António-Pedro Vasconcelos
António Pedro Vasconcelos chegou, pontualíssimo, em cima das três. Estava em Lisboa por dois dias. Regressaria, depois, ao Luxemburgo para concluir a montagem do seu novo filme, «Jaime». Pela tarde fora, fumou um interminável charuto. Prestes a começar a entrevista, falámos de um casal que conhecemos e de como ela sacrificou o talento e os melhores anos ao amor que sentia por ele. Masoquista, declara António Pedro. Por isso me lembrei de lhe perguntar pelo escritor Sacher Masoch.
Conhece o Sacher Masoch?
Conheço, mas não li. Li o Sade, conheço-o todo. Foi um dos meus educadores, um dos autores que mais marcou a minha formação. Falo dos meus 18 anos. Libertino vem de liberdade. O que aprendi no Sade foi a liberdade: «Ni Dieu ni Maître». Muitas vezes me pergunto se não tivesse lido estes livros, se tivesse lido outros, se seria outra pessoa. Lembro-me perfeitamente de um programa de rádio chamado «Leituras» do Fernando Curado Ribeiro; a entrevista da semana era ao José Augusto França, pediram-lhe para escolher três autores e um deles foi o Sade, que ainda não tinha lido. Os outros devem ter sido Stendhal e Tolstoi.
Conhecia-os?
O Stendhal foi uma das minhas primeiras descobertas. Isto coincide com a leitura de um livro decisivo para mim, «A cabra cega», do Roger Vailland. O Vailland lançou-me para o Stendhal, para o Laclos e para o Sade.
O jogo da relação amorosa e interpessoal é comum a todos eles.
Isso e o ateísmo. Nunca tive fé, mas ensinaram-me que era preciso ter. Não sentia fé; mas sentia, por exemplo, apetites sexuais. O sentido do catolicismo escapava-me um pouco. Como não tinha fé, esbarrava sempre nisto. Os meus pais tiveram percepção desta crise. O meu pai queria que eu fosse para Direito para ser advogado ou juiz (ele era juiz, o meu avó era juiz). Eu não tinha vocação nenhuma para aquilo.
Tinha essa noção?
Tinha a noção de que não me interessava. O meu pai percebeu que me interessava por ler, ouvir música, manter discussões filosóficas. É preciso situar estes 18 anos, estamos a falar de 1958. Ouvia muita música clássica, jazz e cançoneta francesa. Foi graças ao Brassens e ao Leo Ferré que aprendi a falar francês. Mas, então, os meus pais perceberam a minha crise de fé e combinaram com os meus tios que viviam no norte a minha ida para um colégio interno de jesuítas em Santo Tirso. Acolhi isso muito bem. Achei que devia uma chance à religião.
Que idade tinha quando entrou para o colégio?
Dezasseis. Acontece outra coisa: tinha vivido sete anos em Leiria (onde nasci), sete anos em Coimbra e aos 14, quando vim para Lisboa, o choque foi muito grande. Deixar Lisboa não me custava muito. Mas era sobretudo a ideia de pôr à prova as convicções que me tinham ensinado. Encontrei um professor que foi o primeiro pai putativo, o padre António Magalhães. Era uma espécie de católico renascentista e não limitava as leituras.
Continuava com os apetites sexuais?
Sexuais e outros.
A imagem mais pecaminosa que me ocorre é a de um rapaz que está a dar uma chance à fé e que continua com todos os devaneios normais à adolescência, como a masturbação, num colégio interno.
Ah, sim, é um bocado como o Eça n’ «O crime do padre Amaro». A certa altura o personagem vê na Virgem imagens eróticas.
Os seus apetites chegaram a tanto?
Era mais a Sofia Loren. É evidente que a adolescência é a descoberta da libido. A sensualidade eu sabia o que era, a fé esforcei-me por tentar perceber, mas não percebo o que seja. Graças à minha curiosidade e a esse professor acabei por ler livros, não fiz caso do Index. O Sade todo libertou-me de preconceitos. O primeiro livro que li dele foi «La Philosophie dans le Boudoir» que comprei num leilão no Chiado; arrematei um exemplar, custou-me uma fortuna, todo o dinheiro que consegui juntar.
Tinha uma mesada?
Não, comecei a ganhar dinheiro muito cedo. Como tinha jeito para desenho, comecei a fazer banda desenhada e capas para livros. O meu pai estava ligado ao regime, era inspector do trabalho. Havia um jornal das Casas do Povo e fiz uma banda desenhada sobre a História de Portugal.
