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Anabela Mota Ribeiro

Carlos Moreno

18.03.15

Nasceu em 1941. Formou-se entre jesuítas. É o juiz jubilado do Tribunal de Contas que “analisa duas décadas de despesismo público” no livro Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro.

Um sucesso. Numa altura em que falar mal dos políticos parece ser o desporto preferido dos homens (e das mulheres), o livro está nos lugares cimeiros dos tops e já vendeu cerca de 25 mil exemplares.

De que é que se fala no livro, o que é se preconiza? Aquilo que, na entrevista, Carlos Moreno sintetiza deste modo: “Não pode continuar a culpa a morrer solteira sempre que há desperdício de dinheiro público, mesmo que não haja nenhuma ilegalidade”.

Reformou-se. “Nos meus últimos 15 anos, como juiz do Tribunal de Contas português, fiz sempre auditoria de boa gestão em áreas que tinham a ver com o executivo”. Começou em 1965, na Inspecção de Crédito e Seguros, onde passou dez anos. Pelo meio, esteve no Luxemburgo, onde foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu.

A entrevista tem dois momentos, um mesmo tom. Aquele em que se fala do livro e do tópico preferido dos portugueses (apesar da impotência e inactividade), e aquele em que ficamos a saber quem é este homem que aparece na televisão a dizer as coisas que, quem o encontra na rua, lhe diz que passa a compreender. Ele diz que é porque as diz de modo simples, sem floreados políticos.

Porquê um mesmo tom? Porque Carlos Moreno é o mesmo quando fala de si próprio ou das parcerias público-privadas. Um tom composto, redondo, de quem formula frases longas e diz coisas como “as mais frequentes relações”.

Encontrámo-nos num hotel de Lisboa e nas mesas do pequeno-almoço talvez estivessem homens de negócios. Quantos deles gastariam mal os dinheiros públicos?

  

Foi o primeiro juiz português do Tribunal de Contas das Comunidades. Quem é que o nomeou? Em 86 já estamos em período cavaquista.

Os governos nacionais faziam uma indigitação, depois o Parlamento Europeu fazia uma audição através da comissão de controlo orçamental, depois o conselho de ministros das comunidades nomeava. É evidente que a indigitação dos estados membros era fundamental. Quem me indigitou foi o Prof. Cavaco Silva, que era primeiro-ministro na altura.

 

Que relações tinha com alguns destes agentes políticos? Foi o primeiro nomeado, podia ser qualquer outro. É preciso perceber qual é o quadro de relações e de confiança.

O quadro é muito simples. Era desde 1980 director-geral do Tribunal de Contas, numa altura em que o Tribunal de Contas era um organismo quase marginalizado. Tirando os juízes e o director-geral não havia um único licenciado. Era um organismo burocrático, fazia o visto prévio, mais nada. Fui nomeado director-geral pelo então primeiro-ministro, Dr. Sá Carneiro, que não conhecia, e pelo ministro das Finanças, Prof. Cavaco Silva, que conhecia apenas do Ministério das Finanças. As autoridades comunitárias visitaram Portugal nas vésperas da adesão. Contactei com eles, conversámos muito sobre a realidade portuguesa. Não há aqui uma escolha pessoal, muito menos política. Eu era um tecnocrata que tinha recebido aquela incumbência. Há todo um trabalho de sapa que é feito, progressista. Já se defendia em 1983 que o sector empresarial do Estado devia ser controlado pelo Tribunal de Contas, e não apenas a estrita legalidade.

 

Teve muito poder nessa altura? Gostava de perceber a sua atracção pelo poder, porque não é por acaso que ocupa sempre cargos de poder.

A palavra poder pode ter um sentido perverso. Pode significar, ou ser entendido como arbítrio, como exercício autocrático. Tenho lugares de poder no sentido em que tenho poder de decisão. O poder de decisão que fui tendo, tirando os anos em que fui director-geral do Tribunal de Contas português (onde tinha o poder de gerir 300 e tal funcionários e uma direcção-geral importante) é poder técnico. Quando se controla tecnicamente, e se controla o poder político, é muito difícil que o poder político reaja tecnicamente ao controlo técnico. O poder político reage sempre politicamente ao controlo de natureza técnica. A minha área de controlo é o sector público empresarial do Estado.

