Bienal do Livro de São Paulo - 1
1.
A fala de Marcelo Rebelo de Sousa quadra com a de Lilia Schwarcz. O presidente disse, sem dizer assim: “O livro é uma arma contra o populismo”. A historiadora exortou, com urgência: “Gente, está na hora de praticarmos vigilância cidadã”.
Lisboa – Rio: 100 anos depois da travessia de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Marcelo já tinha tomado banho em Copacabana, o desconvite (oficial) de Brasília ainda não havia chegado. Nem chegou. O discurso do presidente na cerimónia de abertura da 26º Bienal do Livro de São Paulo começou na primeira pessoa. Os pais que viveram em São Paulo depois da Revolução de Abril. A mãe que era de esquerda, o pai que era salazarista. O amor pelos livros discutido à mesa e forma de exercitar a tolerância, lidar com a diferença. Os seus (primeiros) 60 mil livros que foram doados à biblioteca da sua terra, Celorico de Basto. Que já foi o mais pobre município do país, e já não é. Quiçá pelos livros, pela compreensão de que a cultura e a educação são o caminho indispensável para arrancar da pobreza.
O presidente brasileiro não é mencionado. A não ser no refrão "Fora Bolsonaro" que irrompeu da plateia, entre os discursos da noite. Mas é ele que está no subtexto do discurso vigoroso do homólogo português, também, quando Marcelo fala de pureza. No começo da noite, um magnífico concerto da orquestra Mundana Refugi, que integra refugiados e busca a sintonia entre o que parece dissonante. Vêm da Síria, Palestina, Cuba, China, Irão. Interpretam temas tradicionais, por exemplo do Congo, mas também do Brasil. Instrumentos e vozes, roupas e fenótipos diversos. Não há portugueses puros como não há brasileiros puros. Não, a nossa raça não é indubitavelmente caucasiana — não disse o presidente, mas o sentido era este. Nós somos o encontro, em resumo. Marcelo aludiu ao concerto, à beleza da polifonia, à verdade da polifonia.
2.
Isto no fim do primeiro dia da Bienal, em que Portugal é o país homenageado. No ano dos 200 anos da Independência do Brasil.
Mas de que independências — no plural — falamos, alertou Lilia Schwarcz. A questão é complexa.
Na conversa inaugural, a historiadora falou com o activista indígena Daniel Munduruku e Valter Hugo Mãe (é dele a frase que serve de motor à programação: é urgente viver encantado); mediação da curadora do espaço português, Isabel Lucas. Nessa discussão, como em todas, houve o momento em que a política se impôs, derivando da cultura para um sentido de urgência que está no ar e que vai desembocar nas eleições de Outubro.
Outra linha da intervenção de Marcelo: o livro é o instrumento para apurar o espírito crítico. Lilia poderia dizer, como já disse: não queremos armas, queremos livros. Os presidentes dos dois países empunham objectos diferentes. E o livro, canta Caetano, é um objecto transcendente.
Alguns sublinhados da primeira mesa.
Lilia:
- Racismo estrutural. O genocídio do século XVI e ainda se fala em harmonia. O olhar europeizante na maneira como o Brasil se vê. O problema da palavra “mestiçagem”: tem implícito não só a mistura como a hierarquia. E está no mito fundacional do Brasil. A relação do branco com o indígena: nós temos ciência, eles têm crença, nós temos filosofia, eles têm lendas, nós temos arte, eles têm artesanato. As palavras não são inocentes. Mas não se trata de culpabilizar o colonizador.
Daniel:
- Índio é uma palavra que nos nega. Indígena é uma palavra que nos afirma. O significado de indígena é: originário. A ritualização é a forma de não esquecer o lugar de origem, e saber por onde avançar. Os ritos de passagem representam uma quebra no tempo. Todos têm a ver com sofrimento. Brasil é país em crise de identidade. É necessário celebrar e revisar uma nação de 522 anos. “E para pensar um projecto de país, a gente tem que sofrer.” Sejam rebeldes!, incitação para os jovens.
3.
Como escrever depois de Saramago?
