Augusto Mateus
“Tenho uma necessidade de mudar desde sempre. Não me consigo consolidar sobre coisas boas, êxitos, tranquilidades. A vida precisa de desafios. Precisamos de estudar e pensar coisas novas. Não podemos pensar sempre o mesmo, senão estiolamos”. Augusto Mateus está nesta frase. É o tipo de pessoa que imaginamos sempre de mãos nos bolsos. Como sinal de timidez e reserva. E que usa palavras dos livros como “estiolar”. Ele é também aquele que diz: “Para mim não faz sentido interrogarmo-nos porque é que coisas más existem sem pensar em como é que as podemos resolver”. As duas coisas estão ligadas. Tudo na vida nele assenta nessa dupla valência: saber e fazer.
Sentir é outro plano, outra esfera.
Usa expressões como: “numa lógica de”, “no sentido em que”. As palavras são “lógica” e “sentido” – o que deve ser sinal de qualquer coisa.
É tido como um académico. Foi Ministro da Economia, Indústria e Turismo do Governo de Guterres. Tem uma empresa de consultadoria. É professor catedrático convidado do ISEG. Interessa-me por História, Arqueologia, Fotografia. Aprendeu a ler e a escrever em francês. Talvez tenha começado aí uma apetência por ler em várias línguas, por conhecer vários países. Viaja desde pequeno, começou com os pais. Fala pouco da família.
Tem duas filhas. Fala muito depressa e num tom de voz constante, quase monocórdico. É muito articulado. Por vezes sorri e a cara muda um pouco. Não se descompõe. O seu lema poderia ser: correr sem se despistar.
Porque é que não fez uma carreira política?
Porque, para mim, a actividade política só é atractiva numa lógica de cidadania, e não numa lógica de carreira. A actividade política pode ser vivida como actividade principal ou como colaboração pontual em momentos em que, no conjunto dos problemas e desafios do país, temos um papel positivo a desempenhar. Habituei-me a ver o meu sucesso em função do sucesso do país, da comunidade em que me insiro.
Quando é que se habituou a ver assim? Porquê essa identificação quase fusional?
Não escolhemos o ano em que nascemos, não escolhemos o tempo em que vivemos. Eu tinha 18 anos no Maio de 68. Tinha 20 anos no ano em que a polícia invadiu a minha faculdade e eu estava no terceiro ano da licenciatura. Tinha 24 anos no 25 de Abril. A minha formação académica e o meu despertar para o exercício da cidadania coexistem com uma enorme transformação em Portugal e no mundo.
Um exemplo concreto desse cruzamento. Uma opção pessoal marcada pelo tempo que se vivia.
Tinha decidido fazer o doutoramento em Economia numa Universidade inglesa (estava a escolher entre Oxford e Cambridge) e recebi a carta de aceitação da minha candidatura alguns dias depois do 25 de Abril de 74. Tomei a decisão de não ir e de ficar em Portugal.
Para muitos da sua geração, a carreira política era quase um desígnio. Porque é que, nem nessa altura, essa dimensão se impôs?
Fui criticado por, para além de fazer o que muitos jovens fizeram (combater o colonialismo, lutar pela democracia), interessar-me por teoremas, teorias. Fui criticado por ser pedagogista, por prestar muita atenção ao estudo. Não acredito em transformações políticas que não passem por transformações educacionais. Gosto muito de pensar, de estudar. Acredito na política, não como a arte do possível, mas como a capacidade de transformar o necessário em realizável. Não vejo nenhum problema em que se faça uma carreira política, em que se faça disso a actividade central. A mim, não me diz, não é a minha maneira de ser.
Falemos da construção da sua identidade, das razões porque é assim. Frequentou o Liceu Francês, na turma de Ferro Rodrigues e Isabel Alçada.
