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Anabela Mota Ribeiro

Assumpta Serna

04.02.15

Foi Almodóvar que a deu a conhecer ao mundo, ao lado de Banderas, num filme marcado a sangue, de nome «El Matador». Precisamente a meio dos anos 80.

Esta chica mudara-se de Barcelona para Madrid nem dez anos antes. Servira de emblema ao impulso panfletário de uma geração, aparecera como flor de carne em filmes despudorados, fora revigorada pela coloração intelectual de Carlos Saura. Em menos de dez anos, a chica do lado desistira de levar uma vida normal. Como no universo idiossincrático de Amodóvar, vivia tensões familiares, expressava-se com o corpo, distendia-se sensualmente. Vivia na borda da vida. Com uma alegria efervescente que lhe deixou rugas junto aos lábios. De que gosta muito, «que não trocaria por nada». Não se acredita, contudo, que tenha alguma vez sido uma chica à beira de um ataque de nervos. Sobretudo depois de se assistir a temperança que as próximas páginas confirmam. Há até um elemento trágico, guardado para as últimas linhas. (Não houve corte e costura: respeitei a ordem da conversa; uma tal confissão soaria mal ao cabo dos primeiros minutos. O pathos vem mesmo no fim).

O filme de Almodóvar foi talvez o mais importante; é desse, pelo menos, que falam. Mas há dezenas de outros filmes, rodados no mundo inteiro, interpretados em várias línguas. Anos antes de Hollywood ouvir falar de Penélope Cruz, ela já era a mais internacional das actrizes espanholas.

Portugal teve-a, no auge do sucesso, pela mão de José Fonseca e Costa n’ «A Balada da Praia dos Cães». Há três semanas esteve em Lisboa a convite de Patrícia Vasconcelos a dirigir um workshop na escola Act. Ajudar jovens actores em formação é uma das suas apostas. A comprová-lo, o livro que escreveu há dois anos e que traduz a sua experiência, e a escola de representação que espera instalar nos arredores de Madrid.

Assumpta Serna estendeu-se sobre o puff, imenso, ao fim do primeiro dia do workshop. Estendeu-se confortavelmente. A conversa foi aí.

  

O seu nome é Assunción?

Sim, mas não o reconheço como o meu nome. Assumpta, que é o meu nome em catalão, apareceu pelos 12, 13 anos. Suponho que para me distinguir da minha mãe, que também se chama Assunción.

 

Imagino que em espanhol, como em português, tenha uma conotação religiosa.

Mais do que pensar na assunção da virgem aos céus, gosto de pensar na pessoa que não está nem no céu nem na terra, que está sempre dividida entre os sonhos e a realidade; nesse caso, já me identifico com Assumpta ou Assunción.

 

Continua a ser um nome comum em Espanha? Em Portugal, nomes com carga religiosa como Glória, Lourdes, Luz, deixaram de se usar.

Agora há muitas mais Assumptas. Penso que é um pouco por minha causa... Mas tem razão, Assunción deixou de se usar.

 

Se tivesse uma filha, que nome lhe poria?

Como estou casada com um escocês, seguramente seria um nome que pudesse ser dito da mesma maneira nas duas línguas, e que não fosse muito exótico para a família do Scott. Se tivesse uma filha... Se tivesse um filho... Quando se decide ter um filho, já há a ideia de perpetuação. Julgo que não lhe imporia a mesma cruz que carreguei tantas vezes: [soletra com acento inglês, e rapidamente] A-s-s-u-m-p-t-a, Assumpta. [repete em francês] Repeti o meu nome a vida toda, em todas as línguas.

 

Como lhe chama o seu marido?

A mim? Sweetie.

 

A sua educação foi religiosa?

Sim, mas não muito. A minha irmã chama-se Glória. Julgo que eram os nomes que se utilizavam então. Os nossos pais educaram-nos catolicamente, sem alguma vez serem fervorosos. Ambos trabalhavam, e tinham uma mentalidade aberta para a época. O meu pai era engenheiro industrial e a minha mãe secretária de direcção. Trabalharam na mesma empresa 30 e picos anos!, onde se conheceram e acabaram a sua vida profissional. A minha irmã é mais velha seis anos, tem dois filhos e é médica.