A ligação do seu pai ao regime incomodava-o?
Não. Tinha muita ternura e respeito por ele. Ele não era um elemento activo do regime. Apesar de ter convicções de direita e de ser salazarista, era bastante tolerante. Eu tinha algum desgosto, por ser antifascista e de esquerda.
Quando é que começou a germinar em si o antifascismo? Há uma espécie de rebeldia em relação à casa paterna.
Saí de casa muito cedo, tinha 20 anos.
Para estudar?
Não, para viver uma paixão com a mãe dos meus dois primeiros filhos.
Tinha a bênção do seu pai?
Não. Lembro-me perfeitamente, cheguei um dia a casa e fui fazer a mala.
O que é que levou?
Levei os livros todos, os discos, as roupas, o que tinha. Lembro-me de me estar a vestir e a calçar: «Onde é que tu vais?», «Vou viver a minha vida». Achei que era a única maneira, sempre fui de decisões assim.
Eu não era um homem, era um miúdo. A minha vida é um bocado atípica. Não fui um perseguido político porque nunca tive uma actividade ligada a um partido. Nunca fui do PC em parte graças ao cinema e aos livros. Fui aliciado, como toda a gente.
As pessoas que o aliciaram sabiam da ligação do seu pai ao regime. Você era, por isso, mais apetecível?
Não. O meu pai nunca teve ambições políticas nem militância. Era de convicções salazaristas e anti-democráticas, mas nunca me tentou convencer. Fui formado fora de casa. Apesar do carinho e respeito recíprocos, achei que o que os meus pais me ensinaram não me servia. A «Beatrix» do Balzac, que agora estou a ler, é a história de um jovem educado numa cidade de província, monárquica e católica, que descobre outro mundo. Há uma altura em que não há nada a fazer. Sobretudo, foi o primado da razão. Não aceito nada que a razão não sancione.
O amor ou a paixão percebem-se racionalmente? Não é uma contradição, ser razoável e responsável num estado de paixão?
Costumo dizer que sou responsável pela minha irresponsabilidade. A paixão pode conduzir-nos a excessos e estou sempre disposto a pagar. Seguir essa paixão é uma escolha minha (não estamos a falar só de paixão sentimental ou sexual). A minha vida tem sido uma procura, um pouco inconsciente, de um equilíbrio entre os estóicos e os epicuristas.
Com essa altura e esse aspecto deve ter sido objecto de muitos afectos. Como é que fez a conjugação harmoniosa de tudo isso?
Vivi uma vida um pouco louca. Tive grandes paixões, paixões fugazes e paixões sólidas. Vivo hoje conjugalmente, sou um homem casado. Tenho dois filhos da primeira mulher e um filho deste casamento.
Há quantos anos é casado pela segunda vez?
Há 25. Não se esqueça que tenho quase 60 anos. Assentei aos 35 por escolha. O sexo só é pouco interessante.
As descrições do Sade enfadavam-no?
Não, ajudaram-me a perceber que, ao contrário do que o romantismo nos fez crer, o amor, a paixão, o desejo e o sexo não são necessariamente a mesma coisa; e uma enorme liberdade em relação aos costumes. Sou tolerante desde que as pessoas estejam à altura das suas escolhas. A atitude que me repugna mais resume-se na história do menino que mata o pai e a mãe e depois vai ao juiz pedir clemência por ser orfãozinho.
E se matar só o pai? Estava a pensar no paradigma edipiano.
Não tenho nenhum reflexo edipiano. O meu pai não era uma personalidade suficientemente forte para precisar de o matar.
Todo o seu percurso é antagónico ao do seu pai.
Não era ele, era o mundo que ele representava. O meu pai era bondoso e desprendido, tinha um desprezo aristocrático pelo dinheiro. A minha mãe era muito mais pequeno burguesa.
O Álvaro d’ «O lugar do morto» era o seu alter-ego?
Um bocado.
Lembrei-me do Álvaro por causa da ideia da paternidade e de como ela é vivida.
Corresponde a uma fase da minha vida.
Os filhos entregues à secretária?
É típico da minha geração. O final dos anos 60, desde a pílula e até à sida, foram o período de maior liberdade sexual na história da humanidade. Na minha adolescência, Lisboa era a miséria sexual. As pessoas ou casavam ou iam aos bordéis. Era muito difícil ter uma vida sexual sã, normal.