Todos os liceus, todas as turmas, têm pessoas excelentes que são conhecidas e outras que não são conhecidas. Hesitei muito entre ser médico, arquitecto, arqueólogo, economista. São coisas que não têm que ver umas com as outras. Tudo por uma coisa que ainda hoje me marca: o desafio do conhecimento. (Interesso-me por coisas onde há muito para explicar, onde há dúvidas e mistérios, descobertas). E pela ideia de que o conhecimento tem de ser útil. O conhecimento não se esgota em quem o obtém ou exibe. O conhecimento que interessa é o que muda a vida das pessoas – muitas, poucas, todas.
Porquê? Quem é que o ensinou a olhar assim?
Se calhar porque tenho a noção (não sei se é verdade, nós também mentimos a nós próprios) de que gosto mais de dar do que de receber. Sobretudo, há um conjunto de interrogações a que é preciso responder. Porque é que as sociedades não são mais organizadas?, porque é que há tanta infelicidade no mundo?, porque é que permanecem certos problemas que parecem eternos (como a fome ou a pobreza)?
Quando é que se levantaram essas questões?
Na minha adolescência li muito. O meu pai tinha uma excelente biblioteca e passei férias grandes a ler centenas, milhares de livros, variadíssimos. Eu era um pouco solitário, tímido. Não quer dizer que estivesse fechado; tinha uma vida normalíssima. Encontrei o que se encontra nos livros. Ficando em minha casa, andava pelo mundo, andava pelos problemas, andava pelos entusiasmos.
Três livros ou autores de que se lembre imediatamente e que tenham tido um efeito detonador.
Eça de Queirós, que li com 16, 17 anos, e que não consegui parar de ler. Jorge de Sena. E algumas coisas do Marx que ninguém lê e que me entusiasmaram.
O que há nesses autores, em diferentes registos, é uma dissecação da sociedade.
Sim.
Nos anos 60, existia um contraste social mais marcado. Não podemos escamotear o facto de pertencer a uma burguesa bem instalada – vamos dizer assim.
Ao que é verdadeiramente classe média. “Burguesia” tem muito que ver com propriedade ou com formas de empreendedorismo. O meu pai era um profissional. Vivíamos muitíssimo bem, comparado com a esmagadora maioria da população, mas sem rendimentos de propriedade. Nasci na Lisboa que se transformava numa sociedade grande, em casa, na Praça Pasteur, junto à Praça de Londres. Fui o primeiro bebé a nascer naquelas casas de renda limitada, casas de um conto, cento e dez – que marcam uma geração e uma certa definição de classe média. Esse é o meu ambiente. Nunca consegui ser muito localista.
Localista?
Nunca consegui pensar as realidades a partir do meu bairro, da minha cidade ou do meu país. Sempre fui cosmopolita, sempre fui habitante do planeta Terra. (O interesse pela História e pela Arqueologia vêm daí). Tive a oportunidade de viajar muito. Nos livros, para começar. Depois, com os meus pais. O meu pai tinha o hábito de organizar uma viagem por ano. A partir dos cinco, seis anos, viajei por toda a Europa. Depois viajei, como todos os jovens, para “fugir” da família, para ganhar autonomia. E depois viajei com a minha família. Casei relativamente cedo, tinha 22 anos; e continuei a viajar. Fui prestando atenção no mundo às coisas que me interessavam. A formação das cidades e o seu desenvolvimento, a organização das empresas, a dimensão da pobreza.
Isso mais do que a organização familiar ou do grupo no qual estamos inseridos? A sua escala é outra?
Sim.
Era uma forma de fugir de si, de se evadir?
Não tenho essa noção. Gosto pouco de tribos. Há pessoas que gostam de construir o seu grupo em função das semelhanças. Eu gosto de grupos cujo cimento, cuja coesão, advém de serem muito diferentes uns dos outros. Não gosto de pertencer a um grupo em que todos se vestem de azul ou gostam de jazz.
Ferro Rodrigues, que reencontrou mais tarde no MES e no percurso político, é uma pessoa com quem se dá desde a infância.
