António Lobo Antunes (2006)
António Lobo Antunes é o escritor que quer pôr a vida toda num livro, num gesto, numa expressão. Traduz, em livros inclassificáveis, a essência do humano, na sua grandeza e miséria. Nesta entrevista fala-se de generosidade, do medo, da atenção ao outro. Fala-se dos livros e das razões por que vale a pena viver. E da eternidade. Do silêncio. Da alegria. Da guerra. Da dificuldade em dizer o amor. Da necessidade de se apropriar do coração dos homens. Falámos da sua nudez, vulnerabilidade, da fé que tem nos homens. Eis o retrato de um homem que a mãe diz ter sido sempre assim.
Hoje folheei a sua fotobiografia para ver como era em pequeno. A expressão, o olhar, não mudou muito.
A minha mãe é que diz isso. Tem na sala uma fotografia minha com um ano e diz que não mudei. Que esquisito.
Pois é. Por isso queria lançar esta interrogação.
Não gosto de fotografias minhas, não gosto de me ver, nunca gostei. Tive sempre uma relação difícil com o meu corpo, com o meu aspecto físico [riso].
Está a rir-se porque está a fazer género?
Não, não, é verdade. Vi isso naquele livro das Cartas [de Guerra: d’este viver aqui neste papel descrito]. Tinha vinte e poucos anos e achava-me feiíssimo. Achava sobretudo que não era parecido comigo, que não tinha aquela cara, que era diferente daquela cara. Olhava para o espelho com uma estranheza. Nunca gostei de espelhos. Nem de relógios, não uso relógio.
O irreconhecimento passa por onde?
Era como se eu fosse outro. A sensação era sempre a mesma: não sou aquele, não sou este, não tenho fotografias minhas.
Nesse sentido, imagino que os livros sejam fotografias suas.
Agora já não. Ao princípio, sim. Continuo a achar que os livros deviam ser publicados sem o nome de autores. Havia uma data de problemas que desapareciam. Pelo menos ao nível de competição, inveja, ciúme (tudo isso que nada tem que ver com livros e que entendo mal). O Victor Hugo dizia que as obras de arte eram como os tigres: não se devoravam umas às outras. Descobrir um livro bom é uma alegria tão grande, um autor que a gente não conhece... é uma festa!
O sentimento de admiração é uma bênção.
Porquê?
Porque nos enriquece, faz-nos maiores.
Sinto-me grato por haver pessoas melhores. As que muitas vezes admiro são pessoas que ninguém sabe quem são, a não ser a família delas. Acho que sou uma pessoa humilde. Em relação aos livros: não percebo bem aqueles livros, tudo aquilo me escapa. Aquilo é novo e é diferente, mas ainda é muito cedo para se perceber o que é que eu trouxe. O meu medo é sempre o mesmo, é de desiludir as pessoas que tiveram em mim uma confiança que eu nunca partilhei. É tão difícil escrever. No entanto, por que é que há tantos livros, tanta gente a escrever? Recebo muitos manuscritos cheios de gloriosas certezas. Eles querem que eu leia na segunda, que na terça diga que são bestiais, que na quarta estejam publicados e na quinta sejam famosos. Mas escrever não é isto.
Também aos dezoito anos estava cheio de certezas quanto à literatura e quanto à vida — disse-o. A soberba da juventude é infinda.
Uma certeza eu tinha: se trabalhasse muito ninguém escrevia como eu. Mas fazia coisas muito más. Havia uma distância grande entre aquilo que eu sentia e os resultados, que eram pobres. Continua a haver.
Como se houvesse um desfasamento? Não entre o espelho e a imagem projectada, mas entre os livros e o que quer que eles sejam?
Estava à espera que falasse nisso. “Ainda não é isto, podia ter ido mais longe, podia ter trabalhado mais, podia ter corrigido mais, devia ter reescrito mais”. Devia ter publicado só a partir d’ O Esplendor de Portugal, devia ter lido primeiro o não sei quantos. Ainda eram romances, e não me interessa nada contar histórias. Queria pôr a vida inteira dentro de um livro. Claro que não é possível, mas é a única maneira.
A vida toda. Numa frase, num gesto, numa expressão.
Sim, tudo lá dentro. Escrever é como escrever.
Escrever é como escrever ou escrever é como viver?
Escrever é como escrever. O que é O Velho e o Mar? Ele sai para apanhar um peixe, gamam-lhe os peixes, chega à praia e não tem nada. O que é a Anna Karenina? Uma mulher, que se aborrece no casamento, arranja um amante, arrepende-se e mata-se.
Atira-se ao comboio. É preciso explicitar o modo como ela se mata.
A anedota não interessa nada, o problema é explicar como acontece isto. Eu fazia planos muito detalhados, depois percebi que não. Este livro que vou publicar, a única ideia que tinha era: como é que a noite se transforma em manhã. Não tinha mais nada na cabeça. O problema é o começar. Tem imensas falsas partidas, a gente faz uma, e duas, e cinco vezes, até o livro encontrar o seu caminho.
