Carolina Villaverde Rosado e Joana Villaverde
Joana Villaverde é artista plástica. Tem 43 anos, duas filhas. Carolina Villaverde Rosado, a filha mais velha, estuda Ciências Políticas em Roma. Tem 20 anos. Constança acabou de fazer 18 anos, estuda na António Arroio, vive em Lisboa.
Joana casou com Patrícia há dois anos, estão juntas há 14. No casamento, em Aviz, estava o pai de Carolina e Constança, a família deste, as famílias das noivas, as pessoas da terra...
Carolina não tem memórias do pai e da mãe juntos. Desde que se lembra de si, tem uma madrasta e não um padrasto. Ela não gosta de dizer madrasta. É a Pat.
Como foi crescer com uma família homossexual? Fez diferença?
Mãe e filha contaram, em separado, como é esta família igual às outras, e feliz à sua maneira.
Carolina
Um auto-retrato? Posso dizer que sou uma menina alegre. Não, não sou alegre: sou feliz. Curiosa. Gosto de pessoas. Resumindo muito: eu é pessoas. Sou eu em relação com os outros. Não me preocupo com o que os outros dizem. Talvez um bocadinho... Ninguém é completamente livre. Antes fôssemos. Mas a relação com os outros é central. Uma vez disseram-me: “Com o teu sorriso é possível alegrar tudo”. A base da minha felicidade está na educação que os meus pais me deram. Ou seja, faz o que te faz feliz.
Separaram-se quando eu tinha dois anos. São muito novos e tiveram-me muito novos. Isso é importante porque consigo estar com eles e os amigos deles sem pensar: “Lá vêm os adultos”.
O meu pai veio viver para Portugal aos seis anos. A minha avó é inglesa, o meu avô é português. Começou a trabalhar aos 17, é designer gráfico. Nenhum dos meus pais acabou a escola. São os dois uns meninos.
A minha irmã é dois anos e quatro meses mais nova do que eu. Os meus pais separaram-se quando ela tinha três meses. Ficámos a viver com a minha mãe e ao fim de semana estávamos com o meu pai. Mas aquilo mudava. Era consoante as folgas que ele tinha. Nunca houve nada fixo. Nunca houve aqueles problemas de tribunais. São super-amigos. Não me lembro dos meus pais juntos. Tenho memórias da separação, de discussões ao telefone.
A minha mãe teve uns namorados entre o meu pai e a Pat. O meu pai foi tendo mais namoradas. Quase não me lembro da minha vida sem a Pat. Desde os quatro anos que tenho esta madrasta. Nunca digo isto! Não gosto nada de dizer madrasta. É a minha mãe e a Pat.
As minhas amigas, as principais, sabiam. A Pat era uma amiga da minha mãe que vivia lá em casa. Eu fazia questão, quando as minhas amigas dormiam lá em casa, de dizer que era uma amiga da minha mãe que dormia na mesma cama da minha mãe. Era evidente que não havia outro quarto, e preferia dizer.
Nós vivíamos na Estrela com a minha mãe. De vez em quando aparecia a Patrícia. Ficou Pat mais tarde. Perguntei porque é que ela não vinha mais. “Porque vive em Madrid.” Estava a fazer o doutoramento, é bióloga. Era bom quando estava. Era uma pessoa simpática, que gostava da minha mãe.
Depois fomos viver para casa dela, na Alameda. Eu tinha seis anos. Estava na primeira classe e lembro-me do momento em que disse que ia mudar de casa. A princípio, era a casa da Pat, da família dela. A Pat tinha vivido nessa casa quando era pequenina. A minha irmã e eu dormíamos no quarto que tinha sido dela.
Uma vez perguntei directamente à minha mãe se ela e a Pat eram namoradas. Tinha nove anos. Era para ter as coisas mais claras. A minha mãe disse que sim. Normal. Contei a uma amiga. “Olha, afinal não é só uma amiga que dorme na mesma cama. São namoradas.” Eu sabia que eram namoradas, mas passou a ser verbalizado. Antes disso, nunca tinha sido dita a palavra “namorada”.
