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Anabela Mota Ribeiro

Bienal do Livro de São Paulo: as exposições - 5

10.07.22

1.

Aquilo que continuo a ouvir na minha cabeça, desde o nosso encontro em Lisboa, não há muitos dias: o que eu crio vem do estômago.

Humberto Campana é um dos irmãos Campana, designers brasileiros expostos no MoMA, no Pompidou, no Vitra Museum, nos maiores espaços expositivos.

Eu sabia deles há anos, desde a cadeira vermelha. São 450 metros de corda, trançada apenas por uma pessoa, produzida em Itália, vendida no mundo todo. A estrutura é em aço e um artesão, sem emendas, faz a trama, laboriosamente.

Vem do estômago, vem das mãos, vem dos sentimentos. Tudo isso é expresso, não em palavras, mas em pele de pirarucu, em corda, em pele enrugada, em golfinhos de peluche. As mãos sabem muita coisa, e o estômago é parente do inconsciente. Há artistas que pensam a partir da razão, obedecem a um princípio racional. Humberto e o irmão Fernando gostam de provocar sensações inesperadas, subvertem o material e a função, da aglutinação de objectos comuns fazem uma coisa extraordinária.

O mais importante é o embate do material, a verdade do material. O material define a função. Ou seja, uma inversão da premissa da Bauhaus, em que o material servia a função. Fractura, arrojo, insubmissão. Os materiais são personagens à procura de uma peça, um autor, um enredo. Um dia, encontram-se. Um dia, o material inventa outra vida, outra narrativa, é capaz de se metamorfosear.

O estúdio dos Campana fica em Pompéia, a parede que dá para a rua é de um verde calmo. O espaço já foi uma garagem de carros.

Há paredes revestidas a papel dourado, de bombom. Há a poltrona Favela, feita com o que sobra, em madeira. Ou o espelho grande, que desafia a superstição e sobrepõe espelhos partidos. O refugo, com os Campana, é sempre o começo de uma outra coisa. Há a cadeira de estrutura barroca que se inspira na Bo, da Lina Bo Bardi. Aquele sofá suspenso, um ovo, feito para a Louis Vuitton. Aquela flor amarela, espécie de ninho envolvente, também para a Louis Vuitton. A sereia em pirarucu e cauda em cobre. A cadeira de peixinhos do Fernando que precisa ser restaurada. A cadeira de golfinhos pronta a seguir para Londres, ums dos best-sellers. A cadela Dora feita para a Bordalo Pinheiro.

Há um bolinho de fubá e marmelada.

Há a exposição na Galeria Luciano Brito, em Novembro.  

2.

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões. Construído sobre a estação de caminho de ferro, o Museu da Língua Portuguesa coincide com o lugar e celebra a língua como viagem, lugar de encontro, colisão, sedimentação, transformação contínua, mais partida que chegada, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (ou antes disso, porque se vai aos primórdios, à etimologia, à construção das línguas europeias) até à actualidade, em que se abrevia: Msg pra vc.

Mensagem para você: no museu, encontram-se os falares das línguas portuguesas.

Inaugurado em São Paulo, em 2006, ardeu poucos anos depois, reabriu há um ano.

Ouve-se Maria Bethânia a dizer um verso de Pessoa, um rapper interpreta um poema de Gregório de Matos (século XVI), Ailton Krenak, activista indígena, fala de ocupação e abuso, e não de descoberta cordial. Fala-se da fala. Da fala quotidiana, com as suas estruturas e assimilações, dos antepassados e parentes da língua. Define-se “saudade”: denota abandono, solidão causada pela ausência de algum ente querido. Desenha-se uma linha do tempo, ao longo de um corredor de 106 metros, na qual se vê a alma da língua portuguesa.

Lemos na parede:

“Não se pode dizer de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exato; é ela que nos inventa.”

Eduardo Lourenço

“Não há uma língua portuguesa, há línguas em português. A língua portuguesa é um corpo espalhado pelo mundo.”

José Saramago

“Palavras navegam entre línguas. Viajam de boca em boca. Instalam-se nos idiomas subvertendo as línguas onde se acomodam.”

Mia Couto e José Eduardo Agualusa

3.

É urgente conhecer Bispo do Rosário, artista imenso, uma cosmogonia impressionante. Conheci-lhe o nome quando li Nise da Silveira, mas ontem vi uma exposição com o seu trabalho: inventários, amostra de tudo o que existe no mundo, elaboração sobre a memória e o significado das coisas. Bispo acreditava que era Jesus. Viveu numa colónia psiquiátrica a maior parte da vida. "Eu vim". Aparição, impregnação e impacto é o título da exposição no Itaú Cultural de SP. 

Num dos vídeos, diz assim: "Quando eu cheguei lá no Engenho de Dentro, os doentes que é bom espiritualmente me acompanha. Porque é que você me acompanha? Porque o senhor é Jesus. Mas por quê? Você escuta voz? Escuta voz dizendo que o senhor é Jesus. Pronto, é o bastante. Está mais que visto, mas só para quem enxerga.

4.

Era uma fábrica de tambores. Ao invés de derrubarem e erguerem uma torre de vidro e betão, construíram um centro de lazer e cultura, onde é possível nadar, dançar no bailinho da terceira idade, comer a preços módicos, frequentar oficinas de arte, ver exposições (por exemplo, de Sebastião Salgado), espectáculos (por exemplo, de Caetano e Cesária Évora) num palco que funciona em espelho, com plateia de um lado e de outro, ler jornais, e até não fazer nada. O Sesc Pompéia é um lugar que tem as portas abertas. Só isso já faz a diferença numa urbe babélica como São Paulo. É possível estar, estar sem fazer nada, estar sem pagar nada. Uma experiência socialista. Isto é, um lugar verdadeiramente democrático.