Antes arquitectava, e agora, ao contrário, quer desaprender de escrever para que a mão siga mais livremente, e o livro se revele ele mesmo.
O livro falhava o plano, ia em direcções completamente diferentes daquilo que tinha imaginado. Tornava-se um organismo vivo, com as suas ideias próprias, uma maneira de ser e uma fisionomia. Não eram as personagens sequer. Há pessoas que falam em livros polifónicos; a mim parece-me sempre a mesma voz. Que vem ao longo dos livros e vai ganhando modulações diferentes. Praticamente não há descrições de personagens, descrições físicas.
Os romances têm vários eus que comunicam?
Eles não são romances.
São solilóquios? Diários?
Não sei. Tenho que arranjar uma definição. Parecem sonhos, não é? O romance para mim implica uma história, uma determinada estrutura. Claro que A Memória de Elefante e O Fado Alexandrino são romances, nesse sentido. Estes não têm nada que ver com isso. São livros.
Tem falado do desejo de escrever (n)um estado que é “anterior à palavra”. Como se o que vai revelando nos livros, descobrindo com essa mão cega e mágica, fosse desconhecido para si e aflorasse no movimento da escrita. O que será que está antes? O que é anterior ao medo, à revelação? Como é a face da inocência? Por acaso, havia fotografias em que a sua inocência estava escancarada.
Também depende da maneira como se olha para as fotografias... É isso que esteve a dizer, sim. Não poderia dizer melhor, é isso. Ao mesmo tempo é uma tarefa impossível, porque é tentar transformar em palavras o que é intraduzível em palavras: emoções, impulsos, os próprios nexos. Gosto de adormecer a ler. E quando estou a adormecer, estou a ler o que não está lá. Depois a gente volta à tona e afinal nada daquilo estava ali escrito. Então, é conseguir esse estado. Consigo através do cansaço. As duas, três, primeiras horas são perdidas. É tudo muito lógico-discursivo dentro de mim, os bonecos são muito lógicos, quase cartesianos. (“Cartesianos” irrita-me por causa daquele tipo d’ O Erro de Descartes [António Damásio]. Descartes não era nada daquilo. Um homem que escreve sobre a estrutura dos flocos de neve era muito mais complexo que isso.) É isso, é tentar furar no coração, do coração. Não sei explicar bem.
Explique mais.
Só quando se está a escrever é que é isso. Vivo um pouco assim, mas demora muito tempo a viver assim. Agora é que eu estava bom para nascer.
O que é que quer dizer?
Tenho agora alguma virgindade. Virgindade no olhar, uma capacidade de surpresa muito maior do que tinha há dez ou quinze anos. E também no amor. Demorei muito tempo a aprender o que era o amor. Amor: estou a falar lato sensu. E o entusiasmo. Vivia muito autocentrado, levado pela minha timidez. A existência dos outros foi-me revelada a pouco e pouco. Durante anos era-me difícil conceber relações horizontais com as outras pessoas. Começou na guerra. De repente, percebi que havia os outros, que eram iguais a mim e que eu estava entre eles. É muito difícil ser homem. Uma das coisas boas que tenho em ser homem é que não tenho nenhum atrito em me relacionar amorosamente com homens.
Parece cada vez mais sensível à ternura e à alegria.
Da outra vez em que nos encontrámos [conhecemo-nos num almoço há um ano e meio], havia mais gente à volta e eu falo pouco. Gosto de ouvir e falo pouco. As pessoas estão tão ansiosas por falar... Eu não tenho ansiedade nenhuma. Quando a comunicação é boa, mesmo com um estranho, consegue-se um entendimento não verbal. Um entendimento visceral, vasos comunicantes.
Eu também começo a acreditar no entendimento epidérmico...
É o mais profundo, é tão fundo. Talvez a pele seja a coisa mais profunda que temos. Um crítico francês do século XIX dizia que “não há profundidade, há é uma infinidade de superfícies”. Tem razão. O problema é que, se calhar, temos medo, mas reparamos pouco nos outros. Esse aparelho [gravador] é horrendo.
Fala baixinho, se o puser longe não capta nada.
Sempre falei muito baixo. Detesto gritos e pessoas que gritam, pessoas veementes. É horrível, porque queremos dizer “gosto de ti” e temos vergonha. Eu tenho vergonha. Fica-se muito despido. Estou a falar de coisas que normalmente não falo.
Do quê, exactamente?
Da maneira de viver. A pessoa começa a perceber que a felicidade é possível. No sentido de não haver mal-entendidos entre nós. Entre nós e nós, entre nós e os outros, entre nós e a vida.
Como é que se consegue esse entendimento?
Ai, não sou nenhum sábio, vivo por instinto.
É uma conquista, o abandono de uma grelha racional.
Bom, eu era filho de um anatopatologista. Faz agora dois anos que morreu. Era um homem que quando um dos meus irmãos lhe perguntou o que é que gostaria de ter deixado aos filhos, respondeu: “o amor das coisas belas”. Seja o que for que isto quer dizer. Acho que nunca foi velho. Teve sempre uma capacidade grande de se apaixonar, até ao fim da vida. Por um livro, por músicas, pelo que fosse, por pessoas. A seguir vou deixar de fumar.