Quando era pequena, dizia. Era uma coisa nova para mim e para os outros. Não queria que os meus amigos sentissem que era uma coisa esquisita. Foi uma forma de me proteger, para não ter os bullyings. Nunca tive, não sei o que isso é. Dizia para que percebessem que era uma coisa normal. Depois deixei de dizer. Era tão normal que nem se dizia. Tenho uma amiga antiga que só percebeu quando lhe disse que iam casar. Ficou espantada. “Mas eu nunca te tinha dito que a minha mãe é homossexual?”
Nunca percebi bem como é que o meu pai lidou com a relação da minha mãe e da Pat. Acho que lidou bem. O meu pai estava no casamento delas, foi um dos primeiros a chorar... O meu pai tem conflitos amorosos, conta à minha mãe. A minha mãe tem problemas amorosos ou outros quaisquer, conta ao meu pai.
Chorou toda a gente no casamento. Era uma coisa tão bonita... Era o triunfo do amor.
Tivemos uma educação estrangeirada. A normalidade tem a ver com o meio em que circulamos. Foi possível que fosse uma coisa normal. A minha mãe protegia-nos muito. Mas sempre se falou de tudo lá em casa. Sexo, amigos, problemas amorosos, escolares, dinheiro. O que nos perturba tem de ser dito. Se não se partilha fica ali uma bola. Acho que isto tem a ver com a minha família, que nunca fez daquilo um bicho de sete cabeças. Nunca se escondeu.
Também nunca se expôs. Não andavam aos beijos. Acho que nunca vi um grande beijo entre a minha mãe e a Pat... Também não se vêem muitos casais hetero aos beijos, como se um entrasse dentro do outro.
Na escola fiz um trabalho de grupo. Um tema à nossa escolha. Escolhemos homossexualidade. No Liceu Francês há pessoas abertas e outras que não são tão abertas. Colegas. Os professores são abertos. São franceses fixes. O meu grupo estava a fazer um trabalho sobre a homoparentalidade. Sobretudo os rapazes eram contra. Um colega disse: “Isso é uma coisa horrível. Depois as crianças também vão ficar homossexuais”. Simplesmente respondi: “A minha mãe é homossexual. Sou homossexual, eu?” Ficaram a olhar para mim. Brancos. Nunca mais me esqueço da cara deles. “Não.” Foi assim que lhes disse que a minha mãe é homossexual. Estava a enervar-me aquilo. Estavam a ser tão estúpidos, tão estúpidos...
O trabalho ficou chato. Passaram a ter mais cuidado com aquilo que diziam. Não era preciso.
Tinha 16 anos quando isto aconteceu.
Nunca senti nenhuma vergonha, nenhum embaraço. Nunca. As minhas amigas foram ao casamento da minha mãe. Fiz questão de ir bonitinha. Fui despejar o lixo e uma senhora de Aviz, onde foi o casamento, disse-me: “Então muitos parabéns às noivas”. Como é que aquela senhora, que nunca tinha visto, sabia que era o casamento de duas noivas? E estava contente!
Quando eu tinha 15, 16 anos, elas separaram-se. Fiquei super triste. Achei que não iam voltar. Uma amiga disse-me: “Claro que vão voltar. Vê-se mesmo que gostam uma da outra”. Passou um ano, um ano e meio. A minha mãe foi viver para Nova Iorque cinco meses, ganhou uma bolsa. Voltaram. Fiquei muito feliz. Porque, lá está, é a minha mãe e a Pat. Sei que gostam muito uma da outra.
Fez-me confusão. “E agora, será que a minha mãe se vai juntar com outra mulher?” A possibilidade de vir outra mulher... Não sei se era por ser outra mulher ou por ser outra pessoa. Acho que era um misto das duas coisas.
Já com o meu pai, sempre que acaba com uma namorada, quando vem outra há sempre um nervosismo. “Ai, ai, ai, e se eu não gostar desta?”
Também me lembro de pensar: “E se agora é um homem?” E se a minha mãe não gostava de mulheres (em geral), gostava era da Pat? Também era estranho pensar na minha mãe com um homem.