 

As famosas (alude a elas constantemente no seu livro) PPP, parcerias público-privadas.

Fundamentalmente os meus controlados são os detentores do poder político, os executivos, os governos. A auditoria da boa gestão financeira é uma auditoria eminentemente técnica, que vai averiguar se o dinheiro é bem ou mal gasto, e porquê.

 

Quando lemos o seu livro ficamos com a impressão de que, desde que há dinheiro da Europa, desde 1985/86, isto foi um regabofe. O dinheiro público foi mal usado, ou usado de maneira pouco escrupulosa, e não foram responsabilizados os que fizeram essa gestão danosa dos dinheiros públicos. Entrando no livro, gostava que me dissesse se esta expressão que usei – regabofe – lhe parece excessiva.

Regabofe, do ponto de vista técnico, não é adequado. Nas áreas importantes que estiveram sob meu controlo, há um mau uso, um desperdício que me perturba. Sempre tive a noção clara de que havia na sociedade portuguesa um problema de educação. Enquanto a sociedade no seu todo se desligava da gestão dos dinheiros públicos, considerando que eram do Estado, eu não partilhava dessa visão. Fui professor universitário durante 25 anos; (não recebi um tostão por isso nos últimos 15 anos, dei aulas de borla de Finanças Públicas). A primeira preocupação com os alunos do 1º ano era cativá-los para estarem em sintonia comigo nesta visão das coisas. O dinheiro dos contribuintes, o dinheiro do Estado era deles, era das pessoas, e os contribuintes deviam ser exigentes para com aqueles que administravam o respectivo dinheiro. Se não houvesse pressão da sociedade sobre os detentores do poder para que o dinheiro fosse bem gerido, o desleixo, a incompetência, a má gestão, o desperdício seriam uma constante.

 

Sempre teve essa noção? Sempre pugnou por isso?

Sofro uma influência muito grande dos países da Europa do centro e do norte, onde vivi durante nove anos e onde contactei de perto com uma visão muito diferente da visão latina. Isso buliu sempre comigo. A nossa obrigação, porque temos meios escassos e temos que tirar deles o maior proveito, é controlar a floresta e não o arbusto. Deixar os pequenos actos de gestão, que não envolvem grandes montantes, e ir sobretudo para aqueles que envolvem milhões, que são os grandes negócios de Estado, os grandes eventos. O Euro 2004, a Expo 98, os grandes grupos económicos do Estado. Foi essa a opção de controlo que propus e que vingou ao longo destes 15 anos. Não sob o aspecto de legalidade, mas da boa gestão financeira, porque é a única forma que temos de encontrar os desperdícios, os desleixos e as incompetências.

 

É por isso que diz que a gestão que é feita desses fundos deve ser alvo de uma responsabilização?

Exactamente. No estádio actual da nossa legislação financeira, o Tribunal de Contas tem poderes para aplicar sanções pecuniárias, sejam multas, seja a integração nos cofres do Estado de dinheiros públicos, aos responsáveis – pelo cometimento de ilegalidades, de violação da lei. Em matéria de desperdícios, de má gestão, desde que a lei seja cumprida, a lei não prevê sancionamento. Por isso defendo duas coisas: que se torne obrigatório a quem gasta dinheiro dos contribuintes justificar [a razão de ser dos gastos], não apenas com base nos critérios de respeito pela lei, mas de respeito pelos princípios da economia, da eficiência. Ou seja, atingindo resultados sem derrapagens e ao menor custo para o contribuinte. E que quando isto não se verifique, seja criada a possibilidade de sancionar quem não cumpriu estes critérios.

 

Isso seria uma maneira de responder àquilo a que no seu livro chama “as portas abertas” que são deixadas pela própria legislação e que permite fugir por aqui e por acolá?