 

A vida da sua irmã seguiu uma rota mais comum e previsível a uma burguesia catalã. No seu caso, foi até ao terceiro ano de Direito e, de repente, as coisas mudaram. Há alturas em que inveja a vida da sua irmã ou regozija-se com a irregularidade do seu percurso?

É evidente que nesta profissão há que renunciar ao que se chama uma vida normal. Mas depressa se aprende que nada é normal. Toda a gente tem paranóias, medos. Realmente nada é normal. Do que me dou conta é que quis ser diferente; não aconteceu ter sido diferente, apenas, pelo facto de esta profissão impôr uma diferença. Procurei sempre o caminho mais difícil, mais distinto. As coisas teriam sido mais fáceis se tivesse aprendido com os outros, com os meus pais. Se tivesse sido menos rebelde. Sempre gostei de averiguar as coisas por mim mesma, ir por todos os cantos e becos e encontrar a minha solução. Talvez por isso tenha escolhido fazer teatro.

 

Como assim?

Não quis pertencer a nenhum sítio, não quis pertencer à burguesia; e o que reunia melhor estas condições, era o trabalho de actriz. Uma actriz um dia é uma rainha, outro dia... A diferença, o ser diferente, foi o que marcou a minha vida. Ser pioneira, por exemplo, em sair de Espanha e ir para a América, pioneira por falar muitas línguas e viver em muitos países. Muita gente contentar-se-ia fazendo teatro e não sairia da Catalunha.

 

As personagens mais famosas que interpretou eram mulheres perturbadas, que experimentavam situações limite, muitas vezes relacionadas com o sexo. Personagens que não encontraram ainda o seu caminho e equilíbrio.

Sim, sim.

 

De certa forma, foi também o seu percurso, o da procura do seu próprio caminho.

No cinema e no teatro evidentemente tem de haver drama, conflito; uma pessoa equilibrada, no cinema, é aborrecida. O desiquilíbrio fá-los interessantes. Se é verdade que as minhas mulheres são habitualmente fortes, acostumadas a matar, ou a ser assassinadas...

 

E a sofrer e a fazer sofrer.

As duas coisas, sim. De um modo geral, gostei de todas essas que fiz. Quando tinha 20 anos, ofereciam-me papéis de mulheres de 30 e 40. Para mim sempre foi um choque, aos 20 e picos estar já a fazer papéis de 30 e 40. Não me podia relacionar bem com os problemas que tinham essas mulheres, não os tinha ainda vivido. Aos 40 é quando a mulher é mais rica, é quando tem uma profundidade nos actos e nas escolhas. E não há filmes que reflictam essas mulheres, essa complexidade. Essa profundidade está reservada aos homens. Há filmes de mulheres sedutoras.

 

O cinema é muito mais cruel para a mulher. Sendo uma mulher tão bonita e tendo desempenhado a vida toda mulheres fatais, custa-lhe assistir ao seu envelhecimento? E não falo das implicações que isto tem na sua carreira, mas no seu encontro consigo frente ao espelho.

Estou muito mais contente com as minhas rugas do que com a minha juventude. Entendo mais coisas, entendo porque foi cada ruga, sabe? É um processo de entendimento de mim mesma. As rugas da testa são as de uma necessidade de reflexão que tenho desde há 10, 15 anos; o cansaço atira-me os olhos para baixo; estas arcos [rugas do sorriso junto da boca] resultam de encarar sempre a vida com alegria.

 

Já não é importante sentir-se desejável, admirada na sua extrema beleza?

