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Anabela Mota Ribeiro

Cancro da Mama - testemunhos

30.10.23

São mulheres como outras quaisquer. Mulheres como nós. A quem “aquilo” aconteceu. Porquê a elas? Porquê a mim? – perguntam-se, sem excepção. Aquilo: cancro da mama.

Falam de um mundo que desaba e de uma força estranha que as impele a continuar. Falam do cabelo que cai, do peito que é tirado, do mal que é extirpado. Falam de momentos em que quiseram atirar-se à linha do comboio. E de momentos em que tudo o que quiseram foi viver.

 

Maria Fernanda, 46 anos, operadora de sistemas informáticos

Meteu-se-lhe na cabeça que ia ter um cancro da mama. Uma frase de arrepiar. “Em 1996 tive uma depressão muito grande, porque perdi a minha mãe. Já tinha perdido dois filhos e, nessa altura, fiz novamente esse luto”.

Seria uma culpa inconsciente? “Provavelmente”. Por ter sobrevivido à morte daqueles que mais amava. “Tenho a impressão de que andei 20 anos a fazer o luto pelos meus filhos, que nunca acabei. Eles nasceram com uma doença genética, e foi assim. Os médicos aconselharam-me a não ter mais. Por qualquer desgosto, sofria retroactivamente”.

Com a perda da mãe, o mundo afundou-se. Para mais, havia um gangliozinho que na altura da ovulação enchia e ficava dorido. “Falei à minha ginecologista, particular, que disse que eram glânglios mamários. Pedi para fazer uma mamografia”. Foi dissuadida. Que era muito nova, que não tinha antecedentes familiares. “Achou que eu não estava bem da cabeça e mandou-me para um psiquiatra”. Foi.

Prescreveram a Maria Fernanda anti-depressivos, mas nunca lhe prescreveram uma mamografia. Até 2003. Nova consulta, a mesma ginecologista, outra reacção. “Ela teve na hora a percepção de que algo não estava bem. Fiz todos os exames e conclui-se que tinha um tumor maligno”.

Foi um instante terrível, que confirmou um pressentimento de anos. “Senti uma revolta muito grande”. Pausa. Repete. Desta vez com fúria. “Uma revolta muito grande”. Depois sucumbe à comoção e às lágrimas. “Custou-me a aceitar que uma profissional que me seguia há 13 anos não me tivesse ouvido, não me tivesse mandado fazer o exame que eu queria fazer”.

Depois foi à luta. Fez quimioterapia, a cirurgia, percorreu o calvário. “Partilhei imediatamente com o meu marido, o meu companheiro de há 25 anos. Já tínhamos passado por tanta coisa juntos… Depois, os amigos. A família foi a última a saber. Não quis que sofressem.”

Achou que aquilo a ia matar. “Andei ali uns meses a pensar: quanto tempo é que vou estar cá? Será que vale a pena? Quando a pessoa está naquela fase só ouve a parte pior. Foi uma fase de pensar meter-me na linha do comboio. Mas entretanto dei a volta, graças a Deus”

O momento terrível, dolorosíssimo, de se ver sem o peito: “Fui para a cirurgia convencida de que ia ficar com ele – afinal, tinha feito cinco sessões de quimioterapia. Quando me vi sem a minha mama, aí é que foi o desmoronar. Mas a vida é muito mais importante do que tudo. É esse testemunho que passo. Para dar a volta, é muito importante querermos. Mas é com o coração. É acreditarmos. Se o cancro voltar, é outro que vem. Aquele, está morto”.

 

Sandra, 29 anos, assistente-administrativa do Hospital de Santa Maria

A doença foi-lhe diagnosticada em Agosto de 2006. Tinha feito 25 anos. “Adormeci bem um domingo e acordei mal uma segunda – como costumo dizer. Com um grande ovo no lado direito do peito”. Ia a caminho do trabalho, a guiar. Sentiu dores, palpou, identificou com clareza um nódulo. “Entrei em pânico. Cheguei ao hospital e pedi para me verem. Puseram a hipótese de ser da menstruação. Mas nessa tarde, no banho, descobri uma espécie de cordão que me atravessava a mama – uma tromboflabite”. Não esperou até ao dia seguinte, voltou ao hospital.

Ela sabia que “aquilo”, a que mais tarde chamaria “a doença”, era um cancro. Um cancro na mama – contrariando as previsões de todos os que a viram no hospital. Apesar de ser tão nova, apesar de não ter historial de família. Sabia.

Sandra podia parecer uma miúda assustada. Uma da casa que se deixa impressionar pelas histórias daqueles corredores. Foi preciso avançarem para a citologia para que o espanto, o horror assomasse aos olhos, às bocas, às pregas da testa. E ela, habituada a ver isso, no hospital, a propósito de outros, viu logo que aquelas caras, as suas expressões, não podiam querer dizer coisa boa.