Formalidades legais, ou cumprir leis, não é algo de extremamente difícil em duas circunstâncias: quando o poder pode modificar as leis, e quando, sobretudo em países de tradição latina e napoleónica, “como é que posso furar a lei sem ser apanhado nas suas malhas” é um desafio que toda a gente gosta de correr. Deixe-me contar-lhe uma pequena história elucidativa a este respeito.

 

Conte.

Estava eu integrado numa equipa de investigação conjunta com a Polícia Judiciária quando esta detém um indivíduo no aeroporto da Portela para interrogatório, em 1966. Perguntado ao sujeito qual era a sua profissão, responde: “Ensinar os homens de negócios, os homens importantes, a fugir à lei sem a transgredir”. Aprendi isso como uma lição que vi desfilar diante dos meus olhos durante toda a vida.

 

Ou seja, safam-se sempre aqueles que têm dinheiro para contratar bons advogados que os ensinam a não ser apanhados nas malhas da lei.

Na vida comum do dia-a-dia isso é assim. Os processos dos homens com poder, nomeadamente económico, arrastam-se por muito mais anos nos tribunais do que os processos das pessoas que não têm poder. O formalismo, o processo, o recurso de tribunal em tribunal, é uma coisa que tem muita importância nos países de tradição latina ou de raiz napoleónica.

 

Confia na nossa justiça?

Confio. Fiz parte da justiça, se não confiasse nela… É evidente que confio. Embora admita e esteja consciente de que a justiça é extremamente lenta a resolver o que é importante e que isso é decisivo para a competitividade internacional do nosso país e para que o capital estrangeiro possa deslocar-se para Portugal. É uma das grandes áreas que precisa ser reformada para que nos tornemos um país verdadeiramente moderno no quadro mundial e europeu.

 

Há uma ineficiência que resulta dessa lentidão.

Há. A justiça aqui tem que ser entendida em termos muito amplos, que vão desde os actores sociais aos próprios agentes da justiça, e ao próprio sistema jurídico. Tudo isto precisa de reforma. Os que talvez tenham menos culpa são os juízes, que trabalham muito com poucos resultados.

 

O cidadão assiste impotente a uma sucessão de situações que atravessam vários governos, não são exclusivas de uma administração PS ou PSD. Assiste ao descalabro, às situações que resvalam para o desperdício. Por isso insisto e pergunto se confia.

Estou numa área restrita, da gestão dos dinheiros públicos. Quando me perguntam: “O cidadão pode confiar na justiça?”, diria de outra maneira: “O cidadão tem de ter um comportamento que incite a justiça, a acção do Tribunal de Contas, a ser mais eficaz, dura, a aplicar sanções no domínio do desperdício dos dinheiros públicos”. Não pode continuar a culpa a morrer solteira sempre que há desperdício de dinheiro público, desleixo, incompetência, prejuízo para o erário público, mesmo que não haja nenhuma ilegalidade. Se houver um ilícito criminal sai fora do Tribunal de Contas e, com todas as dificuldades que são conhecidas, o Ministério Público, a Polícia Judiciárias e os tribunais investigam os crimes.

 

O que é que pode objectivamente o cidadão fazer?

Pode ter um comportamento de exigência em relação ao Estado, aos detentores do poder político, fazer pressão no sentido de que as coisas se alterem. O contribuinte não tem alternativa, quando lhe cobram impostos é obrigado a pagá-los. Este dinheiro não pode deixar de estar sob a sua vigilância intelectual, sob a sua exigência de ser bem gasto. É um bem escasso, foi-lhe retirado para a realização do bem comum. O cidadão tem uma obrigação social de se interessar por saber como é que o seu dinheiro foi gerido. Se houver pressão social nesse sentido, como há nas sociedades nórdicas e da Europa do centro…

 

Intervenção cívica.