Quando se começou a falar de co-adopção, disse: “Não me importava de ser co-adoptada”. Não era não ter pai ou não ter mãe. Era ter mais. Não posso ser co-adoptada porque tenho um pai, mas não me importaria. Não é uma substituição, é uma mais valia.
A minha mãe vive um pouco nas nuvens. A Pat não. Eu sou muito responsável. O meu pai também é, mas não tanto como eu. A minha mãe goza: “Ela sai a ti, Pat”. Saio à Pat nisso. E na noção de que há coisas que têm de ser feitas para não se viver só no sonho.
Estando a minha mãe e a Pat casadas é mais fácil lidar com a coisa. “Namorada” soava um bocadinho esquisito... É mulher! É mais oficial ainda. Quanto mais oficial, mas fácil é falar das coisas. O casamento põe a coisa mais ao nível de outros relacionamentos.
A experiência da minha irmã é diferente. Ela não é tão aberta. Quase não falámos sobre este assunto. Só um pouco, quando elas se separaram. Também não falávamos muito do meu pai e das namoradas dele. Talvez falássemos um bocadinho mais porque houve várias. Acho que nunca falámos sobre a minha mãe e a Pat porque não era preciso falar. Fazia parte.
Se calhar não faz sentido o que vou dizer, mas digo: não se questiona o pai e a mãe. São aqueles. E eu também não questionava a minha mãe e a Pat. Desde que me lembro de mim, elas existem.
A verdade é que a minha irmã e eu só começámos a falar desde que fui para Bruxelas, onde estive dois anos. Agora estou em Roma. Ela começou a crescer, começámos a ter mais proximidade. Começa a ser também uma amiga, para além de ser minha irmã.
Referências? Como tenho a referência masculina do meu pai... Mas não é por aí. Acabamos por ter referências masculinas e femininas de várias pessoas. O avô, um tio, um amigo mais próximo. Acho esse argumento um bocado estúpido. Acho que depende mais da relação com os pais. Tenho amigos que não falam com os pais. Eu falo. Com os meus pais, com a Pat. Agora também falo com a Pat sobre tudo.
Referências femininas: a minha mãe nunca se pintou, eu era a miúda mais pirosa que se possa imaginar. Ainda bem que a minha fase pirosa foi aos seis anos... Pintava-me, inventava fatiotas, ia de saltos altos para a escola. A minha mãe dizia: “Há-de passar”. E passou. O maquilhar vem da minha avó materna. Ela punha um risco nos olhos e usava uns brincos brilhantes.
A minha família é uma família alargada. O núcleo é a minha mãe, a Pat, o meu pai e a minha irmã. Não sei se as namoradas do meu pai entram na família alargada...
Nunca tive ordens da Pat. Ordens do tipo: “Vai lavar a loiça”, sim. Decisões do tipo: “Posso ir a uma festa?”, não. Talvez entre elas houvesse um consenso, mas a informação passada era a da minha mãe. Nunca tive com a Pat uma disputa pelo poder. Posso ter dito, em criança, “Tu não és a minha mãe”. Como disse às namoradas do meu pai. O normal que os miúdos dizem. “Tu não mandas em mim.” Birras. Talvez o “vai lavar a loiça” da Pat não fosse igual ao da minha mãe. Mas tínhamos de lavar de qualquer maneira.
Não percebo essa coisa de os filhos dos homossexuais saírem homossexuais... Eu não sou. Quer dizer, ainda não me apaixonei por nenhuma mulher, nunca me senti atraída por nenhuma mulher. Mas quem sabe?
Joana
É igual. Mãe, pai. Mãe, mãe. Pai, pai. O principal para as crianças é sempre o amor.
Tive as minhas filhas muito cedo. A única certeza que eu tinha era que tinha amor para lhes dar. Do resto, não sabia nada. Se ia ter casa, se ia ter dinheiro para pagar as contas. Eu sabia que tinha a capacidade de as amar. Sabia mesmo. As minhas filhas cresceram a saber que são amadas. Por isso, tanto fazia, de facto, a sexualidade que a mãe tinha.