Fomos colegas desde o liceu, e tivemos algumas aulas juntos na instrução primária. As turmas eram pequenas. Falávamos todos os dias, fomos construindo uma amizade, que perdura. Mas o Ferro tinha o seu grupo de amigos. Eu estava muitas vezes com eles, mas não pertencia a esse grupo.
Verdadeiramente pertenceu a algum grupo, alguma vez?
No sentido de partilha colectiva de muita coisa, sim. No sentido de clube ou de tribo, não. Nunca tive dificuldades em estar sozinho, em estar comigo próprio. Sou o meu principal crítico – é pelo menos isso que sinto. Às vezes posso parecer arrogante. Auto-suficiente. Mas vivo bem assim.
Essa auto-suficiência: houve com certeza um tempo em que foi mais vulnerável, em que precisava de confirmação exterior.
Precisamos sempre. Somos sempre vulneráveis, cada vez mais. Sabemos que quanto mais sabemos mais sabemos o que não sabemos. Suprema vulnerabilidade: percebemos que o nosso saber é limitado. Toda a vida me caracterizei por isto: quando tenho uma sensação forte (quando leio um livro muito interessante, quando vejo um espectáculo muito interessante), a minha motivação é que outros passem por essa experiência.
Numa palavra: partilha.
E difusão. Garantir que não sou só eu que tenho acesso àquilo. Eu, ou privilegiados como eu.
O desejo de partilha e o sentimento de ser um privilegiado estão ligados? Quase como se fosse uma culpabilização.
Nunca tive esse complexo. Nascemos como nascemos, vivemos como vivemos. Os problemas sociais não são problemas pessoais. Não tenho nenhum complexo em relação a quem vive pior do que eu. Eu tenho é urgência em viver em sociedades mais justas. As minhas motivações não são para aliviar penas, pesos da minha consciência. São para, dentro do possível, mudar para melhor o quadro das organizações económicas e sociais.
Como é que se aprende a lidar com a crítica?
Como bem dizia, precisamos que nos batam palmas. De socialização. Passeio público. Reconhecimento. Precisamos de orientação. Não é possível ter sucesso no trabalho científico, técnico, de investigação, a não ser numa lógica de comunidade que se critica. É mais interessante ter uma comunidade em que aquilo que apresentamos é criticado do que ter uma comunidade em que aquilo que apresentamos é aplaudido.
Um exemplo: a economia portuguesa não cresce há dez anos. Pode haver uma explicação política – tem governado o partido A, não tem governado o partido B; é pobre [enquanto explicação]. Explicação convencional: os portugueses são da Europa do Sul. Os portugueses são pouco eficientes. Encontrar uma explicação para a razão pela qual a economia portuguesa não cresce há dez anos é muito estimulante. Isso só se faz trabalhando, apresentando conclusões perante outros que nos critiquem, e não perante outros que nos aplaudam ou reajam silenciosamente. A partir do momento em que se prova a crítica, não se pode dispensá-la.
Quem é que foi o seu primeiro crítico?
Alguns dos meus professores de liceu. Exigiam-me que eu fosse bom aluno o tempo todo. As críticas dos alunos – utilíssimas. Comecei a dar aulas com 21 anos, numa disciplina do quinto ano. Os meus primeiros alunos eram todos mais velhos do que eu. Devemos usar as críticas para estarmos mais seguros do que estamos a fazer, dos caminhos que estamos a trilhar.
Nunca foi inseguro?
Acho que somos todos. Mas comparativamente acho que não sou. Olhando à volta, sempre fui das pessoas mais seguras. Sou calmo, tranquilo. Tive os meus momentos de reconhecimento. Uma vez numa conferência na América Latina, um grande vulto da Economia mundial começou a ouvir a minha comunicação na última fila, veio sentar-se na primeira, no fim pediu para falar e fez-me um elogio tremendo; penitenciou-se de estar fechado na América Latina e não conhecer jovens economistas europeus como eu. Naturalmente isso ajuda a que ganhemos confiança, não é? Essas matérias dão-nos confiança para sermos mais arrojados, para pensarmos pela nossa cabeça, para irmos mais longe no que dizemos.
