António Mega Ferreira
Esteve para chamar-se «História Universal do Amor». Depois, «Winnie», o nome da personagem feminina. E por fim, simplesmente, «O Amor».
A novela, cuja génese remonta a um tempo em que se escrevia em máquinas mecânicas, foi escrita em quatro dias; corresponde a uma elaboração sobre a solvência que o amor provoca. De permeio ficou o tempo em que se vive o amor.
Este não é um livro autobiográfico, declara o autor. A não ser que ele seja Winnie, «Winnie c’est moi», a mulher de 50 anos que vive o amor com um homem substancialmente mais novo. (Substancialmente quer dizer 30 anos). A não ser que ele esteja dissolvido, enquanto projecção de si, em todos os personagens. A não ser que a definição de amor seja a sua vertida para a existência destes personagens. Definição, em qualquer dos casos, que não pretende ser conclusiva.
Eis o Amor segundo António Mega Ferreira.
«Todo o amor é um acto de identificação e reconhecimento. Encontramos na pessoa amada, não um reflexo, o que seria pobre, mas uma ressonância da nossa própria alma». É o que pensa acerca do amor?
Esse é o leitmotiv da novela. Na novela escreve-se a partir de uma ausência. O narrador só escreve depois de o objecto do amor ter morrido. Para aprender o que é a essência de um amor é preciso uma enorme distância. Uma coisa é viver o amor, outra coisa é percebê-lo.
Uma coisa é a essência do amor, outra a existência do amor? A essência enquanto dimensão pura e a existência enquanto concretização?
Vivemos um amor, mas só o percebemos depois, muito depois. E é um mecanismo de identificação e reconhecimento de nós mesmos. É o que pretendo transmitir com a enigmática frase final, quando se diz que ela lhe deixou o sótão e todos os seus segredos e ele tinha finalmente todo o tempo do mundo. Achei que talvez seja isso o amor: ter todo o tempo do mundo para poder rememorar, evocar, e portanto perceber.
Esse “todo o tempo” corresponde a uma liberdade, a uma coisa à margem do tempo?
Isso. Em última análise, na novela, podemos interrogar-nos se a Winnie existiu, se o objecto físico do amor existiu. Não é isso que está em causa. Perceber a essência do amor não significa necessariamente a existência do objecto desse amor.
Porque o objecto do amor é sempre a outra parte de nós? Ou seja, o que é que amamos no outro, e não é isso sempre uma projecção de nós mesmos?
Claro. É a ideia do reconhecimento e da identificação de nós mesmos em função do objecto amado.
Dito desse modo, parece que não existe senão o amor egoísta, parece que não nos amamos senão a nós no outro.
O outro é sempre um guiador. Um guiador que permite, quando mais tarde tentamos perceber a essência do amor, reconhecermo-nos e identificarmo-nos. Na altura em que um grande amor é vivido não é isso que está em causa; não se trata de percebê-lo, mas de vivê-lo. Vivê-lo mergulhando na alteridade absoluta, dissolvendo-nos no outro. Noutro plano, quando se evoca um grande amor, ao fim de muito tempo, a única coisa que interessa é perceber como é que estivemos nesse amor.
O personagem da novela sente um choque quando, ao percorrer os cadernos dela, se descobre praticamente inexistente no seu discurso, o que quer dizer na sua vida. A questão é saber como é que o outro nos transporta no seu amor.
Exactamente. Essa surpresa da sua inexistência no discurso dela, leva-o a interrogar-se sobre o lugar que teve nela, e na vida nela. Creio que o lugar está definido com a última e suprema dádiva que ela lhe faz. Ele foi, possivelmente, o homem mais importante da vida dela.
Felizmente não há respostas taxativas, nem para os enigmas da novela, nem para o próprio amor. Lembro-me de ter lido uma entrevista sua na qual manifestava indignação porque andavam a tentar descobrir porque é que o chocolate nos agrada tanto. A sua resposta era «Porque é bom, porque dá prazer», ponto. Não é preciso saber mais nada.