“A doutora disse-me: “Tens um carcinoma na mama”. Assim, sem mais nem menos. Caiu-me tudo ao chão. Estava a comprar casa, estava a pensar engravidar. E agora? Eu estava a começar a construir uma vida”.

Teve a sensação de que lhe roubavam a vida. A revolta não cabia nela. Diz “revolta” como quem pega fogo. “Porquê eu? Ninguém merece, mas aos 25 anos ninguém merece mesmo. O que me custou mais não foi ter perdido o cabelo, nem ter ficado sem o peito, nem ter engordado 20 kg. O que me custou mais foi sentir-me diferente de todas as raparigas de 25 anos”.

Mas depois, fez-se estóica. Lutou. Quis vencer a doença. “Eu só deixei de trabalhar um mês, quando fiz mastectomia e quando fiz a reconstrução. Precisava de fazer a vida normal. Vim às consultas sempre sozinha, excepto às duas primeiras.”

Sandra, a Guerreira, exige de si uma força hercúlea. “Mas eu sou forte”, responde ela com uma gargalhada. “Houve momentos em que me fui em baixo, claro. Em casa, no meu cantinho”.

Há na voz um fio de aço. “Fiquei mais pacificada. Parece um cliché, mas é verdade. Há coisas muito pequenas a que só damos valor depois de passar por coisas destas. Os meus pais, o meu irmão, a gente acaba, no dia a dia, por não lhes dar a devida atenção… Não pode ser”.

 

Maria do Céu, 60 anos, cabeleireira

Maria do Céu tem um cabelo armado, irrepreensivelmente penteado.

“Tinha 49 anos. Deitei-me, a doutora fez-me apalpação e aconselhou-me a fazer exames. Sem alarido, por prevenção. Mas quando começo a ver no ecrã uma mancha preta, disse: vou durar três meses”.

Em meia dúzia de horas, a vida de Maria do Céu dava uma volta.

“Cheguei cá fora, sentei-me no muro, permaneci ali até às dez da noite. Não conseguia andar, não conseguia ver. Os meus filhos muito preocupados, que eu não aparecia”.

Mas não contou nada. “Isolei-me. So-zi-nha. A sério. Disse ao meu filho: a mãe vai tirar um carocinho da mama, mas isto não é nada. Fui operada. Não queria que ninguém soubesse. Fiquei deprimida, fiquei esquisita. Dizia a mim mesma: isto passa, isto não é nada. Pintei-me, arranjei-me. Não, eu não estava doente…”.

Uma denegação da doença. Um salto no abismo, com a ajuda da maquilhagem. Aparentemente, estava tudo bem. Mas quando começou a radioterapia, os subterfúgios ruíram, as máscaras caíram. “Fui-me abaixo. A pele toda, toda queimada”. Fala das queimaduras muito baixo, como se contasse um segredo, como se revelasse uma parte impudica. “Sabe o que é a pele de um courato na brasa, as bolhinhas que faz? Isto era tudo bolhinhas. Despedi-me de toda a gente, quando vi isto em ferida.”

O cabelo. “Tinha montes de cabeleiras. O dia em que não me arranjar, vou morrer. Então os cabelos… Assim ninguém vê que estou doente, ou triste. Pois. As pessoas sabem que tive este problema, na minha rua já me viram a andar agarrada às paredes, mas pensa que alguém me vê com a lágrima no olho? Não choro, não. Fico triste, mas não choro. Não devo ter lágrimas. Mesmo quando o meu marido e o meu filho faleceram, não tive lágrimas. Fico muito agitada”. Cada um reage como sabe, de acordo com a sua natureza.

Ao fim de cinco anos apareceu outro “bicharoco” no outro peito. “Outro azar. Este segundo já não me preocupou muito. De um mês para o outro, apareceram sete caroços. Tirámos muito rápido. Já está.”

 

Elsa, 48 anos, empresária

“Fui apanhada já muito à frente… Que eu fui descuidada. Tinha uns quistos e não liguei. O meu marido é que me disse: tens de ir ver.”

Elsa é uma senhora jovem, tem olhos de azul céu. Da sua vida, fez sempre parte este fantasma. “A minha avó materna teve cancro da mama. E toda a vida me lembro de ouvir a minha mãe dizer que tinha medo de ter cancro da mama. Mas como ela nunca teve, eu achei que…”. Achou que saía incólume.

O momento. “Quando fiz a mamografia, a médica ficou logo de pé atrás”. Riso nervoso. “Estava a falar comigo normalmente e de repente calou-se. Disseram-me que não podia perder tempo. Tinha dois nódulos grandes”.

