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Anabela Mota Ribeiro

Bienal do Livro de São Paulo: a visita de Marcelo - 2

03.07.22

Marcelo deu para lá de show de bola. Irrequieto, afectuoso, selfies para cá, selfies para lá, brasileiros a repetirem em cada esquina: estou com inveja, quem me dera um presidente assim.

O presidente começou o dia com um ex-presidente, e por causa desse encontro ficará desta visita um amargo na boca. Ainda que a expressão “incidente diplomático” não seja verbalizada e, ao contrário, o desconvite do presidente para almoçar em Brasília, segunda-feira, seja desvalorizado. Até 7 de Setembro, quando se assinalam os 200 anos da independência do Brasil, há tempo para digerir esta pedra.

Marcelo começou o dia com Lula, pequeno-almoço às 9,30 em que se falou de tudo, de geopolítica à Ucrânia, e não se falou do Brasil nem de Bolsonaro. Na casa do cônsul de Portugal em São Paulo. Marcelo e comitiva chegaram a São Paulo ontem, vindos do Rio, num avião militar brasileiro.

E agora, o que vai conhecer? Nunca se sabe. Tratando-se de Marcelo, nunca se sabe. O programa de São Paulo foi reagendado, a ida a Brasília cancelada. Durante a tarde, encontro com a comunidade de portugueses em Sampa. Passa para segunda feira a reunião com Temer.

O caudal de pessoas que esperavam o presidente português, já no recinto da Bienal, era engrossado minuto a minuto. Fora os visitantes que perguntavam:

- Gente, que há ali?

- O presidente de Portugal.

- Sério?!

Comentários da espera:

- o presidente está a fazer declarações depois do encontro com Lula.

- o presidente já está a caminho.

Chegou.

Marcelo tem aquele dom de transformar 50 segundos num tempo considerável. Por exemplo, em 50 segundos é possível provar um croquete de leitão da Bairrada, fazer um brinde com espumante português, ao som de uma guitarra.

Passo acelerado pelos corredores. Marcelo de braço dado com Pedro Adão e Silva. Como se o apadrinhasse. Talvez tenha começado a apadrinha-lo quando mergulharam juntos nas águas de Copacabana, ontem.

E então Marcelo vê José Luís Peixoto num auditório. Muda a rota, sobe ao palco. “Ia passando por aqui e vi o Peixoto.” Peixoto falava de Saramago. “Como disse o Peixoto, Saramago é português, é brasileiro, é angolano... porque ele é universal.” Remonta aos anos 90, quando apresentou um livro de Saramago, e naquele tempo como agora vivíamos sob uma cegueira incapacitante. Ágil, ainda comenta a peculiar pontuação do Nobel português, que acompanha o seu ritmo de pensamento. E despede-se com um abraço.

A multidão atónita. A segurança brasileira incrédula. O protocolo e os portugueses, habituados ao improviso e carácter indómito do presidente, ainda assim a dizerem: uau. Uma jornalista comenta: esta é a viagem presidencial mais estranha de todas as que já acompanhei.

E ainda faltava tanto. Aquele momento em que uma cantora sertaneja interpretava à viola uma toada que ia bem com o que estava escrito numa faixa: sertão de carne e alma. De uma música de cordel, passou directo para o Fado Tropical de Chico Buarque. Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal. O imenso-Portugal-Marcelo atravessou o recinto, tirou mais selfies, aparentemente sem fito.

Ilusão. O passo pode ser errático, mas a intenção é decidida, firme. Sabe o que quer e, sobretudo, não erra no objectivo que traça.

Ao virar da esquina, entra numa casinha. Maurício de Sousa, o autor do Livro da Mônica, num rectângulo onde na nossa infância se dizia: menina não entra, está a pintar. Não se avistava Cebolinha ou Cascão. O presidente sentou-se ao lado, desenhou com o cartoonista, pintou, usou os lápis de cor, experimentou o fio livre da criança que salta e ri, e avança curiosa. Não foram 50 segundos, foram uns cinco minutos, podem ter sido dez. Foi o tempo de um recuo à infância, uma coisa que não se mede em tempo cronológico.

Pouco antes, passagem pelo pavilhão de Portugal. Já estava quase no fim a conversa com Paulina Chiziane, escritora moçambicana, a última a ser galardoada com o prémio Camões.

A Paulina foi o que não pude ouvir por ir a galope, com Marcelo.

Marcelo e Pedro Adão e Silva (e demais individualidades) sentados um instante a ver ainda Paulina, a que “tem o elixir da juventude eterna. Um beijo”, despede-se.

Pegando o gancho do que ele disse sobre Paulina: a juventude, será o que procura? Pode ser que seja uma forma de perdurar.

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.