Elas são amadas pela mãe, pela mulher da mãe, pelo pai, por mais gente. Ganharam mais família.
Para elas, durante alguns anos, era uma coisa ambígua. Tive alguns cuidados, porque eram muito pequeninas quando comecei a namorar com a Patrícia. Tive medo que fosse tão natural para elas que se pusessem a dizer na escola que a mãe tinha uma namorada e que pudessem sofrer com isso.
Uma das primeiras coisas que quis fazer – por elas – foi dizer ao pai delas que tinha uma namorada. Dizer à mãe do pai delas que tinha uma namorada. À minha mãe, à minha família. Quer dizer, que o núcleo familiar delas soubesse. Soubesse tudo. Que fosse tudo claríssimo.
Vamos do princípio. Tive a Carolina com 22, quase 23, a Constança com 25. Era uma maluquice. Tem a ver com as artes. Era um amor e uma cabana. Concretizámos esse sonho, o Zé Pedro e eu. Ele é designer. Ultra-presente enquanto pai. Foi muito importante nesta revolução na minha vida. Eu própria também não sabia que havia esta possibilidade de me apaixonar por uma mulher.
Ah.
Sabe o que era? Era a capacidade de amar. O que for. Homem, mulher..., aconteceu-me assim. Não é ser uma coisa e depois ser outra. É ser-se sempre a mesma pessoa com inúmeras capacidades. A capacidade de amar – os filhos, um homem, uma mulher – existe em mim. Não houve nenhuma alteração.
Na sociedade que temos não é simples assumir a homossexualidade. Nunca quis dar entrevistas. Não tenho de expor a minha vida pessoal e a minha sexualidade ao mundo. Mas hoje, como as coisas estão, acho que é importante começar a dizer-se. Dizer que é natural. Dizer que ninguém tem nada a ver com a sexualidade do outro. Podia ser um homem. É uma mulher, que amo há muitos anos. Casámos. Somos muito felizes.
O Zé Pedro e eu começámos a namorar cedíssimo. Eu tinha 15, ele tinha 14. Começámos a viver juntos aos 18. Separámo-nos no ano em que nasceu a Constança. Foi muito mais inconsciente ter crianças na situação em que as tivemos do que juntar-me com a Patrícia e com as minhas filhas. Não havia estrutura. O Zé Pedro era o único que trabalhava, eu, como artista plástica, só tenho dinheiro sabe-se lá quando. Nunca é por mês e as contas são por mês. Não havia nada, senão o amor.
O estar tudo bem com as crianças sempre foi o principal. Os fins de semana: a Carolina agarrava-se a mim como uma lapa, não queria ir. Eu tirava-lhe dedo a dedo: “Tens de ir para o pai. Porque é assim”. Depois comecei a ficar muito cansada e pedi-lhe que ficasse uma semana por mês com elas. Guarda-conjunta. Nunca tratámos de nada legalmente. Foi tudo a falarmos um com o outro. Acordo.
Quando me apaixonei, demorei algum tempo a perceber o que é que estava a acontecer. Até ao momento em que me perguntei: “Porque é que não estou mais com aquela pessoa se estou tão feliz com ela? Porque é que estou a retrair-me?” Eram os meus próprios preconceitos, os preconceitos sociais. Percebi que estaria muito melhor se estivesse sempre com aquela pessoa. A Patrícia. A Pat.
Nunca mais me vou esquecer da frase que me disse a minha sogra, a mãe do Zé Pedro, quando lhe disse que ia viver com a Patrícia. Ela é inglesa. “But you know the big step you’re doing?” Sempre do meu lado, sempre do meu lado. “Sei.”
Tinha ido falar com uma pedopsiquiatra. Estava com medos. Como é que eu ia fazer? Como é que geria isto? Ela respondeu-me: “O que é que as pessoas têm a ver com isso?” Mas eu queria que as miúdas tivessem a base segura. Que não houvesse mentiras.