Bom projecto! Parece mais novo, agora que emagreceu.
Sinto-me leve. Entro no carro, saio do carro, corro, danço, se me apetecer, pulo. Não podia fazer nada disso e era uma estupidez. Sem me dar conta, estava a matar-me. Pequei muito contra mim mesmo. Agora pareço o Francisco de Assis, que dizia: “confesso que pequei muito contra o meu próprio corpo”.
Falando de São Francisco, lembrei-me de Santo António, e da sua viagem a Pádua.
Eram amigos. Era o único homem que ele tratava por “meu santo bispo”. Mas a gente lê Santo António e fica aterrado, aquela teologia...
Quer falar-me dessa viagem a Pádua?
Não me lembro de nada...
Na fotobiografia elege a viagem como um dos acontecimentos centrais da sua vida.
Claro que sim. Oiça, para uma criança de sete anos... Um homem, como o meu avô, que me fazia festas, beijava lindamente (é tão difícil uma pessoa que sabe beijar), levar-me de carro pela Europa... Portugal, Espanha, França, Suíça, Itália. Foi a pessoa de quem mais gostei até hoje, o homem de quem mais gostei até hoje.
Ele dedicava-lhe uma atenção exclusiva?
Era daquelas pessoas que a fazia sentir-se única. A Anabela está com ela e sente que nada mais existe a não ser a Anabela. Tinha esse dom, essa capacidade. E era genuína, significava um interesse real pelas pessoas e pelas coisas. Eu era o filho mais velho do filho mais velho, tinha o nome dele. Não me pareço nada com ele. Era moreno, bonito, completamente sociável, falador. Eu sou introvertido, tímido, fechado, dou-me com muito pouca gente. Não vou a jantares. Naquele almoço onde foi [antes da entrevista], normalmente estou calado.
Achei normal que estivesse calado.
O que é que vou dizer? As palavras são tão desnecessárias, não é? Conhece melhor uma pessoa se falar com ela?
Tento.
As pessoas falam para si como personagens, quando estão a falar.
Eu estava consciente de que estava a compor uma personagem para mim e para aquele grupo de amigos. Pela minha parte, estava a compor a personagem da que não se deslumbra.
Não deslumbra ninguém, são pessoas que estão a comer.
É fácil esse deslumbramento se estamos com uma pessoa que admiramos. Queremos parecer luminosas aos seus olhos.
Há pessoas que têm uma estrela na testa. São raras. O nosso corpo vai para elas, sem nos darmos conta. Uma pessoa de quem gosto é aquela com quem estou bem em silêncio. Com o Ernesto Melo Antunes, passávamos horas calados e com a sensação de que tínhamos dito imensas coisas. Tenho um irmão com quem funciono assim, ele fala muito pouco. E, às vezes, depois do jantar, andamos ali em Benfica, a ver os sítios onde crescemos. Não é preciso falarmos, não é preciso tocarmo-nos. O Freud dizia que a maneira mais profunda de fazer amor era só com os olhos. Lembra-se de uma entrevista em que o Richard Burton dizia que ele e a Elizabeth Taylor se vinham só de olhar um para o outro? Aquilo parecia-me um exagero, mas é verdade.
Essa tirada é tão apoteótica quanto a entrada da Cleópatra em Roma!
Não vi esse filme. Mas vi uma das entrevistas que deram em conjunto, e a maneira como ela olhava para ele...
Há pessoas que têm uma comunicação fusional.
Se calhar, é a única que vale a pena.
É aquela que vale a pena perseguir?
Ou tem ou não tem. É como um berlinde na mão, é como o talento. O amor não é um fim, é um meio, é uma outra forma de falar. É uma maneira de estar mais perto, e mais perto, mais perto.
Falávamos de um estado anterior às palavras, dessa matéria intraduzível em palavras, que é onde quer chegar.
E depois tentar cercá-la com palavras. Só vale a pena começar um livro se estiver seguro de não ser capaz de o fazer. Torna-se um desafio intenso. Tenta transformar isso numa vitória: “não me vou deixar vencer por um livro”.
Goethe escreve na Viagem a Itália, a propósito do seu visceral entendimento com Nápoles: «Faltam-me os órgãos certos para falar de Nápoles». A relação não passa pelo cérebro nem pela palavra. São outros os canais. Lembrei-me disto enquanto o ouvia. Pensava na “sua” matéria informe, desconhecida, inapropriável, a que tenta chegar.
Agora estava a citar o Aristóteles quase seguido.
Eu?
Que depois o Camões glosa naquele soneto acerca do amor, quando diz: “como a matéria simples busca a forma”. Exactamente o que estava a dizer.
Não tinha a intenção. De qualquer modo, isto faz-me pensar na ideia de princípio. Vamos à ideia dos seus vários nascimentos. Fala de África, da guerra, como um nascimento: “aquilo que eu sou hoje nasceu lá, comecei a ser outro lá”.
