Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Catarina Portas

29.04.15

À entrada da casa há livros. Mas a conversa foi na cozinha, com vista para o rio e os quintais em frente. Alguns gatos da vizinhança espreitaram à procura de comida. Bebemos chá frio com canela e limão. Por acaso não era o Gorreana, o chá dos Açores que integra o projecto Uma Casa Portuguesa. Mas do imaginário dessa casa, dos objectos do quotidiano que dela fazem parte, da história que contam, e que é a nossa, falou-se abundantemente. Isto que agora faz é onde a vida dela toda veio dar. Catarina Portas quis ser chapeleira, desistiu de ser jornalista, tem a memória e a identidade como signos. A irmã mais nova de Miguel e Paulo, a filha do Nuno, gosta imenso da família que tem e das pessoas que a compõem. Eles já eram a sua família, antes de serem as personagens pública que são. Todos viveram na casa onde a encontrei.

 

Começamos pela casa? Qual é a memória mais antiga que tem de um espaço que reconhece como seu?

É desta casa, onde nasci e continuo a viver. A primeira vez que abri os olhos, que olhei para as coisas à minha volta, foi aqui. Cresci nesta zona. Andava no jardim infantil ali das escadinhas, ia todos os dias passear ao Museu de Arte Antiga. A casa era diferente, tinha mais paredes, e uma cozinha antiga com um balcão de pedra.


As memórias de infância são muito sensoriais, têm cheiro. É espantoso perceber como são guardadas e adulteradas. Muitas vezes não coincidem com a realidade.

Não, de todo. Havia uma empregada que vivia cá em casa, a Tata. Só há uns anos percebi que a Tata era coxa. Nunca dei conta, nunca reparei que ela fosse diferente. Eu vivi em muitas casas, andei em imensas escolas, em vários países, mas esta foi sempre a casa à qual voltei. Às vezes penso que podia vendê-la e ir viver para não sei onde. Mas não consigo.

 

Este é o seu lugar.

Sim. A casa dos meus avós paternos é muito importante, também, em termos de memórias de infância. Era uma casa grande, em Vila Viçosa, com um enorme quintal, com hortas, coelhos, galinhas, com um jardineiro. As hortenses da minha avó, os bolos, a água do púcaro de barro - é um sabor totalmente diferente -, os lençóis de linho...

 

As memórias que descreve são relativas a objectos do quotidiano.

São muito preciosos. Se A Casa Portuguesa tem muito a ver com produtos, (e vai ter a ver, cada vez mais, com produtos próprios, que há-de fabricar, de uma forma mais ou menos tradicional), tem a ver, também, com a recuperação de um saber viver ao longo de gerações.

 

Isso implica um reconhecimento da identidade e do património.

Não é só reconhecer. [A questão passa por] mantê-lo acessível. Isto vai desde dos clássicos da literatura até à flor de sal. Até às lojas que eram lindas, com armários de madeira que duraram séculos e que nem sequer estavam podres, e têm que ser substituídos por prateleiras de alumínio, asquerosas, mal penduradas. Como se não houvesse gosto na beleza das coisas.

 

Faz imensa impressão que todos os cafés se tenham descaracterizado, que apaguem a memória e o espírito.

Isso é verdade para os cafés e para tudo. Temos um problema com o passado. Como o Eduardo Lourenço diz, somos fanfarrões e humildes, em simultâneo. Temos um complexo de inferioridade e de superioridade, e temos uma relação muito pouco normal com as coisas normais.

 

Sem ser nas suas memórias mais recônditas, onde é que começa a aventura d’A Casa Portuguesa?

O início foi completamente inesperado. Fiz para a Marie Claire um shopping deste tipo de produtos. Depois, fiz a pesquisa para um livro cujo nome de código selvagem era “life style salazarista”. No fundo, era a vida doméstica no tempo de Salazar.

 

Essa matéria diz respeito a gerações anteriores à sua, que tinha cinco anos quando se deu a Revolução de Abril. Porque é que isso lhe importa tanto?

As pessoas têm pouca noção de como é que os pais e os avós cresceram. Isso marca-nos imenso, até hoje, marca o povo que somos. Como era a vida quotidiana e doméstica até 1960, durante 50 anos? Fazia esta pesquisa e lembrei-me que era engraçado reconstituir uma despensa de época fotograficamente. Quando fui à procura dos objectos, percebi que no espaço de dez anos metade tinha pura e simplesmente acabado. E quanto mais percebia que tinha desaparecido, a pulsão era mais forte.

 

Anos mais tarde, o encontro com a sua amiga Isabel Cristina Haour foi determinante. Montaram uma estrutura para vender as caixas onde combinaram artigos de uma casa portuguesa. A organização é feita por núcleos temáticos, como despensa ou casa de banho.

A condição é serem marcas que existem há várias décadas e que mantém as suas embalagens originais, ou continuam a fazer os produtos de uma forma semelhante, quase sempre com recurso à manufactura. Tem sido muito interessante, ao longo deste último ano, a relação com essas fábricas. Desde o latoeiro velhinho que deixou de trabalhar o mês passado à Ach Brito que fez um processo de reconversão e vende muito bem, sobretudo no mercado americano. Pensámos que podíamos prestar um serviço a uma série de marcas, enquanto tentávamos revender esses produtos de uma outra forma e para outros mercados.

 

O circuito está já implantado? E contempla o mercado internacional?