É que para mim nunca foi importante. Nem quando tinha 20 anos. Em todas, todas as entrevistas perguntavam-me sobre as cenas de sexo, sobre o fazer amor; às pessoas parece sempre que aquilo não tem que ver com a profissão, como se estivesse realmente a ter sexo, o que é curioso... Então, em filmes como «El Matador», ou outros, em que tive de definir a minha personagem através do sexo, tentei que essas cenas servissem para informar o público sobre o modo de ser da minha personagem. Sempre quis que se me vissem os olhos, sempre lutei para não perder esse contacto com o público, nunca. Também nas cenas de sexo, o importante era a ideia de comunicação com o outro.

 

Sempre teve noção do seu poder erótico?

Penso que soube conectar-me com o sexo, ou com o erotismo, ou com a sensualidade. Preferia falar de sensualidade, é mais completo. Como agora. A sensualidade que tenho agora é muito mais interessante. Há um cúmulo de experiências que posso verter nas minhas personagens. Se vivermos bem a vida, se não nos fixarmos apenas numa coisa, apenas no seu lado externo, podemos aprender muito. Se se estiver fechado na beleza, pode-se ter problemas como actor e como pessoa. O denominador comum do que se pensa ser a beleza pode cair com o tempo. Uma mulher é muito bonita quando tem rugas. As rugas da Katherine Hepburn?, eu não as trocaria por nada!

 

A beleza foi decisiva para firmar a carreira, em Espanha e internacionalmente?

Em Espanha, quando comecei, havia uma necessidade de nos expressarmos sensualmente. Tínhamos estado 40 anos reprimidos, tínhamos necessidade de abrir essa garrafa de champanhe. Tocou-me a mim, por geração.

 

Fê-lo sem pudor?

O pudor nunca teve muito valor para mim.

 

Nem em casa?

Se mo ensinaram, rebelei-me. Não me recordo se mo ensinaram... Sempre vi o pudor como algo negativo. É bonito darmo-nos aos demais como somos, sem ter que esconder coisas, sem qualquer tipo de barreiras. Não me pareceu que existisse uma exibição da minha parte. Era simplesmente uma maneira de ser. Em qualquer fealdade pode encontrar-se luz, beleza; não se encontra nunca beleza no medo. O pudor parece-me um produto do medo.

 

O primeiro filme em que participou continha alguns ingredientes, como o comunismo e o amor livre, que explodiram depois da morte de Franco. Os filmes foram uma extensão do seu percurso pessoal, uma afirmação da sua geração?

Exactamente. Por isso, o filme teve tanta aceitação e representou realmente uma mudança. Precisávamos de expressar-nos assim, porque era assim que procurávamos. Toda a gente é produto de uma geração; a minha aprendeu muito rapidamente a distinguir as coisas boas das más, tinha muito claro quem era o ditador; agora, está tudo um pouco mais confuso. Por acaso não me sinto muito desconectada dos que têm agora 20 anos - o meu marido é mais jovem que eu. Há uma coisa, apenas, que une as duas gerações, que é o dinheiro, a sensação de êxito que se tem quando se tem dinheiro. Também aí me rebelei: não escolho os projectos por dinheiro, escolho-os porque me agrada fazê-los. Evidentemente tenho de fazer projectos por dinheiro. Mas a experiência diz-me que onde disfruto mais, e isto é muito claro, é onde não há dinheiro. Porque as pessoas têm mais paixão.

 

Em 78, três anos depois da morte de Franco, mudou-se para Madrid. As peças de teatro em que participara tinham um cunho político forte? Tinha 21 anos, o que é que ambicionava?

A geração anterior, a das mulheres e homens de 30 anos, viveu muito mais intensamente o anti-franquismo. É evidente que a minha geração também sentiu a ditadura, mas havia coisas a mudar; por exemplo, a minha irmã não pôde estudar catalão na escola, eu pude. A minha família não era muito politizada, nem num sentido nem noutro. Mas o meu namorado era trotskista e próximo da Liga Revolucionária; tinha um pai militar e fascista, e tornou-se absolutamente vermelho - essas coisas que acontecem nas famílias... Participámos em manifestações da Liga, e tive uma época revolucionária: pus bombas, cocktails molotov. Como toda a gente. Era o comprometimento daquela geração.

 

A ligação à política era, então, uma consequência do seu namoro.

