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Anabela Mota Ribeiro

António Reis

27.02.14

Foram 24 horas que justificam uma vida. Foram 24 horas em que ele foi um herói. Aconteceu num tempo que parece longínquo, 1974. Um daqueles dias em que se está disposto a tudo. A matar e a morrer. Como um herói romântico.

Antes disso, ele foi outro, e depois disso também. Agora, é Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano. Outra forma de empunhar uma bandeira, uma causa, uma entrega.

António Reis tem 61 anos. “Não me diga que pareço ter mais!”. Mas parece. Tem uma voz espessa, ouve mal. Tem o cabelo branco, e agora usa barba, também branca. Mas isso é só aparência. O discurso continua vigoroso, inflamado – quando fala, por exemplo, de quando foi um oficial miliciano em Abril de 74.

O desejo de aperfeiçoamento não é senão expressão dessa vontade indómita. E a Maçonaria não é senão uma organização onde se procura o aperfeiçoamento e se cultiva a entreajuda.

Bem, mais ou menos. É também, como se sabe, uma casa de poder. Ou pelo menos com círculos de poder poderosíssimos. É o que consta. Nunca se sabe ao certo, porque nunca se sabe exactamente o que se passa numa sociedade secreta.

Visitamos o espaço. O templo, belíssimo, majestático, teatral. Com a “abóbada celeste”, de um azul intenso, um chão preto e branco, para simbolizar os contrastes (noite e dia, positivo-negativo…), as duas pedras junto às colunas de entrada: aquela que está por polir, e aquela que resulta do aperfeiçoamento, do polimento. Os aventais não estão visíveis, excepto nos retratos dos maçons que foram grandes pedreiros da casa. Visitámos o museu. E por fim sentámo-nos na sala do Grão Mestre. Que de momento é ele, vai no segundo mandato.

Quem é António Reis, do que se pode saber? É muito, viveu muito.

 

 

Comecemos pelo que parece ser uma outra vida: o assalto à RTP no dia 25 de Abril de 74.

Eu estava a fazer o serviço militar obrigatório. Tive oportunidade de contactar com oficiais do quadro permanente que se encontravam na conspiração dos capitães; e que, sabendo que eu era um oposicionista à ditadura, me confidenciavam aquilo que estavam a preparar. Ao mesmo tempo, eu próprio, como oficial miliciano, tinha contactos com outros oficiais milicianos, que comigo tinham sido dirigentes estudantis, e que estavam dispostos a cooperar com os capitães naquilo que viria a ser a revolução. A minha unidade era no Lumiar, a 500 metros dos estúdios da RTP. Os paraquedistas tinham recusado esse objectivo, e nós, Escola Prática de Administração Militar, aceitámo-lo.

 

Como foi o curso dos acontecimentos?

Fomos a primeira unidade militar a sair e a ocupar um dos objectivos do plano de operações, que tinha sido gizado pelo Otelo. Às três e cinco da manhã entrámos pela rampa acima. Havia só meia dúzia de polícias, que ficaram surpreendidíssimos quando viram um grupo de militares armados de G3. Renderam-se imediatamente.

 

Com que emoção foi subindo a rampa?

Eu tinha 25 anos, entrei com a convicção de que, daquela vez, é que era. Sabia a história de todas as tentativas, golpes militares. O golpe de Beja, o golpe da Sé. Podia ser mais uma dessas intentonas. Um mês antes tinha havido o golpe frustrado das Caldas da Rainha.

 

Consegue, com esta distância, dissecar essa certeza íntima, e perceber o que o fez acreditar que daquela vez é que era?

Por um lado, a sensação de que vivia num país irrespirável. Era redactor da revista Seara Nova, via os meus artigos a serem cortados pela censura. Tinha a perspectiva de ser enviado para a Guerra Colonial. Havia que fazer qualquer coisa para nos libertar daquele peso. O ambiente no quartel era esse, sentia-se nas conversas com os oficiais, os soldados. E aquela era a grande oportunidade. Fiquei surpreendido que tantos oficiais quisessem o mesmo projecto, há tanto tempo. Um ano antes, eu era incapaz de imaginar isso. Tinha a convicção de que a ditadura ainda estava para durar, que seria muito difícil derrubar aquele regime.