Como foi a sua primeira vez?
Foi, como a de quase toda a gente, no bordel. Mas eu casei muito cedo. A minha educação amorosa e sexual foi muito mais saudável porque foi feita numa relação em que o amor e o sexo coincidiam.
Acha-se um charmeur?
Não.
Por favor, basta olhar para a forma como se veste, se perfuma.
Sempre gostei de me vestir bem.
Onde comprou o seu casaco?
Devo ter comprado em Paris ou em Nova Iorque, onde há medidas para mim. Não tenho paciência para ir a alfaiates. Os alfaiates são óptimos, mas não tenho tempo nem paciência. Se vejo um casaco de que gosto, tenho dinheiro e me apetece comprar, compro.
O seu casaco é cachemira, deve ter custado umas boas dezenas de contos.
É possível, privo-me de outras coisas. Tenho em relação ao dinheiro e ao que ele representa – o poder, quase sempre – um desprezo absoluto. Sou totalmente desprovido do sentido de propriedade. Por outro lado, somos completamente condicionados pelo dinheiro.
Suponha que está numa fase em que não tem dinheiro para os charutos. Deprime-se?
Nunca deixei de satisfazer os meus apetites. Quando comecei a fumar charutos tive de sacrificar outras coisas; ou tive de escrever mais um artigo por semana.
Não lhe é difícil fazer dinheiro?
Nunca tive um tostão, nem no banco nem em lado nenhum, nem tenho coisas. Mas sou totalmente responsável em relação ao dinheiro. Desde que saí de casa, todos os meses tenho de arranjar dinheiro para viver e inventar maneira de ganhar a vida. Tenho a facilidade de fazer várias coisas, se não tivesse provavelmente teria feito mais filmes. Como não sou obrigado e não estou disposto a aceitar certos constrangimentos, faço menos filmes. Agora vou ter de resolver o problema de já não ter todo o tempo à minha frente. Quando comecei a descobrir que levava cinco anos entre cada filme que se parecesse um pouco com o que queria fazer, pensei que com um bocado de sorte faço um aos 65 e talvez faça outro aos 70 e que nessa altura já estou provavelmente gagá. Não é vida.
A sua auto-estima não sai abalada dessas conjecturas?
Não. Não é que não me leve a sério, não me dou é muita importância. Ainda ontem em Paris comprei uma revista onde vinha uma entrevista ao Paulo Rocha e fiquei abismado. Porque ele fala de si próprio como se fosse o Shakespeare. A modéstia é uma coisa admirável. Estou a ter esta conversa consigo e não gostaria que pensassem que me estou a tomar por um Orson Welles ou um Rossellini. Não há nenhum autor português que tenha uma obra.
Nem o Manoel Oliveira?
O Oliveira tem em número e teve a sorte fantástica de ter sido adoptado pelo regime democrático e se ter tornado num cineasta vitalício. O papel dele na história do cinema vai ser irrisório ao lado dos grandes mestres.
Tem um eco internacional.
Mas não tem uma projecção internacional, isso é um mito. O Oliveira é conhecido em três jornais de Paris e em dois festivais. Não tem público.
Gostaria que o seu novo filme fosse falado nesses três jornais de Paris?
Os americanos fizeram filmes sobre índios para serem vistos pelo mundo inteiro. Nós fazemos filmes sobre índios para serem vistos pelos índios. Isso não me interessa. Interessa-me que o público português me veja, até porque começo por ser português. Gostava que o meu filme tivesse sucesso, não o escondo, ao contrário de muita gente que diz que o público não interessa.
O Paulo Rocha integrava as tertúlias do café Vá-vá com o Fernado Lopes, o João César Monteiro, o Fonseca e Costa. Viveram talvez o período mais marcante da vossa vida e agora praticamente não falam uns com os outros.
Olhe que falamos. Não falo com o César. No entanto, é de todos aquele por quem tenho mais admiração.
Fala com o Paulo Rocha?
Falo. Não nos frequentamos, que é diferente. Falo com o Seixas [Santos], com o Saboga, com o Fonseca [e Costa], com o Fernando Lopes.
Foi a usura, tal qual a usura conjugal, que fez com que se afastassem uns dos outros?
