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Anabela Mota Ribeiro

Carolina Maria de Jesus e Nise da Silveira: a arte importa?

01.02.24

9 de Maio, 1958

“Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que estou sonhando.”

Num impulso, adoptei esta frase de Carolina Maria de Jesus para falar convosco sobre o Belo, a utilidade ou inutilidade do Belo. Não está mencionado, mas na minha memória está implícita, com Carolina, a presença de Nise da Silveira. Como se formassem uma raiz dupla. Uma imerge no subterrâneo, no onírico, âncora no passado; a outra enfrenta o imediato, o seu movimento não é vertical nem desce: antes, forma uma linha horizontal, de geografia precisa. O trabalho destas mulheres, brasileiras, acolhe e promove uma estranheza. Memória e imaginação comunicam-se.

Apresentação sumária.

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Nise da Silveira nasceu em 1905, foi médica psiquiatra. No centro psiquiátrico do Engenho de Dentro recusou uma abordagem agressiva aos pacientes, assente em electro-choques e lobotomias. Por causa disso, foi transferida para o centro ocupacional, habitualmente destinado a limpezas e pequenos trabalhos. Nesse lugar, em 1946, fundou oficinas de pintura e modelagem. Porquê? Passo a citar: “Nas imagens pintadas teremos auto-retratos da situação psíquica, imagens muitas vezes fragmentadas, extravagantes, mas que ficam aprisionadas sobre tela ou papel. [...] Pinturas, do mesmo modo que sonhos, se examinadas em séries, revelam a repetição de motivos e a existência de uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente.” Nise da Silveira trabalhou com o psicanalista Carl Jung, prestou especial atenção a formas arquetípicas reveladas no trabalho dos seus pacientes, a um substrato mítico, promoveu exposições, inclusive no espaço de Jung, na Suíça. No Rio de Janeiro, em 1952, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente. Morreu em 1999.

Se os doentes esquizofrénicos de Nise da Silveira exprimiam o que viam dentro de si mesmos, davam forma a imagens fugidias, recalcadas, a tormentos, Carolina Maria de Jesus retratava o que via fora de si, o que vivia no concreto quotidiano. Fazia-o escrevendo, com faca afiada.

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Carolina nasceu em 1914. Todas as palavras são imprecisas para falar do seu livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. Ou parecem até artificiais e supérfluas. Objecto literário inclassificável, obra de uma mulher com apenas dois anos de escolaridade, o texto incide sobre a miséria, a primitividade das condições de vida, a configuração dos seus sonhos, o comentário político, a denúncia de preconceito racial e de classe, um questionamento acerca deste grande mistério que é estarmos vivos e querermos a vida. Linha a linha, no osso do osso, estamos no grito, também na ternura. Por exemplo: “Eu deixei o leito às três da manhã porque quando a gente perde o sono começa a pensar nas misérias que nos rodeia. Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes. Que a minha vida circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela”.

Carolina é escritora. Talvez a palavra mais usada no diário seja “catar”. Catar para matar a fome, catar para alimentar os três filhos, catar pulgas na cama, catar esterco, catar pedras, catar lenha, catar alhos, catar tudo o que possa ser trocado por alguns cruzeiros, catar papel, ferro, trocar o papel e o ferro por um osso, o osso que dá sabor ao que se come. “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade”, em suma. Morreu em 1977.

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Foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, que conheceu Carolina numa favela de São Paulo. O jornalista leu e organizou o diário, promoveu a edição de Quarto de Despejo, em 1960. O sucesso foi retumbante, entre os literatos que admiravam Carolina estava Clarice Lispector, venderam-se milhares e milhares de livros, em várias línguas e países. 

Catar é um verbo poderoso. No dicionário Aurélio está escrito o seguinte: recolher um a um, procurando entre outras coisas; escolher, seleccionar, examinar com atenção, guardar, dedicar, observar.

Derivei de Catar para Respigar, de Carolina para Agnès Varda e para o maravilhoso filme Os Respigadores e a Respigadora. Os contextos da catadora e da cineasta são tão distintos que é difícil ou arriscado estabelecer paralelos, mas as palavras têm um núcleo comum. “Respigar” significa apanhar aquém e além, coligir, e, claro, a sua acepção primeira, apanhar as espigas deixadas no campo depois da ceifa. Há um sentido alimentício que me interessa na palavra respigar, que está na espiga e depois no pão. Em Carolina Maria de Jesus, catar é uma necessidade primária. Catar para comer. Ela, como os respigadores, colecta as sobras, os detritos, o que os outros vão deixando para trás. O seu motor é o da sobrevivência.  

Preciso deslocar-me para outro lado. Para o labor, o vagar, uma dimensão de tempo requerida no olhar que identifica, na mão que apanha. Porque há no gesto de apanhar um reconhecimento das coisas, do que elas são, do que elas foram, do valor de uso, de troca, um olhar atento ao valor intrínseco, ao valor simbólico, à capacidade infindável de uma coisa se metamorfosear, ser elástica. A matéria narrativa é ampla, cobre todo o espectro da visão, da existência. Está nas máscaras do real, na procura dorida, sinuosa, que é também a da criação. Escrever, pintar, moldar nunca são um caminho recto.