Sim, respeitava-o muito. E tinha um sentimento de justiça muito forte, porque também em casa me rebelava. Queria estudar teatro e cinema, o meu pai queria que estudasse Direito. A minha luta foi para poder expressar-me mais livremente, e não tanto a luta de um partido político. Então, tudo o que dizia respeito a liberdade de expressão, entendia-o. Não fui nunca de um partido. Se tivesse de posicionar-me, seria ao lado dos anarquistas, sobretudo os da Catalunha. Nunca gostei dos partidos comunistas.

 

Mudou-se para Madrid quando percebeu que queria ser actriz?

Percebi-o antes, quando tinha 13 anos, por aí. Os meus pais tinham uns amigos cujos filhos estudavam teatro. Eu não entendia muito bem, «Que é isso de fazer teatro?». Fui vê-los um dia e gostei muitíssimo. Falavam de coisas muito interessantes, e eram muito mais liberais. Pedi para frequentar essa escola, e aos domingos entre as sete e as onze fazíamos teatro; como havia professores que eram padres, deixaram-me, não seria nada de mal... Depois, comecei a gostar cada vez mais e queria fazê-lo profissionalmente. Tive de pactuar: «Fazes Direito e deixo-te estudar teatro». Os meus pais nunca pensaram em mim como actriz e quando fiz o meu primeiro filme não gostaram muito...

 

Viu o filme com eles?

Houve uma época de fricção em que não nos entendíamos, em que não podíamos escutar-nos. E «La Orgia» não é um filme fácil para os pais verem. Já o título... Digamos que foi ao cabo de anos que voltámos a encontrar-nos. Percebi que muitas das coisas que fiz, muitas das escolhas da minha vida, estavam motivadas pela rebeldia. Não é uma coisa boa... A minha escolha não era livre, tinha que dizer que não, incarnar o papel da rebelde. Há muitas pessoas que passam a vida toda lutando contra o pai ou querendo provar ao pai ou à mãe... Não sei se precisaria de fazer análise, não sei se um actor precisará tanto de fazer análise. Estamos sempre investigando como somos, como são as nossas reacções e emoções. Estamos mais ligados a nós mesmos. As pessoas comuns põem mais barreiras; nós temos justamente de não ter barreiras para poder interpretar muitas pessoas. A própria profissão faz a limpeza. Esta profissão conduz a um entendimento de si mesmo. É uma profissão muito humanista.

 

Carlos Saura deu-lhe a primeira grande oportunidade, fundamental para alicerçar a sua carreira, com «Dulces Horas», em 81. Queria ser uma star?

Nunca, nunca, nunca. Saura deu-me um coloração intelectual; os filmes que resultaram da minha colaboração com Saura foram os europeus. Mas realmente o que me fez dar o salto foi a participação em «El Matador», em 85, no momento em que Almodovar começa a ser conhecido fora. Quando o filme estreou em Hollywood, assinou com a Orion um contrato de 2 milhões de dólares pelos direitos da película seguinte. O que sucedeu foi que um lobby de intelectuais, e, porque não dizê-lo, de homossexuais, que respeitavam muito o trabalho de Almodovar, decidiram atirá-lo para a ribalta. Não é que a estreia de Almodovar tenha sido extraordinária, como é agora, como é uma estreia de Banderas; não, estava confinada a uma grupo de pressão, mas muito distinto. Eu aproveito um pouco a situação: na estreia vou a Los Angeles, conheço uma série de gente interessante e penso em ficar.

 

Usufruiu da circunstância de o filme se tornar um objecto de culto.

Exacto, um objecto de culto. Esse contacto deu lugar a filmes interessantes. Filmes de cinema independente, como «Chains of Desire». Mas daí saiu também o «Falcon Crest»...

 

Como é que a convidaram para a série?