 

A sua percepção mudou depois de entrar no serviço militar? Percebeu aí que havia muitos que pensavam como os estudantes contestatários?

Percebi uma mudança de ambiente entre os oficiais, sobretudo a partir de Janeiro, e que era um movimento imparável. Seria muito difícil suster aquela onda.

 

Conhece a história do Roberto Rossellini, quando veio à Gulbenkian apresentar o “Roma, Cidade Aberta”? O aplauso foi torrencial. O realizador comentou que um povo que aplaudia daquela maneira, perante um filme tão político, não podia aguentar por muito tempo a ditadura.

Não estive lá, mas soube do que se passou. Rossellini, ele mesmo, ficou espantado. Tinha havido o caso do Maurice Béjart, pouco antes; quando os seus bailarinos começaram a gritar: “Faites l’amour, pas la guèrre”, toda a gente aplaudiu. Era uma panela que estava a ferver, ia rebentar. 

 

Estava a subir a rampa do Lumiar…

Mais reforcei a convicção quando dispus o pelotão que eu comandava, 30 soldados. Eles não sabiam ao que iam, foi lá que começámos a explicar o que se estava a passar. É uma história pouca conhecida… Em Santarém, houve uma reunião na parada, todos foram informados pelo Salgueiro Mais. Neste caso, preferimos explicar individualmente aos soldados que tínhamos sob as nossas ordens o que íamos fazer. Disse-lhes que estávamos ali para acabar com a guerra colonial – coisa que imediatamente os cativava; para melhorar as condições de vida do povo, e porque queríamos a liberdade. Um a um, era extraordinária a alegria com que recebiam esta mensagem. Dei a todos a possibilidade, se não estivessem de acordo com isto, de regressarem ao quartel. E nenhum recusou. Um ou dois hesitaram, é verdade. Mas todos os outros tinham esta resposta: “Se é para isso, conte comigo”. Aí, tive a certeza de que tínhamos tudo ganho. Tínhamos gente para ir até ao fim.

 

O que é que se seguiu?

Um período de grande expectativa. Entre as três e dez e as quatro e meia da manhã, quando finalmente ouvimos o primeiro comunicado no Rádio Clube Português. Nessa hora e meia estivemos sozinhos. Tivemos um contacto com o Posto de Comando da Pontinha e dissemos que o “Projecto Mónaco” – que era o nome de código da RTP – estava ocupado. Ouvimos do outro lado o Óscar – que era o Otelo Saraiva de Carvalho – dizer: “Então boa sorte à roleta, camaradas”. [riso] Mas não podíamos comunicar mais. Não sabíamos se as outras unidades tinham saído dos quartéis.

 

Estavam preparados para tudo?

Tudo.

 

Para matar e para morrer?

Antes de sair de casa ouvi um poema do Aragon cantado pela [Monique] Morelli. Era um canto da resistência, em França. Esse poema deu-me imensa força, “L’affiche Rouge”. Fala de um grupo de partisans que é executado pelos nazis diante do cartaz. Era isso que eu sentia. Estava disposto a ter eventualmente o mesmo destino que os partisans. Era um tudo ou nada. Também sentia dificuldade em imaginar-me derrotado… Se fosse necessário dar a vida, daria. Foi a grande situação limite que vivi na minha vida.

 

A Isabel do Carmo disse numa entrevista, a propósito das Brigadas Revolucionárias, que “não há heróis, há escolhas irreversíveis”. Aquele era para si um caminho irreversível?

Pode-se aplicar isso. Senti-me numa situação irreversível, porque quis, e quis vivê-la até ao fim. Sem medo.

 

Com compreender a ausência do medo? Obrigou-se a ter coragem? 

Foi tão fácil para mim que quase me custa empregar a palavra coragem. Claro que é precisa coragem para arriscar a liberdade e a vida – eram as duas coisas que estavam em jogo. Mas a força interior era tão grande que não era preciso fazer um grande esforço para estar ali. Foi um privilégio estar ali.

 

A ocupação, propriamente dita: esperaram a comunicação da Pontinha; e depois?