No outro dia fui almoçar com eles todos, num almoço de companhia. Os militares falavam em camaradagem. Não é amizade, não é amor... É uma relação tão estranha, tão intensa. Talvez porque vivi com eles as horas mais amargas, mais duras, mais violentas que tive até hoje. Não sabia que estava tão ligado a eles. Era profundamente comovente. Sabe, os soldados tinham 19, 20 anos, os oficiais tinham 23. Não sei se éramos homens. Visto agora, parece-me que éramos miúdos. E, no entanto...
Nos seus livros, a marca deixada pela guerra continua a ser central.
Foi muito importante para mim e continua a ser. Eu era um miúdo precoce, assustava a minha família. E encontrar iguais... É sempre difícil falar disto, é sempre difícil falar de amor aos outros. [O encontro] foi em Torres Novas, o mês passado. A maior parte eram do Porto, de Trás-os-Montes, vinham do Norte, num autocarro, tinha um cartaz à frente que dizia “Os príncipes do António Lobo Antunes”.
“Os príncipes do António Lobo Antunes”?
Aqui há uns anos, o Arnaldo Saraiva, de quem eu gosto, apresentou um livro meu no Porto. Estavam lá vários soldados, furriéis, e ele disse: “Ele, que gosta de pessoas humildes...”. Eu fiquei furioso, disse-lhe: “Não são humildes, são príncipes! Não percebes que estes homens são príncipes?”. E são. Temos tendência a pensar que as pessoas humildes, modestas, ou que não têm aquilo a que chamamos cultura, não são capazes de uma delicadeza tão fidalga; e são. Como fomos educados numa sociedade estratificada, em que os vários níveis quase não comunicam, quase se percebe a origem de uma pessoa até pelo primeiro nome. Eram príncipes. De coragem. No fundo, a coragem é apenas uma forma de elegância. Quando o meu editor estava a morrer com um cancro (felizmente não morreu), viveu aquilo com imensa coragem. Eu disse à mulher: “O teu marido foi muito corajoso”. “Não, não foi corajoso, é um homem elegante.” Deu-me uma lição de vida. Ultimamente fico surpreendido: a maior parte das pessoas são melhores do que eu imaginava. Durante tantos anos fui injusto.
Por que é que esteve zangado com as pessoas durante anos?
Não era uma questão de zanga, era uma questão de um narcisismo idiota, da assunção de uma superioridade imaginária.
A sua superioridade baseava-se em quê? Esse fio narcísico passava por ser o “grande autor”?
Não era o autor de nada, era um miúdo. Baseava-se sobretudo em parvoíce, era um palerma. Estava convencido de que tinha nascido para grandes feitos, que não sabia bem quais eram. Para citar o seu querido Goethe (é um homem com aspectos que me agradam e outros que me repugnam): “a nossa única grandeza possível é não chegar. Não chegar nunca”. Não me apetece nada falar, acho que você percebe sem eu dizer as coisas.
Batota. Quer falar de quê então?
Não gosto de falar muito. Quero que justifique o dinheiro que lhe vão pagar. Acho que as perguntas acabam por ser redundantes.
Não se preocupe. Eu gostava de saber mais coisas.
Acho que já sabe.
Posso fazer perguntas idiotas para ver que reacções desconcertantes daí vêm.
Estou a ser completamente natural, como já viu. Pelo menos ainda não me perguntou se eu escrevo à mão ou no computador.
Já toda a gente sabe isso. Mesmo aqueles que nunca leram um livro seu, já viram uma fotografia dos seus manuscritos.
Não exagere. Não era capaz [de escrever no computador]. Eu não presto para nada, não tenho cartão multibanco, não tenho telemóvel. Deram-me um cartão, daqueles cartões de crédito especiais. Que não uso, porque não tenho a majestade do gesto. O meu irmão João tem razão quando diz que sou um noivo de província. Tenho alma de noivo de província, daquelas fotografias à la minuta. As coisas práticas da vida, não sei lidar com elas.
Gostava de perceber a relação de prazer, de descoberta, de espanto que mantem agora com a vida.
Não sei se mantenho: tenho, às vezes. Não sou muito expansivo para fora, e às vezes sou para dentro, mas é um bocado assustador.
Por que é que é assustador?
Porque uma pessoa fica vulnerável. Fica toda nua. Também acontece quando a gente olha para os outros. Olhar para ver. Faz-me impressão como é que as pessoas vivem tão mal.
Tão tristes ou tão miseravelmente?
Não depende da depressão. A depressão é quando você deixa de pensar e se deprime. Pensar com os sentidos. Quando comecei a dieta, tornei-me diferente. Implicou um sacrifício enorme, deixar as porcarias todas que gostava de comer. Quando estava a escrever a meio da noite e as coisas não me estavam a correr bem, mamava uma tablete de chocolate, inteira, bolachas e bolos.
Saboreava o chocolate ou anulava a frustração?
Nunca me senti frustrado a escrever, a vida tem sido generosa comigo. Tenho estes momentos de alegria intensos. Há alturas em que, quando as palavras são aquelas, está-se a escrever e a chorar ao mesmo tempo. Já me aconteceu.