Quando falou das críticas, falou de casos exteriores à família, que não são do domínio do afectivo. Existia uma clivagem entre o que era do domínio do social e do pessoal?
São tudo facetas de uma vida. Somos nós próprios, a nossa família, a nossa casa, a rua, o país.
Não disse: “O primeiro crítico foi o meu pai”. Como se essa parte estivesse garantida.
Não estava necessariamente garantida, mas tive uma vida familiar calma. Facilmente cumpria. Era bom aluno, não fazia grandes disparates. Alguns dos disparates que fiz, correram bem. A primeira noção de liberdade física que tenho foi quando me aventurei pelas traseiras. Deve ter sido com quatro, cinco anos. Dei uma volta ao quarteirão, sempre pelo passeio, cheio de medo. Era a primeira volta que eu dava longe da casa e do jardim e da rua próxima. Não contei isso aos meus pais. Fiz. Tive chave de casa com 12 anos. A educação que me deram foi a de que há direitos e deveres. Responsabilidades. Que a liberdade se conquista e exerce respeitando o que os outros pensam. Não tive conflitos familiares. Tive o que desejava: apoio, liberdade, autonomia. Nunca fui linguareiro, não tenho grande capacidade nem necessidade de exteriorizar os meus feitos.
Nem os feitos nem os seus sentimentos.
Os sentimentos exteriorizam-se com um número determinado de pessoas. Reconheço que isso é verdade. Choro muito pouco. Não quer dizer que não sofra. Sou uma pessoa relativamente fechada.
O que é que queria para a sua vida? Voltemos ao 25 de Abril, que muda a sua vida toda.
A nossa.
Até pelo que disse: ficar, ao invés de ir para Inglaterra doutorar-se.
Teria vivido dois ou três anos lá e teria regressado, sim.
Que grandes projectos tinha? Havia algum desejo de heroicidade? Tudo o que descreve é um projecto equilibrado. Há amigos meus que dizem que sou muito certinho, que penso sempre tudo bem, que digo as coisas mais inteligentes ou mais certeiras. Não tenho ideia que se possam ter projectos de heroicidade. Acho que se têm projectos de vida. E as pessoas fazem os acontecimentos, os acontecimentos fazem as pessoas. Os heróis são, muitas vezes, as pessoas que têm a oportunidade de o ser. Há aquela expressão: “O cobarde foge para trás, o herói foge para a frente”. Os heróis e os cobardes são os que fogem. O pelotão não foge.
Queria saber do rasgo.
Quando era adolescente, era campeão de mini-modelos, uns carrinhos eléctricos que andavam numas pistas. Quem é que ganhava as provas? Quem andava suficientemente depressa sem se despistar. Como era muito calmo, facilmente ganhava. Em ano e meio, ganhei 200 provas. Os “O Nosso Café” abriram pistas nas caves, aquilo atraía muita gente. Foi, fiz, passou. Ainda hoje encontro pessoas que conheci nessa altura e que se lembram de mim.
Pode ser uma boa analogia com a sua vida. Anda depressa e não se despista.
Sim. Outra coisa: a minha filha mais nova ainda não tinha um ano, eu estava nas praias ao pé de Peniche, e quando dei por mim, tinha sido arrastado para 300 ou 400 metros [longe da costa]. Ondas relativamente fortes. Não era propriamente um atleta, devo ter estado quarenta minutos a lutar com aquilo. Senti várias vezes que podia morrer. A corrente era fortíssima, tentava nadar e não saía do mesmo sítio; apanhava com ondas em cima. Por fim consegui regressar a terra, completamente extenuado. Para mim foi um momento de heroicidade: fui capaz de vencer aquela dificuldade. Venci-a pela capacidade de não me deixar dominar pelos acontecimentos.