Se houver intervenção cívica, é evidente que o poder é mais escrupuloso, tem melhores leis e atribui poderes às entidades competentes para o efeito para sancionar os desvios. Só em 1996 é que o Tribunal de Contas foi dotado de competências para controlar o sector público empresarial, que gere milhões de euros, para controlar a boa gestão financeira, o desperdício, o bom uso dos dinheiros públicos. Mas não foi dotado até hoje de poderes para sancionar o mau uso dos dinheiros públicos. Estas coisas levam muito tempo a ser concretizadas. Quanto maior for a pressão social, no sentido de as coisas se modificarem, mais rápidas elas andam.

 

Gostava de lhe perguntar se o Dr. Pedro Passos Coelho o contactou recentemente. Isto que defende no seu livro, não sendo o mesmo, não é muito diferente daquilo que o líder do PSD defendeu quando veio a público dizer que aqueles que fazem mau uso dos dinheiros públicos devem ser responsabilizadas por isso.

Não o conheço, a não ser da televisão. Nunca com ele me cruzei, nem na vida profissional nem na vida pessoal. Julgo que há uma pequena diferença, pelo que ouvi, naquilo que proponho e naquilo que o Dr. Pedro Passos Coelho propõe: a criminalização.

 

No seu caso defende essa criminalização apenas quando há crime.

Quando há crime não há muito coisa a modificar, a gestão danosa já é considerada crime. O que poderá aí ter de se fazer é tornar muito mais célere a investigação e a conclusão dos processos. Agora, há um terreno, que não é o terreno criminal, que é o terreno da análise técnica da administração dos dinheiros públicos, no qual, quando o Tribunal de Contas chegar à conclusão de que há mau uso de dinheiros públicos, embora não ilegal, e sem haver crime, [é possível fazer coisas].

Quem detém, ou pode vir a deter o poder político, não se sentirá muito confortável. Porque lhe podem ir ao bolso quando toma decisões que são consideradas em Portugal inatacáveis. Há esta mentalidade: as decisões políticas, mesmo quando têm uma componente técnica, são decisões políticas, e os políticos só podem ser julgados em eleições.

 

Não deixa de ser curioso que o seu livro já tenha vendido 25 mil exemplares e que faça um grande sucesso junto da opinião pública aquilo que defende. Pelo contrário, quando o Dr. Pedro Passos Coelho interveio recentemente dizendo qualquer coisa que vai também nesse sentido, foi zurzido pela classe política e pelos comentadores de um modo geral.

A conclusão que posso tirar daí é esta: as pessoas que lêem o meu livro são os cidadãos comuns que se sentem preocupados com muita coisa que se passa no nosso país em matéria de desperdício de dinheiros públicos. As pessoas dizem-me na rua: “Porque é que o senhor explica bem as coisas e quando os outros falam não percebemos bem o que é que eles dizem?”. A classe política passou ao lado do que escrevi porque, não tenho poder político, não faço parte da esfera do poder político. Passa ao lado, convencida e consciente de que o que proponho nunca terá forma de lei.

 

Que é uma voz no deserto.

Será uma voz que não conduzirá, pelo menos nos tempos mais próximos, a modificações da legislação em vigor.

 

Porque é que só agora que se reformou é que publicou este livro? Isto é aquilo de que alguns dos seus críticos o acusam: de não se ter ouvido a sua voz enquanto esteve no activo.

Isso não é verdade. Nas minhas lições de finanças públicas, publicadas por uma editora menos visível, da UAL, onde dava aulas, muitas destas matérias estão tratadas, às vezes de uma forma mais dura do que neste livro. Enquanto lições terão sido lidas por uma elite. Este livro está escrito de uma forma mais sólida, mais simplificada, com muitos exemplos, com o objectivo, meu e dos editores, de chegar ao grande público. Não conto aí história nenhuma de derrapagem de obra pública, derrapagem de parceria público-privada, que não tenha na altura oportuna sido denunciada em relatórios do Tribunal de Contas. Mesmo esta proposta de sancionamento, tinha-a feito várias vezes em conferências, publicações. Só que o livro, pela época em que foi escrito, pela maneira como está escrito, teve a capacidade de penetrar na opinião pública. Os meios de comunicação social pediram-me para participar em programas onde defendi as mesmas ideias.