Foi uma grande alegria, sabíamos que não estávamos sozinhos. Acompanhámos pela rádio o que se ia passando. Na RTP, não foi fácil: o posto de Monsanto estava ocupado pelo segurança afecto ao regime; só à tarde o convencemos a abandonar. Só às 20 para as sete pusemos a [nossa] emissão no ar. Entretanto, fomos organizando o trabalho na RTP, especialmente com a colaboração do João Soares Louro…

 

Um maçom.

Um maçom. E do Alfredo Tropa. Nenhum de nós era maçom nessa altura, ou então seríamos sem aventais – ou seja, iniciados.

 

Não era ainda maçom, mas não é estranho que o seu caminho tenha vindo desaguar aqui. Há todo um percurso de contestação, e de agregação social.

É verdade.

 

Conte-me o que está para trás.

No fim da minha adolescência comecei a ser muito sensível à questão política das liberdades. Através, aliás, do movimento de acção católica. Para isso contribuíram mestres que tive no liceu e que foram determinantes na minha formação. O João Bénard da Costa, meu professor de Filosofia e Cinema. O Mário Dionísio, de Francês e Literatura Portuguesa. O então padre Fernando Belo, irmão da Maria Belo, que nos dava aulas de Religião e Moral, em que se falava de grandes questões de Portugal e do mundo. Todos contribuíram para a minha apetência pela intervenção política e social. Entretanto, sentia-me a asfixiar em Portugal.

 

Foi por isso que foi para a Suíça?

Sim. Tive a oportunidade de ir estudar Filosofia para uma universidade católica em Friburgo. A minha formação era essa, a minha família era católica. Eu tinha uma questão não-resolvida com a fé. Tinha tido apetência por uma carreira sacerdotal. Mas não tinha a certeza. Para resolver as minhas questões filosóficas, de fé e de vocação, fui para essa universidade. O que é que aconteceu? Entrei católico e saí marxista! Apanhei um padre polaco, especialista em Filosofia marxista. Admirável. Deixei-me fascinar. Tudo isso reforçou ainda mais o meu desejo de participar numa luta política activa, e por me aproximar dos ideais de esquerda.

 

Que família era a sua, para apoiar a ida para a Suíça?

Tinha recursos para isso. O meu pai e a minha tia eram católicos. A minha mãe morreu quando eu tinha dois anos. Foi a minha tia, irmã da minha mãe, e a minha avó, mãe da minha mãe, que praticamente me criaram. O meu pai casou segunda vez. Alguns dos meus irmãos ficaram com o meu pai e a minha madrasta, outros com a minha tia e a minha mãe. Quando a minha mãe morreu, o mais velho tinha dez anos, e a mais nova seis dias. A minha mãe morreu na sequência do parto da minha irmã mais nova.   

 

Como é que a figura da sua mãe chegou até si?

Através de histórias que a minha avó e a minha tia contavam. De fotografias. A única imagem que guardo dela, tinha eu dois anos e meia, foi exactamente na altura em que saiu de casa, numa maca, para o hospital. É a primeira recordação que tenho de mim. Ela tinha tido a criança em casa, como se usava; a minha tia era médica, o que ajudava. Estava convalescente. Isso marcou-me muito. Foram eles que financiaram a minha estadia na Suíça, embora no último ano eu tenha trabalhado na rádio nacional suíça, uma vez por semana.

 

Que mais podemos saber do menino que foi?

Fui para o lar educativo João de Deus, que era um excelente colégio privado, de tradição laica e republicana. João de Deus, um maçom, também ele. A qualidade pedagógica era prestigiada. Fui colega dos netos do presidente de então, Craveiro Lopes. Depois disso fiz os sete anos do Liceu Camões.

 

Qual era a sua geografia?

Até aos cinco anos vivemos na Póvoa do Varzim, onde o meu pai era professor de matemática e reitor do liceu. Depois, viemos para Lisboa. Vivíamos na zona do Saldanha.

 

O seu pai foi a grande figura da sua vida?

Era extraordinariamente carinhoso, terno, nada autoritário. Mas eu fui marcado equitativamente pela minha avó. Uma senhora aristocrática, açoriana, prima ainda do primeiro presidente da República, Manuel de Arriaga. E a minha tia, muito activa. O meu pai, visitava-o uma vez por semana. Mas eram todos muito religiosos, havia leituras semanais da Bíblia.

 

Essas referências ajudam a perceber de onde vem, e como se forma um indivíduo… As dúvidas, quando apareceram, foram discutidas com quem?