O hiper-racionalismo e hiper-cientismo contemporâneo horroriza-me. Em grande parte, empobrece o prazer. Que é ilimitado, exclusivo, possessivo e irracional. Penso que tem que ver com a forma como concebo a ficção: a ficção não dá nenhuma resposta. A função da ficção é interrogar. Esse horror é o horror pelas coisas definidas, branco e preto, uma moral afirmada, etc. A melhor parte da nossa vida joga-se em zonas de cinzento, em zonas de penumbra.
Na irracionalidade?
Na zona de penumbra que contém em si mesma uma grande dose de irracionalidade. A melhor forma de viver isso é compreender o que é que essa irracionalidade nos traz como vivência.
E há o modo como nos descobrimos na irracionalidade.
É uma forma de compreendermos que, em última análise, o mundo é largamente inexplicável.
É inexplicável, e por isso extraordinário, pensar como é que entre milhões e milhões de pessoas, amamos justamente aquela. Não há nunca uma justificação cabal para a escolha.
Só pode ser assim. Aliás, é curioso que quando estamos numa situação de amor, de paixão, etc, há momentos em que tentamos objectivar e construímos um discurso racionalista, «Eu gosto dela por isto e por aquilo». Só que às vezes temos gostos completamente contrários e gostamos também muito da pessoa... Temos uma tentação de produzir um discurso racional sobre uma coisa que é largamente irracional. A escolha afectiva é largamente irracional, no domínio do amor. No domínio da amizade, é diferente.
O que traduz essa tentativa de racionalização que tentamos imprimir ao amor? É uma defesa, não é?
É uma tentativa de domesticar, de tornarmos apropriável, intelectualmente, aquilo que tememos, e que na verdade não é apropriável. Vivemos numa civilização dominada por essa vertigem de controlo: controlo das emoções, das situações, da doença, da morte. É o espírito do tempo. Não é o meu espírito. Evidentemente na vida social a necessidade do controlo dessas situações é imperativa; o que ela tem de compreender é que deve ceder em determinados domínios a uma certa irracionalidade. Que, no fundo, acaba por nos reconciliar com a própria vida.
Como assim?
Pelo menos eu, quando penso na minha vida, penso nas coisas que fiz racionalmente e satisfazem-me umas, outras menos; mas as coisas que me satisfazem mais são as que obedeceram a impulsos, que não são racionalizáveis. Por exemplo, como é que esta novela foi escrita? A ideia original existe há 16 anos, as primeiras folhas estavam escritas a máquina de escrever mecânica; estiveram 16 anos completamente adormecidas, com algumas camadas sobrepostas (escritas a máquina eléctrica e outras a computador). Mas agora, num impulso, escrevi a novela em quatro dias. De repente, «Onde é que tenho aquelas folhas da Winnie?». Ceder a esse impulso foi o melhor de ter escrito esta novela.
O que o extasia é estar sob?
Justamente, é estar sob a influência de. É o largarmo-nos. E no exercício da escrita é uma dupla tensão: é o deixarmos ser conduzidos pela imaginação, e ter ao mesmo tempo uma enorme vigilância sobre a própria escrita. Essa tensão causa algum sofrimento, mas um grande prazer também. Não está provado que alguns dos melhores prazeres não passem pelo sofrimento.
É pela dor da ausência de que se descobre o prazer da presença de.
É assim que se mede, se avalia o que isso foi.
Disse que tudo o que é preciso saber sobre as relações amorosas estava no «Ligações Perigosas» do Laclos.
Estão lá as declinações todas. Na novela, nunca se consegue perceber muito bem o que é que eles encontravam um no outro. Nas descrições que ele faz podemos pensar que admirava uma coisa nela: o facto de ser muito mais velha, e de ele ser um rapaz; portanto, a vaidade pessoal do jovem macho. Mas depois percebe-se que não é só isso: fisicamente, desejava aquela mulher. Depois salta para outra dimensão: ela transmitia-lhe um conjunto de conhecimentos que o fascinavam. Ou seja, o que é que realmente nos faz amar no amor? Possivelmente uma parte de cada uma destas coisas. Possivelmente, nalguns casos, apenas uma delas.
As relações parecem resultar muitas vezes de equívocos: do que se procura, do que é, do que se prolonga.
Das projecções que se fazem. Da fantasia, da ilusão do que procuramos no outro. Quase tudo o que se pode saber sobre o amor está em meia dúzia de obras de arte, e, porém, o amor é sempre uma coisa diferente.