É nisso que pensa: “Não posso deixar-me dominar pelos acontecimentos”?
No sentido da adversidade, sim. Gosto de me deixar dominar pelos acontecimentos no sentido das alegrias. Consigo definir objectivos (pessoais, profissionais, para as empresas que dinamizo, a que presido, ou que meramente ajudo), mas não o faço de forma pomposa. Acho que vale a pena, estou disponível, quero, não morro se, morro se, quero muito, pouco, assim-assim – vivemos todos assim.
Líder: quis ser? Do grupo, da associação académica, do partido.
Não procuro ser líder de nada, embora tenha liderado muita coisa. Não me atrapalho se me são confiadas essas funções. Querer ser presidente, secretário-geral, líder, é uma coisa que considero pequenina.
Como assim?
A liderança-cargo é pequenina. A liderança resultante de um processo social, colectivo, é enorme e interessante. Mas que não se deseja. Acontece. Claro que toda a gente gosta que lhe sejam reconhecidas características que preza: uns é a beleza, outros a inteligência, outros a força do pontapé. Essas características só nos podem ser reconhecidas, e não propagandeadas. A liderança é a mesma coisa. Eu não fui Ministro da Economia; o Ministro da Economia de Portugal durante dois anos fui eu. Quando entrei, sabia o que ia fazer; não me perguntei se o ME usava casacos azuis ou castanhos. Normalmente eu uso casacos azuis, portanto o ministro iria usar casacos azuis. Não vivi essa experiência como um cargo. Vivi-a como uma responsabilidade para a qual eu estava preparado, para a qual tinha ideias, e que procurei pôr em marcha.
Fale-me da sua passagem pelo MES.
O MES representou uma experiência política breve, heterogénea. Nasceu no período em que se abriu uma janela de transformação da sociedade portuguesa. Era uma organização em que se confiava no plano das ideias, das análises, mas não do exercício do poder. O MES surgia com uma fraquíssima intenção de voto como primeira opção, com altíssima votação como segunda. Qual é o primeiro partido, e o segundo? Como segundo, tinha 80 e tal por cento dos votos. Recolhia votos de um espectro muito alargado. Várias correntes diferentes associaram-se no MES; quando era preciso designar gente para exercer funções de liderança, votava-se. Quem tinha mais votos, ficava. Eu sempre tive muito votos.
Porquê? Porque pensa bem?
Fundamentalmente porque sou capaz de transmitir segurança, exprimir-me com clareza, (embora seja criticado por falar muito, por escrever parágrafos muito longos). Porque o que defendo e proponho é justificado, é pensado. Isso ajuda a que as pessoas confiem. Há-de haver outras características, porque não somos só cérebro. Há sentimentos, afectividade, estética.
E carisma. Isso, faltou-lhe? Poderia ter tido outro sucesso se, de certa maneira, fosse mais igual aos outros – se a identificação fosse mais fácil?
Se calhar.
Foi fácil decidir que não ia para Inglaterra fazer o doutoramento? Não ter, ainda hoje, o doutoramento, é uma pedra no sapato?
Não. A decisão foi rápida e natural. Fiz uma carreira académica centrada como professor e investigador. Aquilo que seria a minha dissertação de doutoramento foi partida em bocados e foi difundida. Uma parte ainda não a publiquei; por um lado não tive tempo, por outro pode ser um trabalho para [a reforma]. Não me vejo a envelhecer de uma maneira diferente daquela em que cresci. Quando tinha a dissertação quase pronta, estive doente e não a apresentei. Mas não é uma pedra no sapato. Não vejo a vida académica cingida aos muros da universidade. O que interessa é a capacidade de investigação, de publicação de trabalhos – e isso tenho feito.
Que doença? Que marca disso?