Não menciona as horas que chorou, as dúvidas que a assaltaram, a desesperança que por vezes a consumiu. Diz antes assim: “Sou um bocado bruta. Não sou muito de pensar ou chorar sobre as coisas. Encarei isto como mais uma etapa da minha vida”.

A partir desse momento, tratava-se de um combate. Ela de um lado, a doença do outro. “Não me fui abaixo. Não tive medo de morrer. Os meus filhos já eram crescidinhos – fui mãe com 20 anos. Tinha medo de morrer quando eles eram pequeninos”.

Era uma mulher de 40 anos, a quem tinham tirado o peito, a quem tinha caído o cabelo. “O que mais me custou foi ver-me sem cabelo. Sabe porquê? Eu nunca me tinha visto sem cabelo. Mesmo nas fotografias de bebé, sempre tive cabelo. Quando fiz quimio andava ou de peruca ou de lenço. Mesmo no hospital. Só estive mesmo sem nada ao deitar-me. Era como estar nua. Afectou-me mais do que ficar sem mama. A minha mama também não é muito grande, por isso…”

Mesmo assim, confessa que se sentiu outra depois de fazer a reconstrução. “É das coisas mais importantes. Para me ver a mim por inteiro.” E acrescenta com uma ponta de orgulho: “Agora não tenho prótese, é tudo meu. Falta só pôr um bocadinho mais de gordura e tatuar a auréola. Mas já está óptimo! Fiquei com uma mama espectacular. Quer ver?”

 

Alexandrina, 79 anos, babá

Aquilo foi de repente. “Apareceu-me um alto no peito”. O médico desvalorizou. Que era uma mastite, que tomasse anti-inflamatório. “Mas eu sempre gostei de saber o que tinha. Decidi fazer uma mamografia e uma ecografia. Depois uma biopsia. Três meses antes, tinha feito uma mamografia e estava tudo bem. Porque é que me aconteceu a mim, que estou sempre a ser vigiada?”.

É uma senhora que fala com desenvoltura daquilo por que passou. Chama-lhe “o mal”.

“Isto” foi numa quarta-feira, e no domingo entrou no hospital. “Já estava na mesa de operações quando a doutora me disse: “Vamos ter que tirar o peito todo”. Pronto. Paciência. Estava deitada e vi uma junta médica a olhar para os exames. Encarei a coisa de frente”.

Fez radioterapia. Não fez quimioterapia. “Era a coisa que mais me custava: ter de ficar sem cabelo. Tenho a cabeça pequena, e careca devia parecer nem sei o quê. Fui sempre muito vaidosa….”.

Alexandrina está arranjada, o colar no sítio certo, o cabelo preso, o saia-casaco assenta-lhe bem. Como é que tudo aconteceu? “Eu estava a lavar na banheira uma colcha que não cabia na máquina. E pesava muito. Um sábado ou um domingo. “Aquilo” devia estar escondido. Sei que no dia seguinte, ao tomar banho, senti uma espécie de nervo, uma coisa rija no peito. Dá a impressão que foi com a força que eu fiz que “aquilo” saltou”.

A dada altura, quis refazer o peito. “Mas para que é que ia submeter-me a duas ou três operações? Com esta idade. Continuo com a minha prótese, ninguém diz que não tenho peito. Não gosto quando vão para a televisão dizer, coitadinhas, que sofreram isto e aquilo. Eu sofri as mesmas coisas, só que não liguei importância”.

Mas ela sabe, e vê. “Eu era muito bem feitinha, tinha tudo no sítio, e de repente… Sabe, mesmo estando sozinha, ponho sempre um soutien com esponja, para olhar para o espelho com a camisa de noite e não notar aquela falta. Mesmo que não esteja ninguém em casa, não gosto. Gosto sempre de apresentar-me bem. O que menos gosto na vida é de ouvir “coitadinha”. Lastimo. Ao princípio era pior. Já lá vão 13 anos”.

 

Maria de Lurdes, preparadora técnica de laboratório, 59 anos

“Estava deitada e toquei o peito. Senti um grande alto. Por acaso o meu filho estava em casa, mostrei-lhe. Toca aqui. Deixei passar o fim de semana, fui ao hospital na segunda, na quarta mandaram-me fazer uma biopsia, oito dias depois tinha os resultados”.

No espaço de uma semana, invadiu-a o temor. A impotência e o sentimento de injustiça a instalarem-se devagar, no prenúncio do pior. “O meu filho antecipou-se e foi ao hospital saber dos resultados. Era um cancro maligno. Pouco depois fui operada, fiz seis sessões de quimioterapia e 40 de rádio”. Uma contabilidade medonha: seis disto, quarenta daquilo, uma operação em que fica sem o peito. Uma semana em que tudo mudou de lugar.