«Para saber de amor, para aprenderle, haber estado solo es necesario», como se escreve na epígrafe. Posto no maniqueísmo da essência e da existência, o amor na existência é possível?
Não. O amor é impossível. Como o vimos construindo há séculos, é uma impossibilidade. É um equívoco extraordinário, gigantesco, absorvente. Possivelmente a maior parte das coisas sobre as quais construímos a nossa civilização e cultura são impossibilidades. Não as torna menos gloriosas. Pelo contrário: lutar por uma impossibilidade é uma forma superior de luta. Mas, exactamente porque não é controlável, racionalizável, etc, o que é o amor? Quando se chega ao fim deste livro pergunta-se o que é. E todos os livros hão-de acabar a perguntar, finalmente, o que é.
No livro está explicitada a impossibilidade: é porque há uma ausência que há a consciência de.
É sempre tarde para o amor. Quando percebemos a essência do amor, ela já não existe.
Quando percebeu isso?
Quando escrevi. Toda a escrita é uma tentativa. É um ensaio, nunca é um relatório. A escrita tem uma capacidade de iluminação do real, que as outras artes também têm, à sua maneira. Se não conseguisse escrever saberia muito menos sobre mim e sobre o mundo. Fui descobrindo a escrever.
Quer dizer que aos 50 anos perdeu definitivamente a inocência em relação à possibilidade do amor?
Terei perdido a inocência, mas não perdi ainda a capacidade de me deslumbrar. Significa que até ao fim a capacidade de me deslumbrar e apaixonar continua a existir. Talvez tenha perdido a inocência; pelo acumular de experiências, e porque o tempo passou, porque é possível olhar. Mas dizer que o amor é uma impossibilidade é enunciar uma verdade relativa, não há verdades absolutas nesta matéria.
Sabe falar com homens sobre o amor?
Não. As coisas mais profundas da minha vida converso-as com as minhas amigas, não com os meus amigos. Eu não me escondo às minhas amigas, sou capaz de ser completamente outspoken..., até ao pormenor. Encontro uma compreensão que tem que ver com uma enorme capacidade de ouvir e responder. Não sei se a palavra certa é compreensão... Pode ser afecto. Mas é um afecto diferente do que os homens sentem.
Porque é que acha que cada vez mais as pessoas fogem do tema do amor, e disfarçam falando de sexo, de conquistas?
Porque as pessoas evitam falar do que as põe em causa. O amor, porque é incompreensível, põe-nos profundamente em causa, descentra-nos. Daí que tentemos quantificar, catalogar as emoções violentíssimas que o amor desperta. Ao catalogar achamos que estamos a controlar racionalmente o que é irracional.
Trata-se de não ficar refém. Na história de amor do seu pai e da sua mãe, a primeira, na sua aprendizagem de relação amorosa, quem amava mais quem?
Durante muitos anos achei que a minha mãe amava mais o meu pai. Hoje em dia, apesar das vicissitudes, discussões, problemas, acho que tinham um pelo outro um sentimento de uma dependência recíproca. Quando o meu pai morreu a minha mãe tinha 49 anos, nunca mais teve nenhuma espécie de relação – não lhe fazia sentido. E o meu pai viveu muito em função de uma coisa que admirava na minha mãe, que era a sua enorme energia. Não tenho dúvidas que se amavam profundamente.
Então o amor pode ser possível.
Bom, quando digo que o amor é uma impossibilidade, é uma noção relativa... Estava a pensar na matriz do amor na nossa cultura. Se me perguntar «Porque é que eles se amavam?», não sei. Sei que se amaram até ao fim. Mas a vida daqueles dois é uma impossibilidade amorosa de acordo com os cânones.
Consegue identificar, como este homem e esta mulher da novela, a pessoa da sua vida?
Acho que sim. Não vou dizer o nome. A mais marcante, a mais recorrente, a que contribuiu para virar a minha vida. É disso que se trata.
O amor traduz plenitude e singularidade? Plenitude porque há no processo de identificação um reencontro com a plenitude que nos constitui, e singularidade porque dentre todas é absolutamente aquela.
É. Vamos retomar a distinção do início da conversa: o amor é vivido em plenitude como existência e vivido em singularidade como essência.
Publicado originalmente na Revista Elle em 2005