 

É inegável que agora tem mais visibilidade.

Esta minha participação pública é que é nova, porque estou liberto do peso que tinha quando estava integrado numa instituição, na qual não era o juiz-redactor que tinha a visibilidade daquilo que fazia, mas era o órgão e o respectivo presidente.

 

Conheçamos o percurso, para melhor compreender as posições que agora toma. Vamos a um momento importante da sua vida profissional. Em 1976, que pessoa era e que vida era a sua?

Era um quadro técnico do Ministério das Finanças. Estava como auditor jurídico da Inspecção de Crédito e Seguros, o organismo que fazia a supervisão bancária e seguradora. Era aquilo a que hoje se pode chamar um director. Tinha um poder incomensurável. Era o primeiro auditor jurídico que não provinha da magistratura judicial. As minhas competências eram deduzir acusações sobre as transgressões ou as violações das normas reguladoras dos mercados monetário, cambial e financeiro.

 

Estávamos no pós-revolução.

Era uma altura conturbada, sobretudo para quem tinha a supervisão bancária. Uma das grandes questões que se me punham quotidianamente eram os pedidos de várias origens, desde delegados do MFA, até delegados partidários no Banco de Portugal; por telefone, pediam-me para congelar contas bancárias de figuras que estavam na mó de baixo.

 

Em nome dos interesses políticos – era essa a fundamentação dos pedidos?

Quem vinha do antigo regime e tinha contas bancárias: [era preciso] secar-lhes a fonte de rendimento e pôr essas contas ao serviço do “povo”. Um delegado do MFA podia ser um tenente, um capitão, um sargento. Tive sempre esta postura: “No cargo em que estou, sou dependente do ministro das Finanças”. Portanto, perguntava claramente quem é que me dava ordens.

 

Escudava-se na hierarquia?

Não, escudava-me na legitimidade do poder, que é diferente. A hierarquia para mim não tem significado. Não precisava de autorização superior para poder dar uma ordem a um banco, o que precisava era de saber quem é que me podia dar ordens. Quando isso ficou clarificado, passei a ter uma vida muito mais tranquila, na medida em que respondia a toda a gente: “Se entende que deve ser congelado, dirija-se ao Ministro das Finanças”.

 

Que pessoa era para que diferentes facções da sociedade se dirigissem a si? Quem pede acha que pode pedir.

Mas é evidente, e é melhor ir-se ao sítio certo. Dirigiam-se à função e não à pessoa.

 

Quem eram as pessoas com quem se dava em 1976? Que é também uma forma de perguntar que mundo era o seu em 1976. Não a função, mas a pessoa.

Dava-me com amigos dos meus tempos de Coimbra, com amigos que fiz na tropa (Mafra, 1966). Fi-la já com dois anos de licenciatura e casado. Foi um tempo extremamente duro. E também, porque sempre foi uma vertente muito importante, dava-me com amigos do trabalho.

 

Diga-me quem são algumas dessas pessoas. Estamos a falar de um período da vida portuguesa em que tudo era efervescente.

Algumas serão desconhecidas. O António Castelo Branco Silveira, o Abílio Neto. O Basílio Horta, meu colega de serviço, o Artur Santos Silva, que era Secretário de Estado do Tesouro.

 

Do lado do PS, Salgado Zenha, dava-se com ele?

Era um homem de uma geração diferente da minha. Quando aquela equipa governativa foi para o Ministério das Finanças, com quem tinha mais frequentes relações, não só pessoais mas profissionais, era com o Artur Santos Silva, que era do meu tempo de Coimbra, embora ligeiramente mais velho. A Lei das Nacionalizações (das indemnizações que deveriam ser pagas pelas nacionalizações), em 76 ou 77, foi feita no gabinete do Artur Santos Silva. Recordo-me de uma preocupação do então Secretário de Estado do Tesouro: fazer uma lei que passasse no Conselho da Revolução, que era multiforme, e cujo preâmbulo tinha de ser muito bem trabalhado para não suscitar qualquer dificuldade. Uma das coisas que o Artur me pediu foi que fizesse esse preâmbulo; claro que foi revisto ao nível político, mas a base é minha. Passou sem uma beliscadura.

