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Anabela Mota Ribeiro

Bienal do Livro de São Paulo - 3

04.07.22

1.

Adriana Calcanhotto leu Alberto Pimenta, Ana Hatherly, Gastão Cruz, Fiama Hasse Paes Brandão, abriu com Cesariny, confessou amar o poema das rosas como bolores da Adília Lopes.

Maravilhosa leitura. Voz colocada no tom certo, voz que compreende o poema, e por vezes o sente, voz bela.

Isto foi quase o fim de festa no domingo, segundo dia da Bienal do Livro de São Paulo.  

2.

Adriana Lisboa e José Luís Peixoto, ambos Prémio José Saramago, refazem os passos do Nobel Português. O projecto Viagem a Portugal Revisited é feito pela Fundação Saramago em parceria com o Turismo de Portugal e reconstrói os roteiros percorridos pelo escritor, em 1979 e 1980. Adriana ousou visitar a Biblioteca Joanina em Coimbra. Uma subversão que Saramago, que não foi à joia da Universidade e uma das mais belas e famosas do mundo, apreciaria.

- Para quem não sabe, há uma colónia de morcegos que mora na biblioteca e cuida dos livros comendo as traças. É uma simbiose muito interessante. De noite eles saem e ganham o espaço. Gosto muito de pensar a biblioteca fechada à noite e os morcegos devorando as traças.

3.

Imaginicídio. A palavra vai sendo construída no momento em que é dita por Noemi Jaffe. O neologismo serve para dizer: “o que esse Governo está tentando fazer com a cultura”.

Esse Governo: Bolsonaro.

Noemi, escritora brasileira, doutora em literatura, dialoga com Dulce Maria Cardoso, escritora portuguesa, licenciada em Direito. A formação importa um pouco, já se vê como. A mediação é do jornalista da Folha de São Paulo Maurício Meirelles, que saiu da Cultura para a Política porque queria ler apenas pelo prazer de ler, sem ter de trabalhar sobre os livros.  

Depois do furação Marcelo que varreu a manhã e começo da tarde, as conversas voltam a operar um pequeno milagre: circunscrever um espaço, separado do real ruidoso que ecoa nas paredes do pavilhão, onde se responde à pergunta:

- Como se escapa da armadilha do real?

Este real pandémico, de guerra, fascizante, distópico, desigual, o real de um presidente negacionista que simula empunhar uma arma quando posa para as fotografias.

- Pela imaginação.

Dizem as duas. A faculdade da imaginação foi a célula a partir da qual se desenvolveu o diálogo.

No começo, Noemi disse:

- Tenho paixão pelas coisas pequenas. Até coceira no pé. Os escritores sabem que uma dor de cotovelo é real, que um elefante voando é real, e que a vida de cada pessoa é tão real quanto o que se lê nos jornais. É a isto que se dedicam os escritores.

Dulce disse:

- A ficção está na imaginação, mais do que no conhecimento. A imaginação aponta para o futuro. A realidade é o primado do eu, da verdade, aponta para o passado. Com o objecto livro podem experimentar quase todas as vidas, digo aos jovens nas escolas. O que é ser eu? Eu é ser memória. Quando ela falha, os outros deixam de nos reconhecer como aquele que somos. Identidade e Memória vêm juntos.

Conheci Noemi Jaffe na FLIP de 2017, quando li o maravilhoso livro O que os cegos estão sonhando, a partir do diário escrito pela sua mãe, sobrevivente de Auschwitz. Agora a mãe morreu, e a experiência da perda está no seu livro mais recente, Lili – Novela de um luto.

Dulce está a lançar Eliete no Brasil.

Sintonia entre as duas escritoras. No centro d’ O Retorno está a sensação de não pertencer, ser desterrada. No centro da prosa de Noemi, está o exílio; por ser filha de refugiados e sobreviventes dos campos, mulher, judia, escritora.

Muito público a assistir.

Dulce:

- Nada me disse tanto sobre memória como a Recherche de Proust. Nada me disse tanto sobre culpa como Crime e Castigo (e eu estudei Direito Penal). Nada me disse tanto sobre adultério como a Bovary de Flaubert.

Vivemos tempos de indignação e a política esteve sempre a pairar.

Noemi:

- A literatura não serve para nada e não serve a nada. Como disse a Dulce, ninguém morre por não ler um livro. Porém, ser um fim em si mesma é uma liberdade e é a sua riqueza. Errando, permitindo o acaso, as inconclusões, ela é mais livre do que outras linguagens artísticas. Se o autor não fala de política, nestes dias, isso está errado, ele está em dívida para com a sociedade. Mas a sua escrita não tem de dizer.

4.

António Prata gracejou dizendo que era e queria ser Ricardo Araújo Pereira.

António Prata citou Paulo Leminski que diz que o poema é inutensílio. Um inutensílio indispensável.

António Prata disse que o humor é o melhor lubrificante da nossa relação com a morte.

Ricardo Araújo Pereira citou a Lisístrata de Aristófanes. Também Sófocles.

Ricardo Araújo Pereira começou a sua relação com o humor quando percebeu (cedo) que não era o filho preferido dos seus pais. Pausa. E é filho único.

5.

Adriana Calcanhotto e Pedro Eiras. O professor de literatura da Universidade do Porto e poeta (a lançar o seu livro no Brasil). A embaixadora da Universidade de Coimbra e cantora e compositora. A poesia e a música, o espaço de aprendizagem e partilha na sala de aula. E a política, sempre.

Pedro Eiras:

- A aula é alguém descobrir pontos de fuga. É duvidar, é alquimia, é escrever em voz alta, é entrar como quem entra num território misterioso. Qualquer aula minha seria proibida sob o fascismo. Sou baby boomer, nasci em 1975. Mas a democracia é frágil. A extrema direita cresce. Vou continuar a dar o meu melhor e a ter alguma esperança.

Adriana Calcanhotto:

- Cecília Meireles eu ouvi no fado e, na adolescência, no Fagner. Temos encontros da alta poesia com a música popular em vários autores. Vinicius de Moraes. Gilberto Gil entrou para a Academia Brasileira de Letras. Eu revejo-me no recorte da academia de notáveis defendida por Joaquim Nabuco, mais do que na academia de escritores defendida por Machado de Assis. As melhores coisas não são a maioria das coisas. É uma distinção importante. Temos de ser vigilantes. O mais triste é que as coisas são comunicadas. O processo de deseducação foi anunciado. Vamos responder! Ou a gente deixa ou a gente reage.

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.