Já me aconteceu ao ler um livro seu.
Mas são momentos raros, é uma alegria rara. Parece que é um anjo que está a fazer aquilo pela sua mão. Eu não sabia que sabia. Acontece com certas pessoas. Ontem, eram oito e meia, ainda era de dia e vinha um casal a descer a rua que eu estava a subir. E, caramba, a velhice é injusta, a decadência é injusta. Eles não mereciam ser aquilo. E depois, nessas caras, há de vez em quando um olhar, um gesto, e aparece a pessoa que elas são, que está escondida por baixo daquelas roupas, daquelas deformações dos ossos. O terrível não é ser velho, é envelhecer.
O que é envelhecer, é perder a ingenuidade?
A vida trata mal as pessoas. Agora tenho conhecido hospitais, tenho ido lá como doente. Olhamos para as pessoas e vemos o terror e a solidão, enormes, em todas as idades. Os médicos passam sem olhar. Quando era interno fazia a mesma coisa, passava com a bata por aquela gente que estava ali indefesa, à mercê. Quando eu era interno, na cirurgia, uma estagiária, de cada vez que aparecia uma pessoa com uma dor na barriga, abria para fazer currículo nos apêndices! Não sei se ainda se passa assim, não tenho nenhuma razão para pensar o contrário.
Quer dizer que estima cada vez mais a generosidade?
Eu não. A gente é que a vê cada vez mais à volta. As pessoas não são assim tão más. Os maus verdadeiros, puros, é raro encontrá-los.
E essa maldade corta.
Não sei. Às vezes entrelaçam as pernas nas nossas e ficamos muito espantados por não conseguirmos livrar-nos deles.
Porque é que começou a dieta?
Estava a desrespeitar-me demais. E apetecia-me voltar a ser bonito. É engraçado, agora vejo outra vez os olhos das mulheres na rua.
Olham para si porque sabem que é o António Lobo Antunes.
Sabem lá quem é o António Lobo Antunes neste bairro! Não sabem. Não sou locutor de televisão, nada disso. Faço redacções e ninguém me vê nunca nos sítios.
Está a posar.
Não. Estou a falar o mais sinceramente que há. Olhe para estes tipos da tasca onde costumo ir comer: eles não sabem quem eu sou, felizmente.
Porque é que procura o anonimato?
Sou uma pessoa anónima. Não tenho nenhuma importância colectiva. Faço uns livros que espero que daqui a 500 anos ainda dêem trabalho aos críticos. Já cá não estou para ver. Como os Jerónimos. Entre o Camões e o Vasco da Gama! Vivemos em função de eternidades, de maneira que não morremos nunca. Quando temos 20 anos vivemos em função de eternidades que nunca vão passar. O que é tremendo é ver um muro no fim da estrada. E para a maior parte das pessoas, o muro pode estar a uma distância de três metros, mas esses três metros não vão passar nunca. Olhe, a Maria Antonieta no cadafalso, a dizer para o carrasco: “Só mais um minuto”. Aquele minuto era eterno. Aquele minuto era uma vida inteira.
Sonha com a sua morte?
Não. Ultimamente, desde esse almoço, ando a sonhar com a guerra. É muito desagradável. Em regra, não me lembro dos sonhos. Tenho tanta coisa dentro de mim... Agora, acabei um livro e não tenho nada dentro de mim. Estou aqui pobre como um morto. Vou-me aborrecer durante dois ou três meses. E ficar cheio de medo de não ser capaz de fazer mais nada. É um medo constante.
O que é que o entretêm quando não está a escrever? Quando está a escrever, isso justifica as horas.
Mesmo quando estou a escrever faço outras coisas. Claro que faço outras coisas, também vivo. Quando estou sem fazer nada, sinto-me culpado, são muitas horas. É como se me tivessem dado uma coisa que eu tinha que transmitir, e sinto-me infiel. Tenho tempo para ler, mas a maior parte dos livros aborrecem-me. Dão-me vontade de começar a corrigir. Sei lá o que é que faço mais... Olho para as coisas. Não tenho os passatempos que as outras pessoas têm, não jogo cartas, nunca fui à Internet.
Teme a solidão?
A solidão não me custa, nunca me custou. Éramos muitos irmãos, mas eu brincava sozinho. E gosto muito da minha família, tive muita sorte. Tentaram tirar-me o menos possível. O problema da educação não é tanto o que dá, é o que tira. Não sei se era fácil ou não lidar comigo. Ao contrário dos outros, não era bom aluno, não ia às aulas, tinha um comportamento transgressivo. Disse ao meu pai que queria trabalhar numa biblioteca itinerante da Gulbenkian. Já viu o que era ter aqueles livros todos para ler?
Ele sentiria vergonha de o filho escolher um caminho assim?