Com os meus irmãos. Não com o meu pai. Com o meu pai, era tabu. Era impensável contestar-se a fé católica.

 

Mas houve um momento em que teve de o enfrentar, e expor as suas dúvidas.

Mais tarde. Aconteceu já depois de voltar da Suíça. Tinha 20 anos. Voltei para a Universidade de Letras, para conseguir a equiparação, que não era automática. Enquanto esperava, tinha adiamentos para o serviço militar. Frequentei três anos o curso de Filosofia; marcaram-me o Padre Manuel Antunes e o Oswaldo Market.

 

Teve excelentes mestres.

Tive essa sorte.

 

Mas não percebi ainda o que queria fazer com a sua vida. Tudo isso parece um percurso aproximativo.

No momento em que decido que a vocação sacerdotal está fora de causa – o que acontece na Suíça, por volta dos 19 anos – regresso com um diploma que pouco dava para fazer cá. Entre os três anos de curso na universidade e os adiamentos para a tropa, meti-me a fundo nos movimentos estudantis. Fui dirigente da associação de estudantes da Faculdade de Letras, organizador de greves… O salto para a política tout court é fácil. Em 68/69 é o período de transição de Salazar para Marcelo. As primeiras eleições legislativas do Caetano são em 69 e sou convidado para deputado, pela CDE [Comissão Democrática Eleitoral] de Santarém. Tinha ligações ao concelho de Mação, onde os meus avós tinham casa e propriedades. Fui o candidato mais jovem em todo o país. Vinte e um anos, idade mínima, na altura.

 

Era um jovem arrogante, excessivamente seguro de si?

Não. Eu era muito tímido. Mas quando me empenhava numa causa, era inabalável, ia até ao fim. Passava a ser irreversível – como dizia há pouco.

 

Quis ser político, mais do que tudo?

Em ditadura não se pode pensar ser político, como hoje. Não era uma carreira. Era uma causa. Era uma entrega. Quando surgiu a oportunidade de trabalhar na Seara Nova, adorei. 

 

Entrou pela mão de quem?

Sottomayor Cardia. Foi alguém que teve uma influência grande na minha vida. Foi o meu padrinho político. Aprendi imenso com ele. E entrei no Partido Socialista, em cuja fundação participei, pela mão dele.

 

Dava-se com Mário Soares? Qual era o seu grupo?

De início, não. Dentro da CDE eu estava num ambiente em que dominavam os comunistas e os socialistas independentes, como o Jorge Sampaio, o Bénard da Costa e outros católicos progressistas. Só em 73, com o Cardia, fiz essa aproximação ao Mário Soares. Isto depois de me ter apercebido que o Partido Comunista era de um estalinismo feroz e de uma ortodoxia inabalável; era impossível dialogar com eles.

 

Soares passou, ainda que fugazmente, pelo partido Comunista. Foi o seu caso?

Não, embora o Sottomayor Cardia me tenha proposto, quando ainda era militante. Recebeu como resposta do seu controleiro que eu era “um oportunista de direita”.

 

Isso era por ser um menino de boas famílias? Existia essa desconfiança em relação a si por causa disso?

Não sei. Sempre cultivei a minha independência, nunca quis andar às ordens de ninguém. Também não me via a ser controlado por um controleiro do PC… A formação católica também é capaz de ter ajudado a esta decisão [de não aderir]. Ainda bem. O Cardia estava de saída e levou-me com ele para o PS.

 

Muitas pessoas que tiveram um passado análogo ao seu, desenvolveram grandes carreiras políticas a seguir a 75.

Entrei no PS como fundador e vi-me logo catapultado para lugares cimeiros do PS. Ainda antes: no Verão de 73 fui reunir a França com o Mário Soares, o Tito de Morais e outros para discutirmos e aprovarmos o primeiro programa político do PS. Quando apareceu o 25 de Abril, fui chefe de gabinete do Secretário de Estado Rui Grácio, e Soares convidou-me para ser cabeça de lista por Santarém. Estou lançado na chamada carreira política, com todas as incertezas que havia no processo revolucionário. Fui deputado à Constituinte, o que me livrou de ir para a Timor para onde estava mobilizado. Se tivesse ido, teria sido preso pelos indonésios aquando da invasão em Dezembro. Tive sorte.

