Bienal do Livro de São Paulo - 4
1.
Rebecca tem 36 anos, vai à Bienal do Livro de São Paulo no próximo domingo. Porque é o dia de folga e porque recebe na sexta, e quer comprar um montão de livros. Vai com a filha, que também gosta de ler. O seu pai morreu quando tinha sete anos, e lembra comovida que a levava a esta feira imensa. Rebecca gosta de ler crime. Está até a ler O Crime do Padre Amaro. É vendedora num centro comercial. Ganha, depois dos impostos, 1200 reais por mês, mais comissões. Pode ganhar três e quatro mil num mês muito bom, pode ganhar 2000 mil num mês mau.
2.
Lídia Jorge entrou para o Brasil pela porta da literatura. Percebeu que havia outra sintaxe possível para o português com Jorge Amado e Graciliano Ramos. Não pensa em Portugal como países irmãos, nem países mãe e filho. Não quer que Freud se meta nesta relação porque isso nos separa. Prefere pensar em nós como países profundamente amigos. Compreende que nas discussões se acentuam os ressentimentos do passado. “Os povos têm de falar da sua dor. Até se saciarem. Vai demorar muito. Creio que é importante lavar a cara e manter a memória.
Um dia respondi num questionário Proust que queria ser um porto de mar. O que é isso? É ser barco que chega e que parte, é fazer a viagem para longe e voltar, é ser a aventura, ser toda a vida do cais, ou seja, da humanidade.”
Lídia dialogava com a escritora brasileira Socorro Acioli. Nessa manhã falara de Agustina, cujo centenário se assinala também este ano. Na carrinha, de regresso ao hotel, punha-se o sol. “A Terra é linda”, comentava embevecida.
3.
Insistem para que não use o celular na rua. Muitos furtos a pé e de bicicleta. Menos violento que o Rio. Ainda que tenha piorado um pouco com a pandemia. Pessoas dormem em tendas num jardim. Numa tenda improvisa-se um alpendre e pendura-se uma rede de pano xadrez. Muitas pessoas dormem na rua, sem cobertor ou tenda. Carolina Maria de Jesus escreveu em Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada: “Ao entrar no elevador percebi que ele é... É maior do que o meu ex-barracão”. A frase foi reproduzida no elevador do Instituto Moreira Salles, que dedicou uma exposição a Carolina há uns meses. Bateu recordes de visitas. O livro de Carolina ficou em primeiro lugar numa lista de livros que devemos ler para compreender o Brasil. 200 anos, 200 livros.
4.
Caminho na Avenida Paulista. Na banca de jornais, vende-se Para além do bem e do mal de Nietzsche e o Cândido de Voltaire, Sófocles e Agatha Christie. Também se vendem jornais velhos para os animais fazerem as necessidades, carrinhos de brincar, óculos de baixa graduação, tralha. Numa das pontas da banca, uma bandeira mostra Lula: O Brasil feliz de novo. Na outra ponta, a cara sorridente do actual presidente e o (mesmo) slogan: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos; fechou com Bolsonaro.
Na banca seguinte vende-se artesanato em capim dourado. Pulseiras, pequenos cestos. Capim dourado vem do Tocantins. “Esse os chineses ainda não conseguiram imitar”, diz o vendedor, rindo muito.
5.
Finalmente avisto os urubus. Quando chego ao aeroporto António Carlos Jobim, começo, madrugada, por saber que estou no Rio quando vejo o sobrevoo dos urubus. Gosto deles por causa do álbum homónimo de Jobim. Em São Paulo, esta ave necrófila voava quase tão alto quanto o aviãozinho que passou logo depois.
6.
Disseram-me que a Casa Santa Luzia era o melhor supermercado de São Paulo. Tudo caríssimo, tudo maravilhoso. Vi um Barca Velha de 2011 que custava cerca de 1500 euros. Mas o que gostei mesmo de ver foi a cocada, a bananada, a pessegada, a marmelada, a goiabada, a figada, a mangada. Há quem goste de passear em supermercado.
7.
O empregado do pequeno almoço canta Índia de Gal Costa. Canta muitas canções. É a minha segunda vez em São Paulo e fascino-me com a dura poesia concreta das suas esquinas. Caetano canta o tempo todo na minha cabeça. Muito importante: perseguir o avesso do avesso do avesso do avesso do avesso. Continuar na sensação nada entendi. O cruzamento da Ipiranga e da Avenida São João: até agora só estive lá na imaginação, que é um bom lugar para estar.
Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.