Pode ser que catar seja um verbo parente de sonhar, de criar, um primo chegado ou mesmo irmão.

Carolina a 12 Novembro de 1959:

“Quando eu fui pegar água, contei para a D. Angelina que eu havia sonhado que tinha comprado um terreno muito bonito. Mas eu não queria residir lá porque era litoral e eu tinha medo dos filhos cair no mar. Ela disse-me que só mesmo no sonho é que podemos comprar terrenos. No sonho eu via as palmeiras inclinando-se para o mar. Que bonito! A coisa mais linda é o sonho.”

Lindo e Belo não são o mesmo. Mas eu, ou o meu impulso, escolheu falar de um Belo que não foi o Belo sistematizado por Umberto Eco. Não foi o Belo do sublime, o da desmedida da célebre pintura de Caspar David Friedrich. Compreendo que fui escolhida. Fui atraída pelo impuro, pelo imperfeito, o inacabado, o sujo.

Mesmo que falasse do Belo em Caravaggio, pousaria a minha atenção nos pés gretados, no sangue, na feiura dos carrascos, no Cristo flagelado, ou no espanto dinâmico, na corda retesada, na testa franzida, na desconfiança, na traição, na batota, nas vísceras, na pata do cavalo, no medo de Isaac prestes a ser sacrificado pelo pai, naquela mulher que mata a fome a um homem dando-lhe a beber leite do seu seio.

Tudo isto é a substância da minha fabulação. Os átomos que me constituem são: imaginação, fantasia, sonho. De um modo tosco, posso resumir assim: o Belo que se me impôs é o dionisíaco. Se as formas apolíneas me inspiram uma comunhão com a harmonia, a claridade, a justa medida, há uma fúria, líbido, êxtase, uma efervescência que me convocam. Na minha constelação encontram lugar o que se estilhaça, o obscuro, o confuso, um certo andar à toa, o grotesco.

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Nise da Silveira reflecte sobre os estratos mais profundos da psique, sobre a importância do afecto para a reestruturação da psique, sobre a relação entre o mundo interno e o mundo externo. Procura entender conteúdos arcaicos, encontrar fios míticos, e a elaboração desse material sofrido numa linguagem simbólica. A psiquiatra resume isso no livro Imagens do Inconsciente: “Na escola viva que eram os ateliers de pintura e de modelagem, a escola que eu frequentava cada dia, constantemente levantavam-se problemas [...] que tornavam necessária a procura de ajuda fora do campo da psiquiatria — na arte, nos mitos, religiões, literatura, onde sempre encontraram formas de expressão as mais profundas emoções humanas. O mais importante acontecimento ocorrido nas minhas buscas de curiosa dos dinamismos da psique foi o encontro com a psicologia junguiana. Jung oferecia novos instrumentos de trabalho, chaves, rotas para distantes circunavegações. Delírios, alucinações, gestos, estranhíssimas imagens pintadas ou modeladas por esquizofrênicos, tornavam-se menos herméticas se estudadas segundo seu método de investigação. E também não lhe faltava o calor humano de ordinário ausente dos tratados de psiquiatria”.

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Fernando Diniz foi um dos pacientes de Nise da Silveira. Podemos ver algumas das suas mandalas e outras pinturas. Podemos tentar decifrar alguns códigos. Diz Fernando: “Eu não tinha nenhum brinquedo quando criança. Então sonhava todo dia com brinquedos interplanetários. Só tinha brincadeiras que umas crianças fazem com as outras. O poder de sonhar com o que quiser – menos sonhar com o que é da terra.”

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Jung vendo mandalas, em 1957.

E eis-nos de novo na miragem do sonho. 

Sonho (definição que consta do Aurélio): o que é produto da imaginação. Fantasia. Ilusão. Quimera. Devaneio. Sequência de fenómenos psíquicos (imagens, representações, actos, ideias).

Sonhar é fuga de uma condição opressora? Sonhar é percorrer um labirinto, em busca? Sonhar é respiração vital, além da máquina e da animalidade? Sonhar é delirar com um sentido? Sonhar é cerzir o que dentro de nós está esfiapado ou colapsou? Sonhar é actualizar um ser arcaico? É procura, é acção, é existir?

Julgo que há uma diferença importante entre os pacientes de Nise da Silveira e Carolina Maria de Jesus. Aqueles usavam as mãos para exprimir o que a fala já não diz ou não sabe dizer.

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Carolina, ao contrário, faz da palavra o elemento primordial de relação com o mundo. É uma fala a partir de um lugar específico, a favela, uma circunstância singular, uma mulher que encontra energia para escrever depois de um dia passado a catar. É uma fala escrita que traduz o dia, uma vida.