Ele disse-me: “Ah, se tu queres ser escritor, o melhor é tirares um curso técnico, talvez te ensine a pensar ou te discipline o estudo”. Tinha razão. Os primeiros anos do curso [de Medicina] não gostei porque era cadáver, cadáver, cadáver. Nos últimos, quando comecei a ver as pessoas que sofrem, aí sim, tornou-se apaixonante.
O sofrimento dos outros desperta a ternura, que é um sentimento essencial em si.
Às vezes sentia-me indignado. No estágio de pediatria, em que me puseram ao serviço de crianças com doenças terminais: porque é que crianças de três, quatro anos, iam morrer e sofriam tanto? Qual o sentido disto? A pessoa zanga-se com Deus. Eu zangava-me. Contei isto numa crónica: um miúdo de que gostava muito morreu. O empregado embrulhou-o num lençol. Eu estava na porta das enfermarias e vi o homem afastar-se com o miúdo morto ao colo e um dos pés saía do lençol. Isto continua dentro de mim. Às vezes penso que escrevo para este pé. Chamava-se José Francisco, nunca mais esqueci. Sensação de impotência, não podia fazer nada por ele. E era tão alegre.
Houve um tempo em que foi “tão alegre”?
Sempre fui mais ou menos assim como sou agora. É preciso estar com atenção, porque manifesto pouco. É por pudor. É terrível as pessoas que têm um coração debaixo de cada objecto.
Existe uma expressão inglesa que diz: “I don’t wear my heart in my sleeves” (não uso o coração nas mangas”). Está a dizer que ainda não conseguiu pôr fora o pudor?
Ai, espero mantê-lo. Não quero dar às pessoas aquilo que elas não querem. Como quando deixa de gostar de alguém e dorme na beirinha da cama na esperança de que não lhe toquem. Nunca lhe aconteceu?
Não, felizmente.
Há-de acontecer.
Espero que não.
Já sabia que ia dizer isso.
Não gosto de ser aos seus olhos tão previsível. É a segunda vez que diz isso.
Ou os amigos que telefonam a dizer: “Há que tempos que não te vejo, anda almoçar comigo”, e não lhe apetece nada. E não quer ser indelicada. Levamos a vida a ser abandonados. Todos guardamos dentro de nós uma criança triste. A maior parte das vidas não tomamos atenção a esta criança, com uma sede inextinguível de amor, de atenção. Em todos nós existe a vontade de que gostem de nós incondicionalmente.
Faltava o incondicionalmente.
Mas é. Sem condições, até ao fim. Faça a gente o que fizer. Temos sempre a sensação de que as pessoas que gostavam de nós assim já cá não estão, já morreram e não é verdade. Estão, nós é que não olhamos. Temos medo disso.
De ficar presos, reféns desse amor incondicional e absoluto?
Como é que hei-de explicar? Eu chegava ao hospital bem-disposto, dizia ao porteiro: “bom dia”, e ele dizia-me: “hoje vem bem-disposto”, furioso. As pessoas sentem-se insultadas, como se o outro não tivesse o direito. E como se tivéssemos medo de ofender os outros com a nossa felicidade. Uma pessoa apaixona-se. Os amigos vêm logo com conversas do género: “Só te digo isto por ser teu amigo, toma cuidado, olha que ela, olha que ele”.
No fundo, é só um: “Que inveja tenho de não viver esse milagre”.
As pessoas não suportam vê-la bem. Não suportam o sucesso, seja ele qual for. Não estava a pensar na fama, que não vale um traque. As coisas importantes não são essas.
Porque é que há um desfasamento entre a sua imagem pública e aquilo que realmente é?
As pessoas inventam. A gente não conhece, inventa.
As pessoas inventam que é arrogante, que é muito vaidoso, que tem mau feitio.
Nunca me viu com mau feitio. Não sei o que é que pensam.
Sabe, com certeza.
A mim não me dizem. Não me dizem isso.
Digo eu: diz-se que está reconciliado com a vida e com as pessoas e que agora lhes dá oportunidade e espaço.
Eu não disse que estava reconciliado.
Houve um tempo em que estava recluso, misantropo, não falava com ninguém.
As pessoas não se preocupam connosco. Há um pequeno grupo de pessoas que gosta de nós. Deve haver um pequeno grupo de pessoas que não gosta de nós. Para a maior parte das pessoas somos completamente indiferentes.
O que está a dizer é que mesmo aquelas que se interessam pelo Lobo Antunes-escritor, que admiram, não se interessam pelo seu íntimo reduto.
Eu não vejo as caras das pessoas que me lêem. Vejo na Feira do Livro ou no estrangeiro quando assino livros. É muito agradável ver as caras das pessoas, vê-las, existem. Há uns anos, um homem pousou o livro e disse-me: “Ponha aí o seu nome porque sou eu que lhe pago para você viver”. Tinha toda a razão: se ele não comprasse os livros, eu não podia viver deles.
Houve um tempo em que as pessoas achavam que era outro: inacessível, maldisposto, vaidoso.