O Nobel português é a pedra no no caminho. Alusão de Carlos Reis, comissário do centenário de Saramago, ao poema de Carlos Drummond de Andrade. Uma pedra que dura e que fica, mas que não é pedra no sapato.
Valter Hugo Mãe e José Luís Peixoto falam da herança saramaguiana.
Valter:
- O lastro humanista e a boa fé: o que primeiro o impactou em José Saramago. “Ele apresenta-se limpo nas suas convicções, inteiro, sem esconderijos. Ao serviço da Humanidade.”
Peixoto:
- Levantado do Chão: de repente, era o mesmo Alentejo. Compreender, de forma fulminante, que aquilo que o rodeava podia ser literatura. Como escrever sobre Religião depois do Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Caim?
A escritora Socorro Accioli, também na mesa:
- O meu amuleto é uma folha da oliveira que está em frente à Casa dos Bicos. Saramago é o escritor que me deu coragem.
Put some farofa on it — como diria Gregorio Duvivier.
Some farofa mais tarde, uma conversa à tarde, em que o poema é lanterna.
Quase a chegar ao stand de Portugal, topar com o bondinho 28, réplica do amarelinho que atravessa Lisboa, ao lado do qual há uma estátua de Pessoa (não se parece nada, mas valeu a intenção). E os painéis com uma exposição de Saramago. E livros.
- Prove uma bala, moça.
Tenho dificuldade em não aceitar esta bala, que é um doce.
Eucanaã Ferraz:
- “O poema Coral de Sophia: ´... e cada coisa pergunta o nome que tinha´. O poema pergunta os nomes que esquecemos. Esquecemos de tanto dizer. Então precisamos acender os nomes.” O horizonte do poema é a ressignificação das coisas, tocar a fundação do mundo. Também Eugénio de Andrade. E Clarice que nos lembra que escrever é uma forma de fracassar.
Fracassar, fracassar sempre, fracassar cada vez melhor — adaptando o Beckett.
Maria do Rosário Pedreira:
- A literatura é um instrumento para aprender a empatia e a compaixão. Artistas e cientistas: a sua matéria prima é a inquietação, a não conformação.
Ambos sabem que debaixo de cada coisa há um monstro, que se repercute mesmo nos poemas solares. Temos em nós a experiência da ruína, a sombra.
Ambos criam uma cápsula onde está o foco, a concentração, a luz da lanterna. Apesar do ruído. Que cresce, sobe, e toca o tecto do pavilhão.
5.
João Fernandes e Gabriela Albergaria, director do Instituto Moreira Salles, artista plástica, exposição recém-inaugurada em São Paulo. Título da mesa: para entender a floresta.
A artista traz um tópico fundamental: a importância do erro. O erro o erro o erro. O seu trabalho é um palimpsesto. Há, como nos veios da madeira, ideias, erros e correcções. Tem no centro o reaproveitamento da falha. Os erros — a rasura — são fundamentais para pensar e avançar no processo de trabalho. A parte feia também tem de ser mencionada: ela é vida em potência.
A arte é a forma mais radical de liberdade.
As viagens. Misturar as linguagens todas. Respeito pela natureza.
Poderíamos continuar a adentrar-nos na Amazónia, ver a cor vermelha ou preta ou roxa da terra. Ou os rios. Mas cada conversa tem 50 minutos. E essa cola com a recitação e canção da Livia Nestrovski.
Casa cheia no pavilhão de Portugal ou nem tanto. Valter Hugo Mãe terá sempre filas à volta do quarteirão. Porém, é indispensável escutar vozes emergentes e de outros segmentos.
6.
Milhões de livros, milhares de pessoas, filas quilométricas para entrar manhã cedo. Muitos, muitos jovens. Crianção até aos 12 anos não pagam, estudantes pagam 15 reais, adultos 30 reais (30 reais: cerca de seis euros). Muitos atrás do fenómeno Thalita Rebouças. Depois da pandemia, o desconfinamento eufórico. Editores, autores, leitores, todos os agentes do sector. O slogan da Bienal: todo o mundo sai melhor do que entrou.
Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.