Vá ver os Impressionistas ou a Nouvelle Vague. O tempo encarregou-se de mostrar que cada um tinha a sua personalidade e quase todos entraram em choque uns com os outros. Leia a correspondência do Truffaut com o Godard. O aspecto pessoal das zangas é desagradável e doloroso. As divergências estéticas são saudáveis e normais. Esta é uma casa muito pequena e as pessoas acotovelam-se todas.
Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.
O problema é a corrida aos subsídios. Este ministro decidiu atribuir subsídios a fundo perdido. Não estou a dizer que o Estado não deve intervir e apoiar. Num país como Portugal, se não interviesse não havia filmes. Ou então as pessoas iam para os grandes centros tentar a sua sorte. O problema são os critérios com que se atribuem os subsídios, que são completamente arbitrários. Estabelecem uma política do gosto com dinheiros públicos.
É possível ser de outra maneira? Como é que se atribui senão pelo gosto?
Não estou de acordo com estes critérios. Recusei-me a produzir este filme. O produtor é estrangeiro. Se der dinheiro quem ganha é ele. Em toda a minha carreira, pelo conjunto dos cinco filmes que fiz, não recebi como realizador aquilo que o Manoel de Oliveira recebe por um filme.
Quando ocupava um lugar de decisão a vida de alguns realizadores era decidida por si.
Nunca fui presidente do IPACA. Tentei – e demiti-me quando percebi que não conseguia – estabelecer outra política: criar condições para que houvesse maiores possibilidades e que os critérios de atribuição dos dinheiros públicos fossem o mais rigorosos possível. Tentei começar por regular o mercado e ter uma intervenção a nível europeu (porque nada se resolve exclusivamente em Portugal). Não tinha responsabilidades directas. Se me tivessem proposto, se calhar, tinha aceitado.
Não foi uma situação complicada para si, um socialista?
Não sou socialista, sou de esquerda. Mas isso não constitui uma contradição. Tenho a minha liberdade e só faço o que a minha consciência puder sancionar. Não estamos no fascismo. Durante o fascismo recusei tudo o que pudesse ser um compromisso.
Foi por causa do dinheiro que decidiu participar nos «Donos da Bola»? Provavelmente, a maior parte das pessoas que vê o programa não faz ideia quem é o Marquês de Sade.
Gostava de que este filme fosse visto pelo público anónimo. Não me interessa nada ser reconhecido por três jornalistas franceses ou portugueses e o público não me ligar nenhuma. O cinema é uma arte popular e o mais importante é comunicar. Dirijo-me a um público que não lê o Marquês de Sade. Fui para os «Donos da Bola» no último momento em que era possível falar de futebol em Portugal. Fui por duas ou três razões: porque gosto muito de futebol, porque me dava uma oportunidade de ganhar a minha vida e, antes de tudo isto, porque alguém me convidou. A RTP não me convidou para nada. Se me tivesse convidado para fazer um programa de livros, tinha preferido.
Consegue dar um exemplo de um programa de que goste na televisão portuguesa?
Acho que a Judite de Sousa faz boas entrevistas. Gosto, de uma maneira geral, do que faz o Herman. E gosto de ver o Sporting-Benfica ou o Porto-Benfica.
Quanto ao seu filme novo, que sensação tem agora que o está a montar?
Os filmes são como as crianças: imaginamo-los bonitos, inteligentes, saudáveis. Depois o filme não nasce como se queria, mas a gente afeiçoa-se a ele. Teve uma série de condicionamentos. Eu próprio não fazia cinema há sete anos e não conhecia a maior parte das pessoas com quem trabalhei. Era complicado porque era um filme com crianças. A partir do momento em que acabam as filmagens há um duplo sentimento: um sentimento terrível de olhar para aquilo que se fez e perceber que se ficou aquém e um sentimento exaltante porque se volta a controlar o filme. Está praticamente montado, já o mostrei a várias pessoas e são unânimes em dizer que é o meu melhor filme.
A quem mostra o guião e o filme?
O guião geralmente mostro ao Joaquim Leitão (que faz um papel notável no filme), à Filomena Mónica, ao António Barreto, ao Fernando Lopes. Mas, por acaso, no dia em que o mostrei em vídeo o meu filho mais novo tinha convidado uns amigos para jantar e ficaram todos a ver. Precisava de reacções para uma coisa que era ainda informe. Começo a gostar mais e já não o confronto com o projecto; o filme é o que é.
Precisa dessas pessoas para se encouraçar?