 

É certo que continua como deputado uns anos. Mas não quis fazer uma grande carreira política? Foi por razões contingentes que não aconteceu ser um grande político?

Eu tinha uma vocação académica. Queria ser professor, investigar. Na área da Filosofia Política e mais tarde da História. Cheguei a ser convidado para a Universidade Nova. Estupidamente, recusei. Em 83, começo a ter dificuldades na política, porque fiz parte do grupo do ex-Secretariado, com Guterres, Sampaio e Constâncio, que se opôs ao Mário Soares. Recusámos ser deputados. E então aí, o que é que eu faço? À cautela ia concorrendo aos concursos de professor do ensino secundário.

 

À cautela? A sobrevivência era uma questão? 

Tinha alguns rendimentos familiares, mas não dispensava de ter uma profissão. Não ia querer viver de rendas.

 

Mas se acontecesse não ser colocado como professor de liceu…

Não ficava na miséria.

 

O que dá um certo conforto, saber que não se fica desamparado.

Era importante, até em relação à política, ter uma alternativa profissional. Em 83, curiosamente, recebo o convite de Joel Serrão para assistente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova.

 

Chegou a ser professor de liceu?

Fui colocado, mas nunca exerci. Fui muito condicionado nas minhas escolhas. A política tem a sua dinâmica própria, e invasora. Prejudiquei a minha carreira académica por causa da política. Sou o tipo de pessoa que tem dificuldade em concentrar-se num só projecto. Sempre senti necessidade de conciliar a teoria com a acção. Precisava de ter um empenhamento profissional que satisfizesse as minhas ambições teóricas, especulativas; e precisava de uma actividade prática que me permitisse realizar coisas. Toda a minha vida é uma tentativa de conciliar estes dois vectores.

 

Já antes, quando equacionava a vocação religiosa, isso está presente.

Também.

 

Pelo meio, casou, constituiu família?

Isso contribuiu para abandonar a vocação sacerdotal. Porque tive uma vida afectiva preenchida, apaixonada, agitada. Não foi na Suíça que tive a minha primeira paixão, foi cá aos 18 anos. Casei duas vezes, vivi com diferentes mulheres. Não sou um exemplo de estabilidade conjugal. Porque é que é assim? Por insatisfação. Por querer sempre mais e melhor. Há a busca da paixão cada vez mais perfeita. É quimérico, claro, mas tenta-se.

 

Houve algum momento, nos anos 90, em que olhou para trás e pensou: falhei uma grande carreira política?

Nunca se me pôs a questão da carreira política. Fui Secretário de Estado da Cultura dos 29 para os 30 anos. Por um acaso. O Cardia foi Ministro da Educação e convidou-me.

 

Gostou?

Não posso negar que sim. Sentia que tinha poder e que podia usar esse poder. Que as coisas podiam fazer-se. Foi muito aliciante.

 

Diga-me uma coisa que tenha feito e de que se orgulhe?

A criação do Museu Nacional do Teatro. A política em relação aos grupos de teatro.

 

Tinha uma relação preferencial com o teatro?

Sempre me fascinou. Fiz teatro universitário em Friburgo. Representei uma peça do Boris Vian: “A Merenda dos Generais”.

 

Boris Vian era uma espécie de herói para os jovens da sua geração. Também na Suíça, ouviam jazz e frequentavam os caveaux locais?

A onda do Maio de 68 chegou, mesmo a uma universidade católica e conservadora, como era a de Friburgo. Aquilo espalhou-se por toda a Europa. Eu fiz parte da lista da associação de estudantes que conquistou o poder aos católicos conservadores, nessa altura. Era inimaginável que naquela universidade isso acontecesse.

 

Ocorreu-lhe ficar na Suíça? Porque é que regressou?

Ocorreu, sim. Mas pensei: não é aqui que posso fazer a revolução contra a ditadura em Portugal. Não é aqui que vou contribuir para isso. E já nessa altura passava a ideia no meio estudantil de que era preciso fazer o serviço militar e actuar por dentro. Por dentro das forças armadas. O Partido Comunista tinha dado uma directiva nesse sentido, em 68. Evitar a deserção e tentar influenciar por dentro. Acabei por fazer isso mesmo.