No mundo de Carolina, como no mundo que atravessamos, como no mundo cindido dos pacientes esquizofrénicos de Nise da Silveira, e que é um mundo que se desagrega, em ruína, árido, que lugar ocupam a arte, o Belo, a faculdade da imaginação? O Belo é útil ou inútil? A arte não tem de servir para nada, não é? Apesar de servir para muito, como ficou claro, quer enquanto instrumento de catarse, afirmação, comunicação de um retrato sociológico, quer enquanto processo terapêutico, inclusive com valor curativo. Alguns destes doentes, abandonados como casos perdidos, chegaram a ter alta depois de 20, 30 anos de incomunicabilidade.

Trago muitas perguntas, levanto muitas questões. Não sei as respostas, ou tenho dificuldade em apontar possíveis respostas. Recurso mais simples: voltar ao texto, voltar ao que ainda reverbera no meu mundo interno. A leitura de Carolina Maria de Jesus, durante o segundo confinamento, deixou-me muda. Como ela, também eu escrevi um diário o ano passado. Não apenas para registar a desorbitação que todos estávamos a viver, mas para me ancorar nos dias, na casa, em mim mesma. E interrogava-se sobre a razão da escrita. Escrevia porquê, escrevia o quê, e para quem? Criamos porquê? Que necessidade é esta de nos mantermos vivos, reproduzindo células, deixando vestígios? Schopenhauer falava da vontade de espécie, da voz da espécie. Pode ser que esta voz queira e precise ser audível, se perpetuar. Em vez de utilidade ou inutilidade, estou a falar de necessidade, impulso.

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Quarto de Despejo

27 de Maio:

“E haverá espectáculo mais lindo do que ter o que comer?”

24 de Julho:

“Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome.”

16 Agosto

“- É verdade que você come o que encontra no lixo?

- O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais.”

11 de Junho de 1959

“Na redacção, eu fiquei emocionada. O senhor António fica no terceiro andar, na sala do Dr. Assis Chatobriand. Ele deu-me revista para eu ler. Depois foi buscar uma refeição para mim. Bife, batatas e saladas. Eu comendo o que sonhei! Estou na sala bonita. A realidade é muito mais bonita do que o sonho. Depois fomos na redacção e fotografaram-me. Prometeram-me que eu vou sair no Diário da Noite amanhã. Eu estou tão alegre. Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando.”

Carolina Maria de Jesus não lidou bem com a glória. Depois do diário de uma favelada, escreveu Casa de Alvenaria, poemas, contos.

Editou até um disco com composições suas também chamado Quarto de Despejo. Falou de si mesma como uma vedete da favela: “Salve ela, ô, salve ela, a vedete da favela”.

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Passou os últimos anos de vida num bairro pobre.

Quanto a Nise da Silveira, é irresistível contar como fui dar a ela. Um amigo músico, brasileiro, baterista, pôs a tocar um vinil de Dona Ivone Lara. Ao mesmo tempo, fazia arroz com feijão para a família, manejava, como se fosse um malabarista, as baquetas. Aí, como ele diz, perguntou-me se eu sabia que Dona Ivone tinha sido assistente de Nise da Silveira. Eu conhecia a sambista, não conhecia a psiquiatra. Fui à procura.

Vai soar forçado, mas arrisco confessar que Imagens do Inconsciente me salvou no primeiro confinamento. Nesse tempo em que a terra tremeu muito, senti o amparo destas pinturas, das esculturas, da reflexão desta mulher insubmissa. Lembrei-me até de uns bolinhos de terra que eu fazia criança pequena. Humedecia a terra com o meu próprio chichi e, com as mãozinhas, ajeitava os bolinhos, ou pães. A minha avó fazia pão. Isto não é arte, mas eu sinto-o como expressão do Belo. As coisas que fazemos com as mãos são muito importantes, ajudam muito a organizar o pensamento ou algo ainda informe.

Dona Ivone, eu já sabia, era a compositora de Sonho Meu, que todos conhecem desde 1978, desde a versão da Bethânia e da Gal. “Sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe, no meu céu a estrela guia se perdeu, a madrugada fria só me traz melancolia, sonho meu.”

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Enfermeira e assistente social de formação, foi uma das primeiras mulheres negras a ter um curso superior, no Brasil. Trabalhou trinta anos em saúde mental, levou a terapia musical para os seus pacientes do Engenho de Dentro.

Parêntesis: não é espantoso que um hospital psiquiátrico se chame Engenho de Dentro? É certo que esse é o nome do bairro, na zona norte do Rio, mas é do desafinado e da sintonia deste engenho, que é a nossa cabeça, que tudo sai.

Dona Ivone consagrou-se à música, em 1977. O disco de Bethânia, de onde faz parte Sonho Meu, é de 78. Morreu aos quase 100 anos, em 2018.

O disco que o meu amigo ouvia era este, escrito em parceria com Délcio Carvalho, também lançado em 78. A capa é esta: 

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Conferência feita na Escola de Verão da Gulbenkian no dia 2 de Setembro 2021.