 

Era uma pessoa politizada por esses anos, antes disso?

Em 76, de forma silenciosa ou barulhenta, não houve ninguém, que ficasse indiferente à política e às ideologias políticas. É evidente que também não fiquei indiferente, embora nunca tivesse tido no campo político nenhuma actividade partidária.

 

Porquê?

Opção de vida. Em 1965, comecei por fazer uma opção: ou vir para Lisboa, para um organismo técnico do Ministério das Finanças, ou ficar assistente na Faculdade de Direito de Coimbra. O que me atraiu foi vir para Lisboa. Uma coisa que a vai deixar perplexa: um assistente ganhava cerca de 1600 escudos, e como inspector técnico de segunda classe pagavam-me 4500 escudos por mês. Fui um homem quase rico nessa altura. Tão rico que recusei durante quatro anos, eu e outros, todos os convites para ir para o privado – onde pensávamos que teríamos um patrão, e ali, não. Era um organismo que recrutava os melhores alunos nas faculdades, e que lhes pagava o suficiente para que o Ministério das Finanças tivesse bons quadros.

 

A sua observação e participação no quadro político do Portugal de então era silenciosa.

Tinha opções perfeitamente claras, mas não as manifestava publicamente nem através de qualquer organização partidária.

 

Porque é que acha que não se manifestou?

Não estou a dizer que não me manifestei, manifestei-me. Estive na Alameda, numa manifestação organizada pelo Dr. Mário Soares, o Salgado Zenha, contra a unicidade sindical [Fonte Luminosa, 1975]. Não me manifestei através de organizações partidárias. Se calhar porque não tenho grande vocação para me inserir em organizações hierarquizadas, disciplinadas, onde, com ou sem razão, e a esta distância acho que tinha razão, alguma coisa daquilo que mais prezo, a liberdade, quase o ser libertário, o poder exprimir-me como quero, quando quero, sobre o que quero, pode não ser politicamente correcto.

 

O que é que foi fazer à Alameda?

Aquilo que sentia que era minha obrigação: combater pela democracia. Uma democracia representativa, de tipo ocidental, à qual aderia intelectualmente.

 

Recuemos mais ainda. Porque é que estuda Direito, porque é que é juiz, porque é que se especializa nestas questões? Comecemos pelo princípio: de onde é?

Saí de casa aos nove anos porque os meus pais viviam no Alentejo, e quando acabei a instrução primária, na terra onde vivíamos, não havia sítio para se estudar. O meu pai era notário e de vez em quando ia ao tribunal fazer alguma coisa de advocacia. Embora sendo filho de gente que se pode considerar remediada, classe média, os meus pais fazem um sacrifício tremendo para me mandarem para um colégio interno de jesuítas em Santo Tirso (isto para não mandarem o menino à solta para o liceu de Évora, que ficava a 60 quilómetros, o que naquela altura era uma distância muito grande). Atravesso o país inteiro de comboio e vou para um colégio onde, no primeiro e segundo ano, chorava à noite com saudades de casa.

 

É famoso esse colégio de Santo Tirso. Quanto tempo lá esteve?

Sete anos, até ao 7º ano. Apanhei as duas fases que os jesuítas atravessaram como homens de ensino e educadores de jovens. Uma época mais escolástica e mais severa, e uma época depois do 5º ano, quando vai para reitor o Pe. João Abranches. Eu era considerado um jovem rebelde e recalcitrante que não aceitava determinados métodos. O João Abranches pergunta-me: “O que é que queres para deixar de protestar?”. “Três coisas: que arranje maneira de o meu pai me dar licença para fumar, que nunca mais me ponham de joelhos de castigo e que me deixem sair aos domingos à tarde”. Tenho uma estrutura moral, ética e psicológica, uma solidez que me acompanhou ao longo de toda a vida, [e que deriva do colégio]. A distinção entre o bem e o mal, o correcto e o incorrecto, o amor e o ódio, entre o que deve ser e o que não deve der, ficaram muito claras ao longo dos sete anos em que passei pelos jesuítas.