Não sei mentir. Incuti-lhes a ideia de que não se mente. Se se mente perde-se a confiança e perde-se o essencial numa relação, não é? Não podia mentir às minhas filhas. Mas cheguei a dizer que a Patrícia era uma amiga muito especial... Uma amiga muito especial quando a criança tem quatro anos pode ser o que a criança quiser. Era uma espécie de mentira... Tive de esperar que elas tivessem os seus alicerces.
Retomando a história: depois de me apaixonar, demorei tempo a aceitar. Um andar assim, depois uns beijos, tudo muito estranho. [riso] Quero, não quero. Sobretudo pela responsabilidade em relação às miúdas. Eu queria ter a certeza do que estava a fazer.
Não queria criar confusões. O mesmo com namorados homens, que tive, depois de me separar do Zé Pedro. Agora a mãe anda com um e depois com outro? Se não tinha a certeza do que era aquela relação, não queria que fossem dormir lá a casa. O normal. É o que se faz aos meninos.
Contei que me tinha apaixonado no momento em que fui viver para casa da Patrícia. Foi uns dois anos depois de estarmos juntas. Antes disso a Patrícia vivia em Madrid, estava a fazer o doutoramento. É cientista.
Acho que não houve nenhuma conversa difícil. A conversa com a Melinda, a mãe do Zé Pedro, foi libertadora. Eu sabia responder ao que ela me perguntava, eu sabia que aquele era um grande passo. Estava segura.
À minha mãe perguntei: “Não sei se já percebeste o que é esta relação que eu tenho...” Ela fez-me meio desentendida. Insisti: “Nunca verbalizaste com o Grilo (era o namorado dela)?” “Por acaso já verbalizei”. Ficou assim.
O meu pai já tinha morrido. Morreu no ano em que me separei, em que nasceu a Constança, 1996. Foi um ano duro.
A minha relação com a Patrícia fez muito bem à cabeça da minha mãe. Tem 71 anos e mudou. Há uns tempos, se calhar, não acharia nada bem a co-adopção. Diria: “Coitadas das crianças. Vão ser cobaias”. Percebeu que o amor é o mais importante. E sabe o que são as crianças em instituições. Percebeu, na prática, que não há problema nenhum.
Temos duas amigas que vivem juntas e que têm duas filhas; a minha mãe acha o máximo.
Não, não temia a reacção do Zé Pedro. Porque nós temos uma relação de amizade muito grande. Somos um bocadinho irmãos. Crescemos juntos. Vem contar-me dos seus desgostos amorosos, pedir-me opiniões. Tem imensa graça. Acha que a Patrícia é a sã da família. “Ah, se a Patrícia disse isso, é melhor fazer como ela diz.” Ela é cientista, deve perceber melhor do que nós, que não percebemos nada. Nunca houve atrito entre o Zé Pedro e a Patrícia. Jamais.
O todos os dias é normalíssimo. É assim: recebo um telefonema a perguntar: “Já trataste da viagem de não sei quem que tem de ir não sei para onde, e não há dinheiro?”
A Patrícia fala muito pouco. Teve uma história parecida com a minha. Não tem é filhos. Fui a primeira mulher na vida dela. Ganhou mais uma família, a do Zé Pedro. Vamos todos ao Natal dos ingleses, da família do Zé Pedro. É o meu Natal preferido.
A Carolina tinha seis anos, a Constânça tinha quatro quando fui viveu com a Patrícia. A Carolina é muito dada, começou logo a pentear a Patrícia. A Constança é mais reservada e, muito pequenina, tudo o que viesse ter com a mãe, não era bem vindo.
A Carolina tinha necessidade de dizer às amigas. Iam lá a casa, percebiam que o quarto da mãe era da mãe e da Pat. Também para as amigas era uma coisa normal. Não faziam perguntas. Quando disse à Carolina, deu uma choradeira. “A Patrícia é minha namorada”. Mas não teve a ver com o facto de a Patrícia ser minha namorada. Foi por ter sido das últimas a saber. “Porque toda a gente já sabe e eu não...” Tive de lhe explicar que toda a gente sabia por causa dela. Para que fosse normal. Chegava a avó, chegava qualquer pessoa e não havia quartos fingidos. Ela tinha sete, oito anos.