“Uma ansiedade. Mas nunca pensei que tivesse um cancro, porque não tenho família com incidência cancerígena. Bom ou mau, era para tirar, disse a doutora. A gente anda naquela expectativa, pensando que talvez não seja mau… Mas aconteceu. Graças a Deus superei. No dia 13 de Maio fui a Fátima. Tinha prometido um peitinho de cera, e fui lá pôr. Convidámos umas pessoas amigas, levámos farnelzinho, assistimos à procissão de adeus à Virgem. Pus um peitinho de cera ao pé das velinhas e agradeci a Nossa Senhora o apoio que ela me deu. A fé é que nos salva, não é?”

Virou-se para Deus e para a família. “O meu filho, onde quer que eu vá, ele vai comigo. Também tive muito apoio do meu marido. Ele pescava e vinha trazer-me o almoço ao hospital”.

Uns dias para cima, outros dias para baixo. Uns dias a dizer: “Se Deus me levar…” Outros dias determinada a não se entregar à doença: “Se calhar, não leva...”

Chorava. Sozinha em casa. Chorava para desabafar. “A mente tem muito que ver com o corpo, tem. Temos que ter uma grande força psicológica para aguentar. Sinto que vale a pena lutarmos pela vida”.

Felizmente foi a tempo, viu a tempo e as coisas recompuseram-se. Na operação não foi preciso tirar o peito. “O que custa muito é meter o pente à cabeça e o cabelo vir todo atrás. Tanto que dei uma carecada. Preferi. O médico disse-me logo que me ia fazer uma maldade… e que me ia cortar o cabelo. Cortei logo para não o ver a cair. Faz impressão”.

O pior já passou. Fez comprimidos a vida toda. E agora, a química salvou também a sua vida. A química ao serviço de todos os médicos que a acompanharam e a fizeram crer que ia superar esta “trapaça do destino”.

 

Maria Antónia, 37 anos, costureira

“Estava a dar de mamar ao meu filho e ele começou a rejeitar o peito esquerdo. Esteve dois ou três dias em que não mamou desse peito. Comecei a notar um carocinho e fui ao hospital fazer uma mamografia”.

Maria Antónia dirigiu-se ao hospital para sossegar a consciência. Seria leite encaroçado? Que outra hipótese pode pôr uma mulher jovem que tem um bebé nos braços e um filho a entrar na adolescência?

Mas não. “Não imaginei que fosse o que era”. Diz assim, numa forma eufemística. Para não dizer “cancro”. Ou “tumor maligno”.

“Foi tudo muito rápido. Mamografia, biopsia, cancro. Fiz quimioterapia, fui operada, fiz novamente quimioterapia”.

É uma mulher de olhar doce, boca carnuda, pele fresca. Uma mulher que tem leite suficiente para dar de mamar um ano depois do nascimento da criança. Imagem odiosa: uma criança que rejeita um peito, uma vida que ali pulsa, e que está envenenada. Esta mulher não teve tempo para se preparar.

“Olhe, não há palavras para a sensação que nos invade. O que é que nos disseram? A gente nem quer acreditar naquilo que ouviu. É uma coisa que não tem explicação. Porquê eu?”.

A pergunta que todas fazem: porquê eu?

“Porquê a mim?, que nunca tive problemas com ninguém, que nunca fiz mal a ninguém”. Suprema injustiça: “Ainda por cima com um bebé pequenino”. O bebé que lhe revelou que alguma coisa não estava bem no seu peito. “O meu filho mais velho precisa de mim, mas o mais novo ainda precisa mais”.

Achou que ia morrer. O marido, o filho mais velho, foram os primeiros a ser inteirados dos factos. “Quando o pai falou com o Sérgio, ele não estava a ver bem o significado dessa palavra... É uma criança de 14 anos”. Depois interrompe-se, a cara fica solar e diz com uma voz brilhante: “É uma criança de 14 anos que me deu muita força. “Ó mãezinha, tu vais ficar bem, já aguentaste até agora… O mais novo, cada palavra que ele diz, dá-me forças para continuar. Agarro-me às coisas por que mais quero viver”.

O discurso de Maria Antónia é fluído. Não chora nunca. “Não era capaz de me ver ao espelho. O que eu sentia era por mim própria. O meu marido dizia-me assim: “Teres o peito ou não teres o peito, o que sinto por ti, é igual”.

Quando começou a quimioterapia, tinha consciência de que a partir da segunda sessão já começava a cair o cabelo. “Chorei, chorei, chorei. Fui à cabeleireira por três vezes. Na última é que rapei, que aquilo já era cabelo por todo o lado. A gente não pode mexer – conforme a gente mexe, vem o cabelo agarrado”. Antes de tudo começar, o cabelo pousava-lhe na cintura.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2010