 

Nunca se arrependeu de ter voltado?

Pelo contrário! Achei que foi a melhor decisão da minha vida. Foi o que me permitiu ter participado no 25 de Abril.

 

O que faltava à vida do académico, que seria aquela que teria se tivesse ficado, era pathos. Foi o que perseguiu.

Concordo inteiramente.

 

Desencanto político, teve?

Ah, havia coisas na política que me repugnavam. Comecei a sentir o que há de mesquinho no universo político. É uma vida em que verdadeiramente é muito difícil guardarmos a nossa independência, em que os compromissos são constantes, as rasteiras permanentes. Tem o seu lado nobre, evidentemente. Voltei à vida política activa em 95 com o Guterres, que entrou para o PS pela minha mão, em 74. Fui deputado. Mas sem o mesmo entusiasmo.

 

Na sua vida, há um desejo de liberdade e independência. E ao mesmo tempo, é sempre um homem de grupos, de associações. O catolicismo é um lar – foi o seu primeiro grupo. Bem como todos os outros. Os políticos, os militares, os maçons. Há sempre com um sentimento de pertença. Não é um atirador isolado.

Tudo depende dos grupos em que nos inscrevemos. Estive num partido que permitia conciliar a eficácia do trabalho no grupo com o respeito pela liberdade de opinião. Nunca me senti aprisionado dentro do PS, como não me sinto aprisionado no Grande Oriente Lusitano. A livre expressão e a liberdade de consciência são os princípios sagrados. A Maçonaria é a grande organização que se bate por isso. É verdade que não concebo a minha vida fora de grupos intervenientes. O que tem também a ver com uma ética da solidariedade, da fraternidade. O espírito do anarquista puro, do Eu, é-lhe alheio. Entre Rosseau e Voltaire, como Raul Proença, sinto-me mais próximo de Voltaire.

 

Quando é que deixou de ser “Cândido”, para glosar um título famoso do autor francês? É uma maneira de lhe perguntar quando é que cresceu.

Candura política? Candura em geral? Quando é que a perdi? Já depois do 25 de Abril, das grandes ilusões do PREC, depois de feita a minha experiência de combate dentro do PS. Creio que foi nos anos 80. Nunca fui céptico, descrente. Mas a minha relação com o marxismo alterou-se. A crença nas grandes filosofias da história, com resposta para tudo, que nos hão-de conduzir aos amanhãs que cantam, isso perdi no final dos anos 70. Perdi alguma inocência tanto no plano ideológico como político.

 

Esse que foi, e que acreditou nos amanhãs que cantam, ainda existe em si?

Há sempre algo que permanece. Esse sentido da utopia, morrerei sem o extirpar de mim. Extirpá-lo de mim seria morrer já, de certa maneira. Essa candura ainda me dá vida e força para lutar por causas. É o que procuro fazer aqui na Maçonaria.

 

Como é que vem ter a esta casa? Se posso perguntar. Nunca sei, tratando-se de uma organização secreta, que coisas se podem dizer ou não…

Pode perguntar tudo. Entro a convite de grandes amigos meus, sobretudo um amigo que tinha sido oficial de armas no 25 de Abril. Há aqui uma ligação de destinos, entre o 25 de Abril e o MFA e a Maçonaria. Entrei em Setembro de 97.

 

O seu pai ainda era vivo?

Não. Tinha morrido no ano anterior.

 

Ocorreu-me que para ele seria mais um desgosto, depois do abandono do catolicismo… Ou não?

Não sei. A minha tia, católica, respeitou muito bem a minha decisão. Também tinha tido familiares maçons. Entrei sabendo muito pouco do que era a Maçonaria. Tinha sido já convidado pelo Raul Rego em pleno PREC. A minha resposta foi que só depois dos 50 anos ia pensar nisso.

 

Coincidência ou não, quando adere tem quase 50 anos.

Pois foi. Tinha a ideia de que a Maçonaria era uma coisa do passado. Em democracia, para que é que servia a Maçonaria? A minha entrada está ligada ao facto de as grandes ideologias terem já esgotado o seu apelo, o seu glamour. E estou numa fase menos exaltante na vida política. Aconteceu numa idade em que as necessidades espirituais e filosóficas se tornam de novo mais intensas. A Maçonaria apareceu para mim como uma alternativa. Para quem deixou de ser marxista. Para quem deixou de ser católico. Tinha ali uma nova via de reflexão, de debate a explorar. A Maçonaria é sobretudo isso: uma espiritualidade não religiosa.