Tinha 30 e tal anos. Desenvolvi uma hiper-tensão essencial e um dia fui assinar um cheque e o cheque mexia-se. Tinha feito uma retinopatia, fiquei algum tempo sem ver, e depois estive sete ou oito meses parado. Passei a ter que viver de maneira diferente. Vivo com alguns medicamentos, sem problema. A regra é: uma vida calma, sem grandes enervamentos ou excitações.
Gostou de ser Ministro?
Gostei e não gostei. Foi um pequeno laboratório, aprendi bastante sobre o que são os governos, como funcionam, aprendi alguma coisa adicional sobre a natureza humana. Eu já tinha muitos anos de ensino de política económica; se nos dão a oportunidade de fazer, é estimulante. Permitiu-me acrescentar à minha experiência coisas que eu não tinha feito. Permitiu-me testar coisas que eu pensava intelectualmente e que pude praticar. Um exemplo: pude desenvolver um relacionamento com o mundo asiático, que penso que é muito importante para Portugal e que percebi que é possível.
E não gostou.
Não gostei porque ficou muita coisa por fazer, e foi pena. Não gostei porque provei bastante daquilo que é a ineficiência da administração pública e das dificuldades de governar. Vivemos num mundo em que a maior parte dos responsáveis políticos se portam como médicos que se esgotam no acto da prescrição. Governar, para mim, é diferente: a prescrição é muito importante, mas o que é fundamental é o doente. A prescrição pode estar errada, deve ser criticada, tem de ser testada, e medimos o sucesso de uma prescrição pelo que acontece ao doente. Cheguei à conclusão de que os governos têm menos poder do que se pensa nas áreas em que se pensa, e que têm mais poder noutras em que nunca se pensa.
Quais?
O poder da influência, da mobilização, mudança das regras de jogo, o poder de juntar o que está separado, planear, estimular.
Nesse sentido, é muito diferente ser Secretário de Estado, como foi, ou Ministro?
É ligeiramente diferente. Depende da orgânica do Governo e das responsabilidades que se têm. Fui Secretário de Estado da Indústria poucos meses, não dá para fazer uma avaliação. Como Ministro da Economia tinha mais responsabilidades e mais campo de acção. A lógica de um SE é a de uma responsabilidade específica, parcial e intermediada por um ministro. O que foi mais rico na minha experiência: a possibilidade de fazer coisas transversais.
Foi Secretário de Estado querendo ser Ministro?
[riso] Não lhe sei dizer. Posso dizer, para ser sincero, que um número alargado de pessoas que procuraram convencer-me a aceitar usaram esse argumento. Não digo que não tivesse pensado nisso. Não tenho problemas em aceitar responsabilidades para as quais acho que estou preparado.
Quem o convidou para SE foi Guterres ou Daniel Bessa?
Foram os dois. Estas coisas têm a substância e a forma, e devo dizer que não liguei à forma, mas à substância. [Tratava-se] da relação que tinha com António Guterres.
A sua ligação ao Governo faz-se por via do PS, nomeadamente a António Guterres?
Ao PS, não tanto. Ao António Guterres, sim. Convidou-me para almoçar, falei com ele; lembro-me de ter comentado com os meus amigos que não tinha percebido para que é que era o almoço. Era alguém que anunciava a algumas pessoas, não propriamente que ia ser Primeiro-Ministro, mas que ia assumir caminhos que podiam conduzir a outras responsabilidades. Tive todo gosto em ajudá-lo na criação de condições de credibilidade para que as pessoas votassem no PS e nele. A ida para o Governo teve que ver com isso: não faz sentido colaborar no desenho de um projecto e depois dizer: “Está feito, outros que venham”.
Deixou de ser Ministro em Dezembro de 97.
Foi na pré-História! [riso]
Já passaram anos suficientes para falar de Guterres, Daniel Bessa e Pina Moura? Pessoas essenciais neste xadrez.