Sabe, as pessoas são muito especiais. Foram dizer à minha mãe que o meu irmão João operava bêbedo. Ele nunca bebeu. Antes de conhecer uma pessoa oiço falar dela, e, ao conhecê-la, é diferente. E se hoje três pessoas falarem, fico com três pessoas diferentes. Normalmente não falam para dizer bem. O Oliveira Martins dizia do Costa Cabral: “Pelo ódio que lhe tinham se media o seu tamanho”. Mas não há nenhum motivo para me odiarem.
A inveja é um grande motivo.
A inveja é um sentimento que se auto-destrói. Ninguém sofre tanto como um invejoso. E sofre cada vez mais com aquilo que ele imagina que são os sucessos do objecto de inveja. E mal eles sabem que a maior parte das vezes o objecto de inveja está cheio de dúvidas e tem muito mais incertezas do que ele acerca de si mesmo.
Quando era novo, não tinha dúvidas. Impressionou-me o que há pouco disse: que não se reconhecia nas fotografias.
Eu não olho muito para fotografias. Gosto de ver fotografias de pessoas bonitas. Tenho inveja das pessoas que são capazes de fazer coisas boas: de pintar bem, de tirar fotografias, de tocar piano, de dançar como o Fred Astair. Não gostava de dançar com o Fred Astair?
Gosto mais do Gene Kelly.
São diferentes, não se pode comparar. Há uns anos o Liberation fez um inquérito para ressuscitar o célebre “Pourquoi écrivez-vous?”. Eu disse aquilo que era verdade: porque não sei dançar como o Fred Astair. Como é que ele consegue?
Aquela leveza?
Mais do que isso. É dizer aquilo que não somos capazes de dizer. Lembra-se quando a Cyd Charisse tem um chapéu na ponta dos pés? Meu Deus, se conseguisse escrever assim! Ou escrever como os Impromptus do Schubert em que o silêncio é mantido até ao insuportável, depois vem uma nota salvá-lo. Toda a arte tende para isso: para o silêncio. Conseguir encher os livros de silêncios. O silêncio visível. E depois, se a Emily Brontë fosse viva, estava apaixonado por ela, queria conhecê-la e estar com ela. Uma mulher que tem aquilo tudo nas tripas...
A Jane Austen, gosta?
Gosto. Mas a Emily tem mais tempestade. Gosto daquele vento imenso que há dentro dela, daquelas árvores. Na Jane Austen tudo é mais sereno.
É extraordinário quando descobrimos que temos tempestades dentro de nós, e não o sabíamos.
Uma guerra civil permanente. Cheios de cães que se mordem, que lutam uns com os outros, que se matam. E agora? Tem aí as perguntinhas todas [na folha que tenho no colo]?
Quais perguntas? Isto são coisas que disse e escreveu e que eu recolhi. Disse uma coisa espantosa: “Toda a nossa vida é como escrever sem borracha”.
Não pode voltar atrás e apagar. É uma pena. Então não é? A quantidade de asneiras que fiz, a mim e a outros.
O que é que gostaria de poder refazer?
Acho que teria vivido tudo da mesma maneira. Não sei. Não faço a menor ideia.
Agora é a minha vez de dizer que esperava que dissesse isso.
Não tinha fugido quando a minha avó me dava a mão e eu ficava todo hirto. Me fazia festas nas mãos e eu via as mãos dela, tinha rugas. Ficava aflito.
Aflito porquê e hirto porquê?
Porque quando nos dão a mão de uma maneira desinteressada desconfiamos sempre. Achamos sempre que há alguma coisa por trás. Ela, coitada, o que é que podia querer de mim? Não tinha nada para lhe dar, era um miúdo.
Já me tinha ocorrido a palavra gratuito.
Para ela era sempre sentido, era amor. E eu talvez me assustasse de tanto amor. Ficamos desprevenidos em face disso. A generosidade não é muito frequente e o amor também não. Quando o meu avô me abraçava na rua e me dava beijos, eu pensava: “Vão pensar que somos um casal de maricas”, e esperava que aquilo acabasse o mais depressa possível. E agora tenho saudades loucas de quando me punha a mão no pescoço. Dizia “António” de uma maneira tão boa. Ou de quando telefonava para o meu pai e o meu pai tinha uma voz maravilhosa.
Como é que era?
Muito bonita, sensual, perturbadora. A minha mãe diz que nenhum dos filhos herdou a voz do pai. Servia-se da voz para seduzir. Era feio e muito sedutor. Tinha qualquer coisa que agradava às mulheres, isso a que as pessoas chamam charme. É evanescente e indefinível. Não tem que ver com as feições nem com a maneira de ser. Certas pessoas têm e outras não. Até às netas fazia charme. Se houvesse cinco netas na sala, fazia charme a seis.
Sente muitas saudades dele?
Não. Nem sei o que sinto por ele. Alguma inveja porque era um homem que nunca se aborreceu e tinha uma grande capacidade de entusiasmo. É evidente que foi importante para mim. Escrevi uma crónica quando morreu que diz exactamente o que sinto por ele, e não mudou. A palavra amor não sei se é uma palavra que possa aplicar. Deixou-me muitas coisas escritas sobre ele. Fez-me impressão porque nunca tínhamos conversado. Na minha família não se falava das coisas íntimas. É tudo...