Encontrava-me em Hollywood para fazer um filme chamado «Naked Tango», já tinha a casa alugada, inclusive. De repente o filme falhou, e durante a semana surgiu a possibilidade de fazer a série. Não sabia se havia de fazê-la ou não... Por fim, decidi fazê-la, por oito semanas. Foi interessante, mas era a primeira vez que rodava em inglês, e as séries americanas são muito rápidas: dão o texto no dia anterior e é preciso estudá-lo... Mas fi-lo.

 

Em termos de popularidade, o que é que lhe trouxe uma «soap» como o «Falcon Crest»? Passou no mundo inteiro.

«Falcon Crest» estava na época de máxima audiência. A seguir não fiz nada, claro! Tratava-se de «Falcon Crest»!, do que as pessoas me falavam era de «Falcon Crest». Só. Eu vinha do teatro, tinha outras aspirações. Bom, foi uma coisa à margem do que tinha feito até aí, que me permitiu conhecer um outro mundo. Conheci pessoas que estavam fazendo aquilo há oito, nove anos, sempre a mesma coisa...

 

O ambiente era tal qual assistíamos no «Dallas» e na «Dinastia», com maquilhagens e cabelos rebuscados?

Sim, sim, era exactamente isso. A minha personagem era uma italiana, e a rapariga do guarda-roupa entendia que as mulheres europeias, sobretudo as italianas... Para ela, classe era uma écharpe de seda!, para ela, classe era um chapéu posto de lado, para ela, classe era fumar com boquilha.

 

Era preciso seguir escrupulosamente as indicações ou podia discuti-las?

Discutia tudo o que podia, no meu inglês rudimentar. Mas aquilo é uma máquina, muito, muito profissional. Quando se quer discutir algo do guião, temos sete pessoas, sete guionistas, que se encontram consigo numa sala e lhe concedem 15 minutos, porque a seguir têm outra reunião. De maneira que é preciso pensar se queremos fazer segunda reunião...

 

Como é que viveu essa sua aventura americana?

Divertia-me muito, por exemplo, alugando um Pontiac-Transam descapotável! Um carro muito rápido, muito rápido, tinha não sei quantas multas! Los Angeles era já desagradável no sentido de não ter amigos, não conhecer gente. Se não gozava as coisas boas que tinha à disposição... Por isso a minha casa, que não era luxuosa, tinha jardim, por isso o carro tinha de ser descapotável. Tinha algumas imagens mitificadas; quando aluguei o Pontiac-Transam, fui ao Texas, percorri sozinha a auto-estrada. Lembro-me de um dia de tempestade, neste carro, no deserto que se cruza quando se vai pela 501... Era a aventura.

 

E a transgressão?

Sim. Não era a Hollywood do dinheiro, do faustoso, do luxo. Era a Alice no País das Maravilhas. Era o sonho, o sonho de Wim Wenders, mais do que as fortunas que podia ganhar no «Falcon Crest». Eu não repeti o «Falcon Crest». Chamaram-me ao escritório e perguntaram-me se queria fazer, se queria aparecer regularmente; disse que não, não especialmente. Tinha sido uma experiência interessante, mas do que gostava era de cinema. A minha personagem tinha tido muita aceitação, e a conversa era para saber que intenção tinha. Então, na série, mataram-me! Nessa conversa, decidi o meu futuro, sem saber, decidi o meu futuro. Fui sincera comigo mesma, fui honesta com aquele senhor. Nesta profissão, bom, em todas, mas nesta especialmente, é preciso ser honesto.

 

A sua «fase americana» durou cerca de dez anos, ao cabo dos quais retornou à Europa.

Mesmo quando estava a trabalhar em Hollywood, não pensava fixar-me aí. Viajava muito, (não queria deixar de fazer filmes europeus), e cansei-me.

 

A sua base era onde?

Los Angeles, mas sempre tive a minha casa de Madrid.

 

Como é a sua casa?

É uma casa pequena, um terceiro andar num prédio sem elevador, no centro da cidade, num bairro onde continua a haver o sapateiro e o merceeiro. Tenho-a desde 85, e é alugada, nunca a comprei. Contudo, é o meu ponto de referência. Em Los Angeles, vivi em sítios muito diferentes: no sul, no norte, nas colinas; o que não conheço tão bem é a vida em Malibu ou em Santa Mónica. Mas a minha casa, afinal, foram os hotéis. Tinha uma vida algo circular: pagava casas, e não estava nunca nelas, sempre viajando, sempre com a minha mala.