Não é para me encouraçar. É importantíssimo que um filme corra bem, que o público anónimo (não os meus amigos ou os críticos) consiga partilhar o que acho que devo mostrar. É como em tudo. Os bons restaurantes são aqueles em que o chefe da cozinha é um amador de boa comida e gosta que as pessoas partilhem o que ele gosta de fazer. Uma das coisas que gostava de ter era um restaurante. Mas tenho a impressão de que seria um patrão intratável. Se estivesse a fazer um belo prato e me pedissem Coca-Cola, punha os clientes na rua, insultava-os.
Que outras vidas poderia ter? Cozinheiro, leiteiro, carpinteiro?
Leiteiro e carpinteiro acho que é um universo muito limitado. O instrumento com que trabalho mais é a cabeça. Era capaz de ter gostado de fazer história, arqueologia. Mas gostava de ter sido jogador de futebol, um grande jogador de futebol.
Jogava quando era miúdo?
Jogava, como todos os miúdos na escola. Não tinha grande jeito.
Era bom aluno?
Razoável. Depois, na Faculdade de Direito, não fui. Estive lá dois anos e chumbei, aquilo não me interessava.
Quando tinha dez anos e jogava com os outros miúdos queria ser futebolista?
O futebol sempre foi uma coisa de pobres. Aliás, uma das coisas de que gosto no futebol é ser o mais democrático dos desportos.
Porque é que marcou encontro no Grémio Literário? Não podia ser mais aristocrático.
É um sítio agradável, sossegado. Havia duas alternativas: a minha casa ou um café. O café é barulhento, em minha casa o telefone toca. Tornei-me sócio do Grémio por causa do «Aqui del Rei!», filmei aqui. Não sou propriamente um nostálgico, mas as coisas boas, como o Grémio, devem preservar-se ao máximo. O meu mundo está ameaçado de morte. No fundo é um problema de memória. O que mais me aflige hoje em dia é a perda de memória.
Está a falar da velhice? Há o Prozac para a felicidade, o Viagra para a impotência, o Xenical para a gordura. Mas ainda não se descobriram pílulas miraculosas para a velhice e a senilidade.
A senilidade é horrível, a velhice não. Espero que não perca a memória. A memória altera-se. Segundo sei as pessoas começam a lembrar-se muito mais da infância. Lembro-me raramente da infância, era incapaz de escrever um livro sobre a minha vida porque não me lembro de quase nada. Não sou um nostálgico.
Que obra sua gostaria que usassem para o recordar?
Nenhuma, ainda não fiz nada que dê para ser recordado.
É terrível dizer uma coisa dessas.
É a verdade, com alguma frustração. Quando aos 20 anos decidi fazer cinema gostaria de chegar aos 60 e ter feito um filme por ano e ter uma obra que tivesse marcado, no mínimo, Portugal e os portugueses. É o que dizia há pouco do Paulo Rocha; choca-me que colegas meus falem da sua obra como se fossem o Orson Welles ou o Griffith. Nenhum de nós é!
Quando se reuniam todos no Vá-vá acreditavam que eram?
Acreditávamos, sim. A nossa geração era, de facto, brilhante.
Que é que falhou?
Portugal.
Não era previsível que o país evoluísse desta maneira?
Achávamos que quando o fascismo acabasse...
Onde é que iam meter a fatura de 50 anos de ditadura?
Mas ouça, as pessoas de 20 anos vivem com a cabeça cheia de ilusões, não têm experiência de vida e não fazem esses recuos.
Quando é que deixou de ser ingénuo?
Ingénuo e inocente são coisas diferentes. Ingénuo, deixei de ser relativamente cedo. Há um personagem num filme meu que diz: «Sou um tipo sem ilusões, o que é o contrário de um tipo desiludido».
Diria mais rapidamente que é um tipo desiludido que um tipo sem ilusões.
Não faço ilusões sobre o amor eterno, agora posso fazer tudo para eternizar o amor. Não faço ilusões sobre a felicidade na Terra, mas faço tudo para que os homens sejam melhores e haja felicidade na Terra. No essencial o mundo não melhora. Não há hoje ninguém a pensar melhor que o Aristóteles.
Gostava de ter sido um génio?
Um génio, é um peso tremendo. Provavelmente devia escrever. Decidi fazer cinema porque descobri que era possível ficcionar a realidade com a própria realidade. A minha adolescência foi uma coisa difícil e a literatura isola-nos. Um escritor a sério é um torturado. O Balzac, que leio ciclicamente, foi um torturado, mas é torrencial, um génio absoluto. Tenho essa componente epicurista de gostar de viver. Por um lado, defendeu-me da depressão, por outro impediu-me de ser mais obsessivo. Cometi um erro na minha vida.