Do António Guterres já falei. Teve o grande mérito de protagonizar uma mudança necessária, de ter tido a coragem de formar um governo para o qual desafiou um conjunto de pessoas que não tinham carreira política, que pensam pela própria cabeça. (Quem não tem carreira política pode tomar medidas de forma mais livre, sobretudo quando estamos a falar de reformas. Podem estar disponíveis para pagar o preço individual por essas reformas). Teve uma segunda parte de Governo menos interessante, na minha opinião.
Daniel Bessa.
O Daniel Bessa é um colega. Não tenho especiais relações com ele. Quando fez o doutoramento, fez um trabalho muito interessante sobre inflação na revista ibero-americana, que promovia duas conferências anuais pelo mundo. Tive a oportunidade de o convidar e de lhe dar uma oportunidade de expor os seus trabalhos. Sempre me pareceu que não soube encontrar o seu lugar naquele Governo – não digo que tenha sido por culpa dele; daí, também, a sua saída.
A má relação e tensão que se atribuía aos dois é uma ficção?
Nunca existiu. Tenho a relação que sempre tive com o Daniel. De simpatia. É uma pessoa que prezo.
Pina Moura.
O Pina Moura foi o meu sucessor. Não falei, nem vou falar, nem tenho que falar. Foi meu aluno. Ajudei-o a fazer uma coisa que para ele foi importante, que foi refazer a vida a partir do regresso à universidade e da obtenção da licenciatura em Economia. Quando se é Ministro da Economia trabalha-se em articulação-chave com o Primeiro-Ministro. O Joaquim Pina Moura era o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro. Trabalhei com ele de forma aberta, clara. Quem estiver atento ao que os jornais publicaram fará a sua opinião. Tudo isso me parece secundário. Não gosto e não creio que as fulanizações tenham aqui algum papel. Em termos de Governo, o que conta são as políticas, o bem ou mal fundadas que são, o seu maior ou menor sucesso na melhoria do nível de vida das pessoas, na organização das sociedades, da competitividade das empresas (neste caso).
O que ficará de si é o Plano Mateus?
O Plano Mateus foi pensado por mim, desenhado por mim, escrito por mim, em colaboração com os meus colegas do Governo. Não fiz nada para que se chamasse Plano Mateus. Chama-se assim porque era preciso, se corresse mal, encontrar um nome que pagasse um preço por ele. Felizmente teve mais de 220 mil contribuintes que aderiram, e que pagaram as dívidas que permitiram que Portugal entrasse no Euro. É ainda hoje o momento mais alto [que permite] mostrar aos contribuintes cumpridores que não são parvos. Quem não tinha pago e tinha incorrido em dívidas, pagou. O êxito do Plano foi grande, já se passou a fasquia dos 95% na recuperação das dívidas que podiam ser recuperadas. Não convivo nada mal que fique isso da minha passagem pelo Governo. Mas há outras coisas. O balanço que faço? Fiz essa declaração à saída do Governo, na tomada de posse do meu sucessor: o balanço não sou eu que o vou fazer. São as pessoas, é a sociedade portuguesa.
Ainda se lembra muitas vezes de ter sido Ministro, ou parece-lhe uma realidade longínqua?
Acho que se lembram as pessoas mais do que eu. Lembramo-nos sempre do que fazemos com intensidade. Lembro-me de ser Ministro como me lembro do meu liceu, da universidade, de um aluno mais crítico e que marquei. Fui Ministro, não congelei a minha vida aí. Tenho sido útil ao meu país. Tive mais influência na evolução de certas coisas do que na altura em que era Ministro. Sem me estar a pôr em bicos de pés, tive alguma responsabilidade, como cidadão e como técnico, na decisão sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa. Não precisei de ser Ministro para isso.
Disse que gostava mais de dar do que de receber. Um presente que tenha gostado de receber?
O que me veio à cabeça foi um almoço. Como Ministro visitei Angola três vezes; na segunda vez, quatro ex-alunos meus que tinham sido governadores do Banco Central de Angola organizaram-me um almoço secretamente. Foi um óptimo presente. Tinha seguido vagamente a carreira deles e foi bom revê-los.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009