Convidaram uma arquitecta dedicada ao ostracismo (por causa da ditadura) que fez do lugar uma jóia radical. Lina Bo Bardi viu a estrutura de ferro, tão rara, no tecto, e optou por manter o edifício da velha fábrica de tambores. O edifício estava sofrido, explica Isa Grinspum Ferraz, mulher do arquitecto Marcelo Ferraz, braço esquerdo e direito da brava Dona Lina. Descascaram a pele danificada do prédio e descobriram coisas incríveis. Trabalharam nove anos. Lina também desenhou o mobiliário de madeira, montou um São Jorge a matar o dragão numa fachada, e ao lado plantas esguias, elegantes: as espadas de São Jorge. Não quis esconder nada. Escolheu não polir a baba do cimento entre tijolos, assumiu os cabos, as condutas, dialogou com o Pompidou, revelando o avesso do avesso. E fez dialogar a velha fábrica com um novo edifício, onde agora estão os balneários e a piscina.

O Sesc é apelidado de verdadeiro ministério da cultura brasileiro. Existe no país todo, mas o do estado de São Paulo é famoso. O seu director há mais de quarenta anos é o Prof. Danilo Miranda, sociólogo, jesuíta de formação, esse deus, sintetiza Isa. São quarenta e tantos centros, enraizados na vida da comunidade, âncoras da actividade social, cívica, cultural. O do bairro Pompéia é o mais célebre.

5.

No dia 5 de Julho de 1950, começaram a erigir a Casa de Vidro. A construção demorou um ano.

Visito a casa de Pietro e Lina Bo Bardi no dia 7 de Julho de 2022. A intervenção no edifício, por coincidência começada nesse dia, vai demorar um a dois anos.

É uma casa sustentada por colunas elegantes, princípios simples: a leveza, a permeabilidade, o diálogo entre o interior e o exterior, a obra construída e a presença da Natureza. Foi uma forma de pensar sem limites, provocando continuidades, a convivência de uma espreguiçadeira Corbusier com um armário do século do século XVI, bugigangas e óleos antigos, uma estátua de Diana e uma mesa feita de pedras brasileiras, linhas depuradas.

A paisagem que envolve a casa faz de parede, de paredes. Parece uma mata que sempre existiu, mas tudo foi plantado. As fotografias antigas mostram os dois terrenos comprados sem qualquer vegetação. Lina jogou sementes ao vento, brincou com a ideia de desordem. Porém, há troncos de árvores finos e alinhados com os pilares sobre os quais assenta a casa de vidro. A gárgula que vemos numa das extremidades deita água exactamente sobre o lago, fazendo ali uma pequena cachoeira. Dito de outro modo: tudo foi pensado. 

O que mais impressiona, subindo as escadas, é a sala imensa, de onde se avista o verde em frente. O chão é de pastilha azul, desperta a sensação de pisar um mar de cor tépida. No movel da televisão e aparelhagem, há vinis de Caymmi e García Lorca. Era também um espaço de trabalho com estantes, livros, mesas. Quase todo o mobiliário foi desenhado pela arquitecta italiana.

Nas casas de banho, predomina também a pastilha, de diferentes tons: azul marinho, azul esverdeado, tom de areia. Num dos armários, há uma repetição de frascos de perfume com cheiro a violeta.

Este foi o primeiro projecto arquictónico de Lina, aos 37 anos.

Pietro e Lina viveram aqui até à sua morte, nos anos 90. O casal não teve filhos. 

No espaço exterior, no que seria o terceiro terreno, fica o jardim, a horta, o canil, a casa das ferramentas. Ervas daninhas brotam do cimento. Há pedras coloridas incrustadas; lembra Gaudí.

A Casa de Vidro vive exclusivamente de receitas próprias, entradas e aluguer do espaço. O Daniel, que conduz visitas limitadas a grupos de 15 pessoas e sob reserva, diz que precisam de visitas. 

6.

O João Fernandes leva quase três anos de Brasil, no Instituto Moreira Salles. Rimos muito numa tarde de Outono, tirámos fotografias junto à escultura do Richard Serra, depois de um almoço em que aprendi tanto, e antes de ser levada pelas exposições de Walter Firmo e Daido Moriyama. Conhecemo-nos no Porto, cruzámo-nos em Madrid, reencontramo-nos em São Paulo. 

Carolina Maria de Jesus escreveu em Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada: “Ao entrar no elevador percebi que ele é... É maior do que o meu ex-barracão”. A frase foi reproduzida no elevador do Instituto Moreira Salles, que dedicou uma exposição a Carolina há uns meses. Bateu recordes de visitas. 

7.

A exposição de Gabriela Albergaria no MAC é a beleza esperada. A artista portuguesa intromete-se mais fundo na raiz das árvores, das plantas, do rio. É constituída essencialmente por desenho e escultura, resulta de uma viagem feita à Amazónia. Aquela árvore inteira cortada em cubos e disposta em forma decrescente: metáfora do tempo ínfimo que um dia foi o nosso, nascentes, até ao momento do crescimento adulto e maduro.

Gabriela e João Fernandes falaram no primeiro fim de semana da Bienal.

Entre a Bienal do Livro de São Paulo, encontros com antigos presidentes e a comunidade portuguesa, o presidente Marcelo visitou a mostra.

Fica no terceiro piso do museu projectado por Oscar Niemeyer. No último piso alcança-se uma das vistas mais impressionantes de São Paulo. Era sexta feira, anoitecia, as luzes dos carros bruxuleavam.

A conversa entre as várias disciplinas artísticas (arte, literatura, arquitectura...) é cada vez mais intrincada. 

Á saída do edifício, um segurança pergunta a outro segurança: tem como ver um TX para visitante?

TX: táxi.

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.