Ter regressado depois de estar em Paris?
Foi ter voltado aos 23 anos. Houve os filhos, a possibilidade de fazer um filme, a revolução. Se tivesse olhado para trás tinha visto que todas as gerações que tentaram fazer alguma coisa neste país e por este país acabaram mal. Somos um país de suicidas. Ninguém em Portugal conseguiu fazer algo de grandioso.
Que é que o impede de agarrar no seu filho e nas suas coisas e levá-los daqui?
Não é fácil. Como é que vou recomeçar num sítio qualquer assim sem mais nem menos? A gente precisa de pagar a renda da casa todos os meses. Numa entrevista ao [Alexandre] O’Neill, que era um tipo cáustico e céptico, perguntei-lhe: «E a aventura?». Ele respondeu: «A aventura em Portugal acaba na pastelaria». Sucessivas gerações embateram neste muro horrível. O país tem a forma de um caixão. Vivemos com o mar por um lado e por outro os espanhóis, que declarámos como nossos inimigos. A grande tragédia portuguesa foi não termos constituído uma grande federação ibérica.
Nunca esteve deprimido a ponto de se fechar no caixão?
Não, passei a vida a espernear.
Porque é que decidiu vestir essa roupa hoje? Vestiu-se para as fotografias?
Primeiro, porque no Grémio Literário a gravata é obrigatória; segundo, porque ando habitualmente assim. Tenho cuidado com a minha imagem mas não é quando sou fotografado, tenho cuidado com a minha aparência na vida. Não gosto de ser visto em trajes menores e isso faz parte da civilização. As pessoas devem cuidar de si e eu gosto de me tratar bem. Por mais artificial que pareça, sou o mais natural que há, visto e faço o que me dá prazer.
Com que imagem acha que as pessoas vão ficar depois de lerem esta entrevista?
Preocupa-me que as pessoas tenham uma visão errada do que sou. Não tenho qualquer ambição política nem de poder. A outra ideia é a de ter uma relação com o país muito pouco complacente e de pouco apreço. As pessoas têm de ser lúcidas, é um país pequeno, pobre e atrasado que não tem uma grande História, nem pintura, nem música, nem sequer literatura. Podem pensar que tenho uma falsa modéstia quando falo dos meus filmes sem lhes dar a importância que provavelmente deveria dar. Não sou pior que a maioria dos meus colegas, mas devíamos ter todos a noção da realidade. Se o país me tivesse dado as oportunidades e se tivesse tido a previsão, a obstinação, a habilidade para ser menos conflituoso, menos contestatário e rebelde teria chegado a esta idade com 20 filmes e falaria da minha obra. Teria gostado de fazer uma obra. Mas não passo a vida a chorar sobre isso.
Chora?
Chorei quando morreu o meu pai. Não choro e tenho pena. Emociono-me às vezes no cinema. Choro no «A leste do paraíso» quando o James Dean se agarra ao pai.
A figura do pai está presente em toda a sua obra. Para quem tinha o Édipo bem resolvido...
Descobri que em todos os meus filmes havia um suicídio: no primeiro o suicídio do pai, no segundo o do amigo, no terceiro o do alter-ego, no quarto o do pai putativo e no quinto, que é este, o do pai. Portanto, há qualquer coisa aqui. Tenho um lado negro e depressivo mas, depois, nalgumas circunstâncias, tenho um lado extremamente positivo que não é voluntarista, é espontâneo. O suicídio é uma enorme cobardia, apesar de poder ser um acto de enorme coragem.
Este sítio lembra-me «Os Vencidos da Vida».
Não sou um vencido. Toda essa geração acabou mal. Portugal era um país caricaturável. Não é por acaso que os grandes génios desse tempo eram, provavelmente, o Eça e o Bordalo Pinheiro.
E neste século, quem temos que fique para a história?
O Eusébio, o Futre, o Figo, o Rui Costa [risos]. O O’Neill é um grande poeta mas nunca vai ter a importância que o Rimbaud tem em França e no mundo. Temos gente óptima, gosto muito do Rui Veloso e do Carlos Tê, são excelentes naquele domínio. Sobretudo, somos dotados para o futebol, que é um desporto de subdesenvolvidos.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999