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Anabela Mota Ribeiro

Carlos Vaz Marques

05.10.15

Carlos Vaz Marques é jornalista. Dirige a revista literária Granta. Integra o painel do “Governo Sombra”, programa de comentário político da TSF e TVI.

 

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo?

Posso insistir na citação da Tabacaria (um dos poemas mais espantosos de qualquer tempo e lugar)? “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Em inquéritos de verão convém fugir de declarações grandiloquentes, como se diz que Maomé terá fugido do toucinho. Portanto, sonhos prosaicos, sensoriais, tangíveis: vinho branco geladinho; as conquilhas de que também falarei mais adiante (podem ser amêijoas ou caracóis ou percebes); um livro, ou dois ou vários, sem a obrigação de ler; beijos ao fim da tarde (se não puder também ser antes e depois); uma brisa ligeira, uma sombra larga e wifi.o de ler, beijos ao fim da tarde (ou a outra hora qualquer), uma brisa ligeira, uma sombra e wifi.

 

O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?

Li o “Crime e Castigo” antes de saber o que era o remorso, vi o “Esplendor da Relva” sem conhecer o conformismo, assisti ao “Hamlet” ignorando os mecanismos da vingança. Aprendi em livros e filmes que a minha vida não me chega. É-me insuficiente ser só quem sou. Walt Whitman ensinou-o a Fernando Pessoa e viu-se o resultado: “I contain multitudes”.

 

Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. As narrativas eram feitas de acordo com a cor política. Que lhe contaram os seus pais sobre esse tempo?

Os meus pais não me contaram, eu estive lá e vi. Talvez não tenha visto o que os livros de História relatam mas é capaz de ser sempre assim, sobretudo quando se tem 11 anos.

 

Que memórias vívidas tem desse período?

No dia 11 de Março de 75, uma terça-feira, estava eu numa aula de Português quando se ouviu o ronco de um avião, a baixa altitude. O professor pegou na pasta intempestivamente e disse-nos com uma voz trémula, para nossa surpresa e alegria, que tinha acabado a aula. Dali a pouco soube-se que o dia escolar tinha terminado. Não apareceu mais professor nenhum, nem contínuos, ninguém. Alguns dos meus colegas foram logo para casa. Noutros casos foram os pais buscá-los. Por fim, só restava eu e o Canina (que na verdade se chama Zé Manel e detestava, compreensivelmente, que o tratássemos pela alcunha). Ninguém nos foi buscar e ainda bem. Vivemos o 11 de Março sem qualquer fractura ideológica mas com uns quantos arranhões e contusões pela intensidade colocada nalgumas jogadas, no campo de cimento da Escola Preparatória Eugénio dos Santos.

 

Também há 40 anos, o país recebeu 700 mil retornados. Tem uma experiência de retornado para contar?

A minha prima Rosarinho, que tem a minha idade, veio de Angola quando a situação se complicou, ainda antes da independência. A nossa casa era pequena e eu e a minha prima passámos a dormir na mesma cama. Aprendi muitas coisas com ela. Algumas sobre África: nomes de frutos, de árvores e de animais. E que lá se podia ter um criado para ajudar no que fosse preciso, menos nos trabalhos de casa, porque eles não sabiam ler nem escrever. Depois, os meus pais ouviam os nossos sussurros e mandavam-nos calar. Ficava tudo em silêncio mas não estávamos a dormir, ao contrário do que a minha mãe e o meu pai pensavam.

 

Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem?

Já que me é dada esta oportunidade, aproveito-a, na esperança de que o destinatário seja leitor do Jornal de Negócios: Tom Waits, pá, como é possível que nunca tenhas dado um concerto em Portugal?

 

Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Discute os cenários, coligações, candidatos de uma e outra? Discute política? Que espaço é que ela ocupa no seu dia a dia?

Resposta telegráfica, para não maçar: a) sim, a maior parte das vezes comigo próprio; b) depende do interlocutor e da disposição; c) o espaço necessário, ou seja: como coisa séria que, por isso mesmo, não pode ser tratada com demasiada seriedade.

 

Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?

Talvez o yin e o yang da saúde mental - no célebre postulado de Freud - possa aplicar-se às diferenças ideológicas. Assim sendo, a esquerda tenderia para o princípio do prazer, a direita para o princípio da realidade. Não podemos viver sem nenhum deles. Ao excesso do primeiro pode chamar-se bancarrota, ao exagero no segundo retrocesso civilizacional.

 

Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?

‘São ínvios os caminhos do Senhor’, como ínvios são os caminhos da salvação pessoal. Mais ainda para um incréu como eu. Vinho, poesia ou virtude, sugeriu Baudelaire. Mas também se pode citar Woody Allen: “whatever works”. [Vide primeira resposta a este inquérito.]

 

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?

Passei boa parte das férias de verão, durante anos, em Vila Nova de Milfontes, quando Milfontes ainda era uma bela aldeia da costa alentejana, sem rotundas nem mamarrachos. Fui feliz a apanhar conquilhas e ao esperar que a D. Josefa – a minha quase avó, em casa de quem ficávamos – as preparasse, na cozinha, extraindo delas e do alho e dos coentros um perfume que, sim, talvez seja um dos tesouros da minha infância. Mal sabia juntar as letras e já o nome de um poeta, Bulhão Pato (que na verdade nunca cheguei a ler), era para mim um nome familiar. Fiquei a saber desde cedo, muito antes de ter conhecido o célebre verso de Natália Correia, que a poesia (também) é para comer.

 

Pode fazer um curto auto-retrato?

Gordo, olhos castanhos, carão moreno,

Quarenta e dois de pés, meão na altura,

Risonho de facha, o mesmo de figura,

Nariz banal, nem grande nem pequeno;

 

Incapaz de não se rir do veneno,

Menos dado ao furor do que à ternura,

Feliz por ter escapado à vida dura

Dos que antes dele lhe abriram o terreno

 

Alegre usurpador de mil idades

(Digo, de vidas mil), como alimento,

Com indiferença por altares e frades;

 

Eis Carlos, sem qualquer especial talento;

Foi roubar a Bocage estas verdades

Num dia que lhe corria a contento.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015