Tácito?
Sim, undersaid. O sofrimento..., era uma coisa de que não se falava. Talvez fosse uma forma de elegância. Eu sentia alguma falta disso. Apetecia-me pôr a cabeça num colo, mas nunca havia muitos colos disponíveis, nunca há. Ou então há e temos medo de lá pôr a cabeça. Ou que ponham a cabeça no nosso. [hesitação]
O que é ia dizer?
Parvoíces. Isso não pode aparecer nos jornais.
Porque?
Porque as pessoas têm direito aos livros, não têm direito a mim. Isto não parece uma entrevista, parece um namoro, é impublicável.
Está a tentar namorar comigo?
Não. Sei lá. Acho que não se tenta namorar, ou se namora ou não se namora.
Eu não entendo isto como um namoro.
As pessoas não são para se cercar como fortalezas sem víveres. São para se entrar lá dentro. Não é ficar à espera que morram à fome dentro da cidade. Quando estava a falar em namoro estava a falar em dizer coisas que normalmente não se dizem para os jornais.
Li algumas entrevistas, preparando-me para esta, e tenho ideia de que progressivamente se tem exposto mais.
Isto é uma exposição?
Na entrevista há momentos em que vai falando cada vez mais baixo, cada vez mais baixo; e existe uma coincidência entre o tom e a interioridade daquilo que vai dizendo.
Sempre falei baixo porque cresci num sítio em que se gritava muito. Não devo ter gritado mais do que três ou quatro vezes na vida.
O que é que foi tão grave que o fez gritar e perder a cabeça?
A vez em que me enfureci mais foi na guerra. Por causa de um oficial aconteceram coisas más. Eu pensava que a expressão “borrar-se de medo” fosse uma figura de retórica, e afinal é verdade. O espectáculo da cobardia física é horrível. Claro que tinha medo, tinha medo que me fartava. A certa altura deixei de ter medo de ter medo e as coisas passaram a correr melhor. Houve uma altura em que éramos bombardeados às onze da noite. Comia-se às cinco. Às seis era noite naquele sítio, perto do Equador. Até às onze, até começar a metralhadora a que a gente chamava a costureirinha, taque-taque-taque, era uma ansiedade muito grande. Depois era uma calma enorme. Esses momentos de espera eram terríveis. Acho que gritei essa vez, pouco mais. A pessoa, quando grita, fica feia. Os olhos desorbitam.
E fica-se cansado. Exaurido, mesmo.
É uma experiência que não tenho. Cresci num bairro pobre, portanto havia muita gritaria. As mães chamavam os filhos aos gritos, ouviam-se na rua. Ou maridos que voltavam bêbados e havia cenas descomunais. Esses ainda os oiço, esses gritos.
Essas mães queriam os filhos com fúria? Imagino que isso contrastasse com a sua experiência.
Na minha família também gritavam que se fartavam, do lado do meu pai; do lado da minha mãe, as pessoas eram mais calmas. Tenho uma memória mais ou menos vaga disso.
Se tem uma memória de elefante, como é que essa é vaga?
A minha memória é muito selectiva. Sei tantas coisas de cor, que tantas pessoas fizeram, e não sei de cor uma linha que tenha escrito. Quando acabo quero é esquecer o livro para poder começar outro.
Outra frase sua: “Inquieta-me o tempo que tenho à frente. [Sinto] uma angústia que tento preencher com trabalho”.
A gente não diz as coisas assim. As entrevistas são situações muito peculiares, artificiais. Há sempre uma tendência para posar de perfil, dar uma imagem boa ao jornalista e, através do jornalista, às pessoas que irão ver ou ler. É muito difícil que a pessoa seja realmente aquilo que é. É uma representação constante. De parte a parte. E, por vezes, um jogo de poder. A arte da entrevista é muito difícil. Para haver uma boa entrevista a corrente tinha que passar entre as pessoas. Provavelmente, só ao fim de vários dias é que era possível. Até apanhar a pessoa demora muito tempo, porque ela esgueira-se e foge o tempo inteiro. Deve ser divertido estar no lugar do jornalista e ver o outro a espernear como uma lagartixa. E o entrevistado tenta dar a impressão de que não foge e tenta mostrar só aspectos agradáveis, ou que na ideia dele são agradáveis.
Queremos sempre que gostem de nós, no fim de contas.
Não sei bem se é gostar... Acaba por ser, mas é um tipo de gostar que é pouco importante.
Eu achei que íamos falar sobre inocência e medo.
Então fale.
Também falámos disso. Gosta de falar disso?
Se gosto? Não. Desde que começámos estou ansioso que isto acabe.
É assim tão desagradável?
É. Não é a vida. A Anabela a fazer o papel de jornalista e eu a fazer o papel de escritor que está a falar de coisas. Não é essa a imagem que eu tenho de mim para mim mesmo.
Então acabámos.
Acho óptimo.
Partes da entrevista foram publicadas nas revistas Espiral do Tempo e Selecções do Reader’s Digest, em 2006.