As minhas filhas fizeram o Liceu Francês. Há lá uns meninos, sobretudo os portugueses, muito conservadores. Um dia, um estava a dizer: “Os homossexuais, que horror. E os filhos dos homossexuais são homossexuais”. A Carolina meteu-se no meio. “Desculpa, mas não são. Porque a minha mãe é homossexual e eu não sou”. Os miúdos ficaram caladíssimos e com um respeito gigante por ela. A coragem que ela teve.
À Constança perguntei: “Os teus amigos sabem a relação que a tua mãe tem?” Muitos poucos sabiam. A Constança, quanto menos se falasse do assunto, melhor. Hoje é uma activista! Em pequena, dizia: “Que é que eu tenho a ver com isso?”.
Hoje têm uma relação óptima. As duas sentiram que a Patrícia trazia alguma paz. Paz à casa, a mim.
A verdade é que a Patrícia nunca quis interferir na educação delas. Na escola, ajudava nas coisas de que não percebo nada, Matemática, Física. Está presente, às vezes zanga-se... O quotidiano. Há tempos zangou-se com a Constança porque ela ia vestida com os calções e uns collants, e estava frio e a chover. [riso] Coisas normalíssimas.
Nunca disseram muito “Não és a minha mãe, não mandas em mim”. A Patrícia nunca quis mandar nelas.
O casamento, ao contrário do que sempre imaginei – que era uma prisão –, foi uma liberdade. Há coisas que fazemos mais vezes de mão dada. Mas a Patrícia e eu não somos o tipo de casal que está sempre aos abraços e aos beijos. Tudo o que é relacionado com o amor verdadeiro não é mostrado. Sendo que os outros, as miúdas sabem tudo. Mas não é de porta aberta. Acho que devia ser assim em casais homossexuais, heterossexuais. Há coisas que são privadas.
Com o Zé Pedro, era igual. Não dávamos a mão na rua. Tem a ver com a personalidade.
Não sei se alguma vez as minhas filhas se uniram para falar deste assunto. Gostava de achar que sim. São duas raparigas, estão sempre a zangar-se, mas são muito unidas. Adoram-se. E protegem-se imenso. Nunca ao pé de mim. Ao pé de mim estão sempre aos gritos, a competir pela atenção da mãe. Elas não vão gostar de ler isto...
Tivemos um interregno de mais de um ano, a Patrícia e eu. O medo delas era que aparecesse alguém extravagante... Foi em 2009.
Aos 40 estive sozinha, com uma bolsa, em Nova Iorque. Nunca tinha estado sozinha. Aprendi a concentrar-me. Em relação ao trabalho e à vida. Focagem. Eu não tinha isso. Nunca tinha podido concentrar-me em mim. Estava sempre a concentrar-me noutras pessoas.
Porque é que casámos? Para já porque se podia. Queríamos imenso fazer uma festa. Enlouquecemos e comprámos uma ruína em Aviz quando queríamos comprar uma casa em Lisboa. Estava escrito no jornal. Uma casa baratíssima. Era um dia de início da Primavera. Recuperámos a casa.
Escolhemos o dia da Revolução Francesa para casar. Achámos que ficava muito bem. O bolo dizia: liberté, egalité, fraternité. E tinha duas Mariannes, em azul. O interior do bolo era vermelho, branco por cima. Tudo certinho.
Foram amigos e pessoas de Aviz. Queria tudo ir à festa, participar. O senhor Zé, que tinha ali uma horta, perguntou: “Se já são tão amigas, porque é que se vão casar?” “Porque se pode.” “Então está bem.” Ficou esclarecido. O não se compreender as coisas, aprisiona. Assim ficou tudo claro.
Também aprendi assim, que ser amado é o mais importante. Sobretudo com a minha avó materna. Tinha a quarta classe e uma inteligência emocional enorme. Tenho pena que não tenha conhecido a Patrícia. Ter-lhe-ia feito confusão, mas acho que diria: “Pois, filha, se é bom para ti...”.
Publicado originalmente no Público em 2014