, com muito dinheiro, havia uma robótica que mexia um bocadinho. E disse: «Eu também quero brincar, também quero estar com a minha guitarra em palco.» O desenho digital aparece como isso: é a minha guitarra. E, em projectos como o Continuous Me, com a Yola Pinto, não havia projectores de luz, o que eu desenhasse era a única fonte de luz no espectáculo. Completamente impermanente.

 

Percebemos as circunstâncias que propiciam e que o encaminham para o desenho digital, mas afinal de onde vem ele?

De um programa que vi na infância aos domingos. Havia uma folha de vegetal de arquitecto, aquele vegetal de um tom mais opalino. O desenhador ficava por trás da folha, a câmara pela frente. E o desenhador, ao mesmo tempo que se contava uma história, ia contando a história com uma caneta, em desenho. Nós só víamos a ponta, um traço e uma sombra da mão. Era mágico para mim, ver aparecer um desenho sem ver a mão…

Há dois grandes choques quando começo a fazer [desenho digital]. A primeira pessoa com quem começo a experimentar, em 2003, é o Paulo Curado, saxofonista, um improvisador. Mas eu só consigo fazer desenhos circulares. Estranhíssimo. Salto no tempo, corta e vamos para um plano quase dez anos depois. Depois de a Miranda ter nascido, percebi porquê. Os primeiros desenhos que uma criança começa a fazer são circulares. A ideia da espiral, do movimento circular, é da própria coreografia da mão e do gozo da mão. As primeiras brincadeiras das crianças são todas circulares, o carrossel, o correr à volta. De alguma maneira, tive de voltar à estaca zero, de limpar tudo o que sabia.

O que também levou tempo a perceber é que, quando olhava para o desenho digital, olhava para um ecrã com comprimento e largura; isso para mim era a tela. O que ia fazer dentro daquela proporção? Finalmente entendi que essa maneira de olhar não me servia. Aquilo que é a tela na arte performativa é o tempo. O que interessa não é aquela largura e aquela altura. O que interessa é o que vou fazer durante vinte minutos. O que é o meu princípio, o meu meio e o meu fim.

 

A experiência dos livros foi útil, apareceu de alguma maneira?

Privilegiei o fluxo, o entendimento de uma cadência: se ela agora tem de ser rápida, curta, se agora tenho de estar num momento escuro, num momento claro. Claro que fui beber à experiência de construir os livros, os livros têm esse fluxo. Mas o mais engraçado foi ver como essa experiência se reflectiu nos livros que fiz depois. Principalmente no Rei, a novela gráfica que fiz com o Rui Zink.

 

A coordenada tempo ganha força, proeminência, em relação ao espaço. Como disse, temos aquele ecrã, aquela folha, aquele espaço disponível. Mas esse suporte não é o determinante.

Uma das coisas que procuro sempre é que a projecção seja o maior possível. Não é uma ambição de monumentalidade, quero simplesmente que seja tão grande que as pessoas se esqueçam que tem uma largura e uma altura. Que possam olhar para ela como olham para a música, sem limite.

Em relação ao tempo, tem razão. Isso tomou conta. Mais uma vez lembro-me do Subway Life, essa foi a grande revolução. Nunca sabia quanto tempo tinha para desenhar a pessoa. A pessoa podia sair a seguir e o desenho ficar incompleto. Ainda não tinha pensado nisso, mas se calhar a génese do desenho digital está no Subway Life. Porque o entendimento daquele momento é um entendimento de tempo. Aquele desenho não está acabado quando eu achar que está bem desenhado, está acabado no tempo que existe. Tal como num palco.

 

Num caso e noutro, não existe a ideia mítica da folha em branco. Impõem-se a urgência e aquilo que existe.

Quando chego a um lugar, como na capela em Óbidos onde fiz uma intervenção para o [festival] FOLIO, percebo que me agrada reescrever aquilo que já está escrito. Quando chego a uma sala, ainda por cima se é uma sala onde já vi espectáculos, vejo o que

já foi escrito ali. Há a noção clara de que estamos a escrever em cima. E de que outros vão depois escrever em cima de nós.

 

É uma noção de cadeia?

o sei se é de cadeia… Há qualquer coisa de construção. Tem um bocadinho que ver com a minha leitura de Carl Sagan: olhamos para a escala de um outro tempo que não é o nosso tempo de vida. O nosso tempo de vida é a maneira mais ridícula que há de olharmos para o Universo.

 

Mas também é o que nos safa.

Não sei, pergunte às árvores, às rochas, talvez possam dizer.

 

Perderíamos uma centralidade nossa em relação à vida, ao dia, ao agir, se estivéssemos sempre a medir-nos com a eternidade das coisas. Acabaríamos esmagados, e precisamos de um centro.