 

E o cinzento, a zona da dúvida, da hesitação, a zona em que não é tão claro o que é o bem e o que é o mal? Como é que aprendeu a reconhecê-la, a lidar com ela?

Não sou um angustiado. Não me considero nada radical, sou um homem de compromisso. Mas o cinzento nunca foi um problema que se me pusesse.

 

O cinzento por oposição a um certo maniqueísmo em que às vezes podemos cair.

Nunca tive hesitações entre o que devia fazer e aquilo que não devia fazer. Mesmo que soubesse previamente que se fizesse aquilo ia ter aborrecimentos. Como não cedia ao caminho mais fácil, procurava sempre fazer aquilo que entendia, embora isso me pudesse custar dissabores.

 

Fale-me mais do que aprendeu no colégio e que é estruturante na pessoa que é.

Aprendi que a liberdade não está fora de nós, está dentro de nós. A liberdade é a liberdade de espírito, não é a liberdade física. Mesmo fechado dentro de um colégio aprendi que era possível voar, ter o mundo inteiro. Acho que os jesuítas me marcaram com a sua visão alargada sobre o mundo, sobre um mundo que se estendia do ocidente ao oriente.

 

Aprendeu a reconhecer em si um reduto inviolável, que constituía o seu espaço de liberdade. E isso protegia-o da estrutura na qual estava inserido e na qual não tinha a liberdade total.

Sim. Isso acompanhou-me, mesmo nas alturas mais difíceis, em que estava mais azedo, mais contrariado, mais pressionado por responsabilidades.

 

Pensou ser padre?

Como todos os jovens, houve uma altura em que emocionalmente pensei que ser padre podia ser extremamente cativante. Mas racionalmente nunca pensei ser padre.

 

Pensei que fosse ao contrário, que racionalmente pudesse ter pensado que era uma vida cativante, mas que emocionalmente existisse outra vida dentro de si.

Poder dedicar-me a uma vida de meditação, de voar para junto de Deus ou de me dedicar mais ao próximo, atraiu-me muito mais emocionalmente do que racionalmente. Quando via pequenos acontecimentos como uma procissão na minha terra, como uma missa mais faustosa, como eram as dos jesuítas no 8 de Dezembro, emocionalmente sentia-me atraído.

 

Porque é que racionalmente não se sentia atraído? O que é que racionalmente decidiu que a sua vida ia ser?

Sou mais emocional do que racional, mas acabo sempre por sobrepor o racional às emoções. Sempre estabeleci relações emocionalmente profundas com os meus colaboradores. Mas quando era preciso decidir se alguém continuava ou não comigo, nunca a emoção dessas relações se sobrepôs à racionalidade.

 

Com quem é que aprendeu a ser assim? O seu pai e a sua mãe eram assim?

Sou naturalmente assim. O meu pai era mais racional, a minha mãe era uma emocional que tinha também uma costela, que julgo herdei dela, de libertária. Estava fora do tempo dela. Ensinou-nos, numa vila alentejana, a patinar, a jogar ténis. Era uma mulher que, repare o que era isto em 1950 em Vila Viçosa, ia ao café. Nunca lhe chamámos mãe. Chamávamos-lhe Joana, que era o nome dela.

 

Porque é que não lhe chamavam mãe?

Mais do que ser mãe, gostava de ser uma companheira dos filhos, das noras, do genro, dos netos. Ela não pedia, criava as condições para ser tratada pelo nome próprio.

 

E ao pai?

Ao pai chamávamos pai. E segui essa tradição, toda a gente na minha família me trata pelo nome próprio.

 

Os seus filhos não lhe chamaram pai?

Poucas vezes. E as minhas noras também me chamam pai. Tenho seis filhos, cinco rapazes e uma rapariga, e sete netos. Irmãos, éramos três. O meu irmão mais novo já morreu há muitos anos, com um cancro, era médico. A minha irmã era professora, já está reformada. Eu sou o mais velho.