 

Oferece uma certa grelha para ler e estar no mundo?

E um método de reflectir sobre a nossa vida pessoal, em conjunto com outros. Ao mesmo tempo sentia uma grande liberdade de pensamentos. Estar fora das amarras partidárias, acima das divisões entre partidos, entre credos religiosos. E possibilitar que todos se cruzem, aí.

 

Há realmente uma heterogeneidade tão grande no corpo da Maçonaria?

Há. Cultivamos o princípio da diversidade. E somos tanto mais ricos quanto mais diversos. Como a romã, que vimos há pouco [que tem uma carga simbólica para os maçons: o da diversidade na unidade]. Temos aqui pessoas de vários partidos, sem partido, pessoas de vários credos que procuram um diálogo entre religiões. 

 

A par disso, isto é também uma casa de poder.

Convém esclarecer que o nosso poder é ético-cívico, e não político. Não somos uma casa que actua como uma central de comando da vida política e empresarial. É verdade que aqui se encontram pessoas que têm cargos importantes na vida cívica, política, cultural, empresarial. Mas o que as junta é uma vontade de reflexão e aperfeiçoamento.

 

Não vamos escamotear o poder que daqui emana…

Claro que há entreajuda, como em qualquer família há.

 

Como há na Opus Dei. Corresponde a um cliché: que a Opus Dei garante um apoio aos seus membros, como a Maçonaria o garante aos seus obreiros. Em lados opostos.

A fraternidade existe, claro. Mas isso não quer dizer que tenham de se postergar regras, leis. Tudo tem de ser feito consoantes as regras do Estado de Direito. Não pode haver privilégios ou benefícios. No plano social, se sabemos que alguém aqui está em dificuldade, procuramos ajudá-lo, mas não atropelando as regras de jogo.

 

Sente que é um homem que tem muito poder?

As pessoas que me vêem de fora imaginam que tenho muito poder. Eu que estou aqui dentro, sinto-me pequenino e com muito pouco poder. O chamado poder da Maçonaria é demasiado empolado. O poder que temos advém da nossa capacidade individual, como maçom e como cidadão, no desempenho das funções na vida profana.

 

Ter poder, ter diferentes formas de poder, foi uma constante na sua vida.

Sim. Mesmo quando tive um poder directo, sempre o senti como um poder frágil, transitório, qualquer coisa que me podia escapar, e que procurei usar ao serviço das minhas causas. Nunca foi um poder pelo poder, à maneira de Maquiavel. Era um poder eticamente subordinado. Não há melhor lugar para sentir essa subordinação do poder a uma ética do que aqui. 

 

A Maçonaria é uma casa para si?, como o catolicismo foi, como a política foi?

Compreendo o que quer dizer. Quando usamos a palavra casa, isso passa uma sensação de conforto. É casa e útero ao mesmo tempo. Sinto isso aqui dentro. Mas pode haver um lado perverso nisso: alimentarmos uma certa preguiça. Isso, não quero que suceda. Em qualquer casa que esteja, não quero apenas o conforto, a dependência. Quero ser construtor dessa casa, e não apenas usufruir dela.

 

O lado ritualístico, o sigilo, os aventais, eram coisas que o atraíam?

Era aquilo que menos me atraía na Maçonaria. Tinha até desconfiança. Mas à medida que me fui “educando” nesta casa fui aprendendo a admirar e cultivar esse lado ritualístico e simbólico. Nas reuniões de Loja, esse lado está sempre presente, e isso ajuda-nos a viver mais intensamente estes valores éticos. É uma forma de os apreender, de os sentir melhor.

 

Tem 61 anos. Que é que aconteceu aos seus ouvidos para ouvir tão mal?

Uma das explicações que me deram foi a tropa. Não ter tampões nos ouvidos na carreira de tiro, deve-me ter prejudicado o tímpano. Na vida política, nos debates parlamentares, por exemplo, fez-me imensa falta ouvir bem. Não há aparelho para este tipo de problema. Mas enfim, tenho de conviver com isto.   

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009