Não estou assim tão certo se isso é uma necessidade ou uma consequência. Como diz a biologia, uma célula luta ferozmente e de forma assassina pela sua sobrevivência. Mas ela só faz sentido no conjunto. Talvez arrisque dizer que esta ideia se tornou mais aguda depois da minha operação… Chamou-lhe cadeia, não sei exactamente o que é. Chamo-lhe um sentido que advém de tudo estar junto. De uma percepção mais clara da implicação que o movimento do meu dedo mindinho tem na movimentação de todo o resto.

 

Podemos chamar-lhe «ser com»?

Talvez.

 

«Meu sangue errou de veia e se perdeu.» Vamos à sua veia que rebentou? É uma espécie de caminho obstruído que faz olhar para todo o mapa de outra maneira, e que depois encontra expressão no livro A Minha Casa não Tem dentro.

Não é muito fácil falar. Não é nada fácil. É um território muito emocional. Agora, passado ano e meio, está tudo bem. Mas alguma coisa mudou. É como se o meu corpo tivesse deixado de ser um sítio seguro para eu viver. É passar a olhar para o corpo como algo que pode dar erro. Primeiro: ter conhecido a sensação de que podemos morrer amanhã. Não é uma abstracção intelectual, é a realidade. É estranho ter esperado pelos cinquenta e poucos anos para perceber isso. Segundo: a sensação muito forte e difícil de perceber que há uma narrativa nas coisas. Uma narrativa que vamos assobiando, como se conhecêssemos a música. Mas, na realidade, chega uma altura em que olhamos para o lado e já não reconhecemos a música. Afinal, que música era esta? Mas que há uma música, há. Dentro desta nossa tendência de sermos tão simbólicos, desconcertantemente simbólicos, de vermos simbolismo em tudo, é uma sensação muito viva.

Quando cheguei ao hospital, na primeira noite, no meio de toda aquela aflição, lembro-me de me sentir a esvair, de perceber que tinha de desenhar e que tinha de escrever aquilo. E lembro-me de me socorrer de um poema. A Paula Delecave tinha-me oferecido uma colectânea de Paulo Leminski. Era um dos livros que tinha comigo. Talvez o que me fez mais companhia. Um poema diz: «passe o que nasce/ passe o que nem/ passe o que faz/ passe o que faz-se/ que tudo passe/ e passe muito bem».

 

Como interpretou esses versos?

Tive uma compreensão da vida como uma passagem. É uma entrada em qualquer coisa, é uma saída de qualquer coisa, mas é uma passagem. É um movimento. Somos uma espécie de nave, de receptáculo, mas tudo passa. Passar também pode ser morrer. Quando me sentei para desenhar A Minha Casa não Tem dentro, era isso que queria desse livro. Não sei o que isso é, tangível ou não. Para quem leu o livro, há quem o ache um pouco hermético, ou desconcertantemente não narrativo. Mas foi a minha tentativa, o meu empenho e a minha felicidade. Ri-me muitas vezes enquanto o fiz, senti-me satisfeito de estar sentado a pintar aquele desenho.

 

Ontem estive a ver o livro com redobrada atenção e dei-me conta de que a presença da infância é a mais forte de todas. As palavras são «carrossel», «baloiço», «roda». Temos brincadeiras de infância como lançar barcos de papel. Temos colo, colo, colo. Tudo isto são remissões directas, aparições flagrantes da infância. Já para não falar na menina, que eu vi, claro, como a Miranda. Mas também como uma imagem da sua própria infância. Havia esse desdobramento. É o António Jorge-criança que está ali naquela carruagem de comboio. A morte ronda, ela mesma aparece numa travessia. Todavia, a ideia de futuro, de desejo, é mais vitoriosa do que a presença do medo e da aflição. Não sei se concorda.

Quando a menina apareceu, foi um pouco surpreendente. «O que faz a Miranda aqui?» Percebi muito rapidamente que não era a Miranda. Deixei a menina, mas era eu. A maior parte do livro são coisas que vi e vivi no hospital. Personagens, lugares. Foram uma tentativa de transcrição disso, mas quase sempre os desenhos se desenvolveram para lá disso. Como se fossem sementes para outra coisa. Fui desenhando sem um fio, ele foi-se construindo à medida que fui desenhando. E sim, fui sentindo que aquela criança me vinha redimir, que era eu. Como se aquela criança fosse o meu núcleo duro. Até porque tenho de reconhecer que ainda há momentos em que me sinto desamparado. Quando me sinto desamparado, sou essa criança.

 

Esta entrevista foi feita em Lisboa, em Junho de 2017, e saiu no livro DESENHOS EFÉMEROS, editado pela Orfeu Negro, em 2018,