 

Deixe-me perguntar se nessa decisão racional entra um factor a que já aludiu: os seus pais fizeram um esforço para que pudesse estudar no colégio. A sua escolha era também uma maneira de os compensar pelo esforço que haviam feito?

Julgo que essa escolha não está ligada às decisões que os meus pais tomaram em relação à minha educação. Mas está um factor que foi predominante ao longo da minha vida: sou um maníaco de resultados. Gosto de realizar coisas e de as ver realizadas, bem realizadas, de uma forma eficiente, com o mínimo custo em todos os sentidos. Se a emoção se sobrepusesse ao raciocínio não tinha nunca atingido, como julgo que atingi, resultados concretos, palpáveis.

 

O que é que em si ainda existe desse homem que teve uma formação entre jesuítas, profundamente crente?

As bases cristãs são uma constante em mim. O interesse, a dedicação aos outros, ao bem comum. Outra constante: considerar que aqueles que na sociedade têm posições menos relevantes devem ter mais da minha atenção. Senti-os sempre como pessoas com menos sorte na vida.

 

Mas nunca pensou que a sua vida podia ser a deles se tivesse tido outra sorte, ou pensou?

Pensei. Nunca fui rico, nunca tive dinheiro para além do que era necessário, mas senti-me sempre um homem de sorte, e que nas alturas mais difíceis teve sempre uma mão invisível que lhe foi dada.

 

Uma altura difícil.

Para um homem que não tem riqueza de família, herdada, e que tem seis filhos para criar, quando chegaram àquela idade em que no dia 20 de cada mês já não tinha dinheiro, surge-me a oportunidade de ir para juiz do Tribunal de Contas das Comunidades. Surge-me a oportunidade de dar aos meus filhos uma educação no estrangeiro e de, do ponto de vista económico, ficar muito melhor do que estava aqui. A minha mulher não podia trabalhar; se trabalhasse, o ordenado dela não chegava para pagar as creches das crianças.

 

Porque é que teve seis filhos?

Não sei. Os filhos foram nascendo. Se pensasse duas vezes a cada filho que nascia, a vida, do ponto de vista racional, tornava-se mais difícil; mas nunca se tornou. Acabámos sempre por superar as dificuldades. Não há nenhuma razão moral nem religiosa.

 

Quando foi para o Luxemburgo como juiz do Tribunal de Contas Europeu, foi a família toda atrás?

Não foi logo. Numa sociedade luxemburguesa, caracterizada por haver muito poucas crianças, éramos motivo de reparo. Quando os meus filhos chegaram, tivemos de ir morar para uma casa que fosse isolada, para o barulho das crianças não incomodar a vizinhança. Quando são sociedades muito agarradas à comodidade individual, à tranquilidade individual, barulho de crianças não era uma coisa agradável.

 

Isso é o Luxemburgo no seu pior?

Não acho que seja no pior nem no melhor: é o Luxemburgo em 1986. Era assim.

 

Termina o livro com uma palavra de esperança, cita o Prof. Ernâni Lopes: “Onde existe facilitismo, deve haver exigência, onde está a vulgaridade, pôr a excelência…”. À luz do país em que vivemos, isto parece uma utopia. Acha que temos emenda?

Toda a minha vida tem algo de utópico. Já lhe disse que sou um emocional, e também sou, e adoro ser, um sonhador. Não sei se será para os meus filhos ou se será para os meus netos, mas no caminho em que estamos nem os meus filhos nem os meus netos poderão viver neste país. Alguma coisa tem que mudar. Pode parecer utópico, mas se não nos tornarmos, enquanto sociedade e enquanto poder, no que toca às finanças públicas, muito mais rigorosos, competentes, sérios, trabalhadores, não será possível. Porque o país será necessariamente engolido por quem, ou de quem, do ponto de vista financeiro já dependemos: dos credores internacionais e da União Europeia.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010