 

Que importância tem o dinheiro na sua vida?

Nenhuma, nenhuma! Com o tempo também se aprende que seria bom ter uma casa... Há três semanas, Scott e eu comprámos uns terrenos, que distam uma hora de Madrid, para fazer uma escola. É a minha primeira possessão. Para concluir que nunca possuí nada...

 

Uma pessoa que vive no mundo todo precisa absolutamente de que objectos? Que coisas a fazem sentir em casa?

Coisas, coisas... Não nos damos conta, mas há sempre coisas que se arrastam de um sítio para outro. Por exemplo, xailes de caxemira que no inverno uso sempre, (gosto de sentir a lã boa). É um pouco como a manta do Linus, sabe?, o Linus dos livros do Charlie Brown, que leva a manta para todo o lado? Gosto da ideia de comunicar rapida e eficazmente com muita gente. O meu computador, que uso desde 92, acompanha-me para todo o lado; é uma segunda casa, tenho nele imenso trabalho. Como o telefone móvel. Permitem estar em contacto com muita gente, mas de modo independente, sem ter que estar num escritório.

 

É bastante desprendida.

Dei-me conta, em todas estas viagens, que os objectos se perdiam, que não se gastavam. Nas viagens, nos hotéis, perdiam-se. Não tive nunca coisas que se gastaram. Desde há três anos é diferente. Quis cortar com esta loucura de filmes e viagens para toda a parte. Foi um momento de reflexão, adveio uma outra tranquilidade, uma outra calma. Coincidiu com os meus 40 anos. Coincidiu com o meu desejo de ter um filho. E não pude. Não posso. Isso fez-me reordenar as coisas, pensar no que é o mais importante. Fiz 40 anos e perguntei-me «Qual foi a coisa que não fiz e gostaria de ter feito?». Um filho. Quando se sabe que não se pode fazê-lo...

 

Deve ter sido muito doloroso.

Claro, claro. Foi um momento, caramba... E vi-me a revolver tudo, a substituir tudo. Até ressurgir com muito mais força. Toquei algo que era a essência, e pude sair daí com novas perguntas, novas afirmações. Daí também a minha necessidade de plasmar-me num livro, falando da minha profissão. É um testamento, um pouco.

 

Talvez seja uma extrapolação barata, mas o momento em que escreve o livro e pensa em montar uma escola de artes, é quando se confronta com a impossibilidade de ter filhos.

Tem que ver claro, claro. O que fazemos tem sempre relação com toda a nossa vida. Não poder ter filhos; os alunos suprem uma necessidade de passar coisas. Mesmo o livro; não sei se o teria escrito se tivesse um filho. Quem sabe não. Ou quem sabe sim. Se calhar tenho só mais tempo para reflectir; não o teria de outro modo, os filhos tomam muito tempo.

 

A culpa é um sentimento muito comum às mulheres que se deparam com esta impossibilidade.

Não fiz nada no sentido de escutar-me mais a mim mesma. Escutar-me enquanto mulher. E o primeiro em que se pensa quando se é mulher e quando se tem 40 anos são os filhos. Há um relógio que bate, tiq tac. Fiz muitas coisas na vida, sinto-me orgulhosa das minhas viagens, das minhas pequenas coisas. A pergunta que se faz é: «Será que é porque não me dediquei a mim mesma?, será que é porque a profissão esteve sempre em primeiro plano?». Sim, havia um sentimento de culpa. Não uma culpa religiosa, mas uma culpa que derivava da minha escolha. Escolha de vida.

 

O que tem vontade de fazer?

Se tivesse que apontar um objectivo, não o centraria tanto na minha carreira de actriz, mas num projecto mais pessoal. Trata-se de dar, dar mais coisas aos outros. Não ser tanto eu, eu eu. Diria isso.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002