Sim, fizemos um teste no Natal de 2004 e vendemos 60 caixas em dez dias. Foi um bocado surpreendente. O Miguel Vieira Baptista desenhou as embalagens novas, o Ricardo Mealha desenhou os logos, fizemos o livrinho que conta a história dos principais produtos que usamos. Propusemos à Confiança que fizesse sabonetes novos, porém embrulhados nos papéis originais, e a fábrica convidou-nos a mostrar isto na Maison et Objet. Meti-me no avião e fui para Paris com algumas caixas que pusemos no stand. Tive uma experiência extraordinária, que foi estar quatro dias, das nove da manhã às oito da noite, a vender em francês, inglês, espanhol, italiano, português. A vender!, que é uma coisa que nem sabia que sabia fazer.

 

Que tipo de pessoas encontrou?

O primeiro cliente que tivemos foi Designers Guild, ao terceiro dia foi a Conran Shop!Tivemos sobretudo clientes ingleses, vendemos para duas lojas em Paris, Bruxelas, Bangkok. Nas primeiras caixas juntámos vários produtos de fabricantes diferentes, hoje em dia juntamos as nossas próprias caixas e os nossos próprios produtos.

 

É já um negócio sério...

Para mim, esta coisa do negócio é estranha, porque não me lembro em pequena de falar em dinheiro. Não havia muito dinheiro em casa, como também não havia pouco, havia dinheiro suficiente. Falava-se de ideias. Tanto o meu pai, como a minha mãe são pouco materialistas. Mas tem sido divertido e a Isabel, que tem mais esse espírito comercial, tem sido um óptimo complemento.

 

O seu percurso é errante. Mas a ideia da viagem e de identidade são constantes.

Ai sim. Este trabalho que estou a fazer agora é o trabalho onde a minha vida inteira veio dar. Aos 17 anos decidi que queria ser modista de chapéus. Sabia que existiam três ou quatro velhinhas que faziam chapéus de alta-costura e que era uma coisa que ia morrer em Portugal. E sabia que, se eu aprendesse, seria a única chapeleira de alta-costura a trabalhar. Portanto, tinha trabalho assegurado.

 

Mas porquê essa urgência em ter trabalho?

Sempre fui muito boa aluna a francês, a português, escrever era fácil demais para mim. E queria fazer uma coisa manual. Adoro trabalhos artesanais, coisas repetitivas, coser, por exemplo. A história dos chapéus: havia imensa coisa que me interessava. Por um lado, toda uma história. Por outro, um saber especialíssimo, são gerações e gerações que o vão transmitindo. Quando estava a acabar o liceu francês, trabalhei dois anos como modista de chapéus, com as duas últimas modistas de alta-costura que existiram em Lisboa.

 

Forma singular de rebelião juvenil. Disse que seria “a única pessoa que podia continuar aquilo”. Antes disso, que planos tinha para a vida?

O meu padrasto, com quem vivi desde os nove anos, é um coleccionador. Habituei-me a ir com ele às feiras e antiquários e comecei a estudar a história dos objectos. Queria ser arqueóloga, depois antiquária e acabei nos chapéus. Ainda apresentei chapéus nas Manobras de Maio! O que eu queria fazer era História de Arte e dedicar-me aos chapéus.

 

Foi O Independente que a fez mudar de vida.

Eu tinha 18 anos, na altura vivia aqui com o Jorge Colombo. O Jorge estava n’O Independente, o meu irmão [Paulo Portas] estava n’O Independente e eu passava o meu tempo livre todo lá. Até que um dia era preciso fazer não sei o quê, alguém disse “faz tu” e comecei a escrever. A partir daí tornou-se a coisa mais difícil do mundo...


Porquê difícil, se antes parecia demasiado fácil?

Uma coisa é o que se escreve na escola, outra é escrever para pessoas que não se conhece, ser-se pago por isso. Há um respeito e uma exigência muito diferentes. O que eu senti foi que, se ia ganhar a vida assim, era melhor sair dali; porque me sentia muito protegida. Fui para o Correio da Manhã Rádio, a seguir a [Maria] Elisa convidou-me para a Marie Claire. Tudo aquilo corria muito bem, ganhei uns prémios. Mas aos 25 anos decidi mudar a minha vida. E o que mudou a minha vida foi a Índia.

 

O que é que mudou?

Eu já tinha ido à Índia várias vezes, mas nessa altura estava a fazer o livro com a Inês [Gonçalves]. Vivemos vários meses em Goa e isso mudou a minha perspectiva sobre a vida e o que é que eu queria da vida. Interessava-me fazer uma carreira e passou a interessar-me ter tempo para olhar para o mundo. Fiz isto várias vezes na minha vida, atirar-me para o vazio. E muitas vezes para me atirar para uma coisa que não sabia o que era. Mas queria mudar. Embora tenha esta adoração pelos objectos da rotina, não tenho paciência nenhuma para a rotina, por mais confortável que seja ter um ordenado ao fim do mês.

 

Há uma parte da sua vida, sobretudo ligada às ideias e ao jornalismo, exposta mediaticamente, em que é bastante uma Portas...

A parte da exposição, nunca procurei, pelo contrário. Achava uma coisa horrível aparecer na televisão. Eu era muito, muito tímida, tinha aquela timidez que às vezes passa por arrogância... Mas não escolho o trabalho por expor ou não expor. Escolho o trabalho porque acho interessante fazê-lo. A exposição é uma consequência do meio em que se faz esse trabalho.

 

O facto de ser uma Portas, e de se esperar um bom desempenho de um Portas, condicionou a sua vida?

Os meus irmãos tornaram-se mais visíveis nos últimos anos, eu cresci com eles... Há duas figuras fundamentais para nós, um avô e um pai. O nosso pai é uma pessoa que adora pensar e comunicar o seu pensamento. Todos crescemos com isso, é natural que tenhamos essa matriz. Gosto imenso da minha família, mas podia ser esta, como podia ser outra. Ainda bem que foi esta porque gosto imenso das pessoas dela.

 

Se fosse uma chapeleira seria um bocadinho estranho, não?

Se calhar, mas nós todos gostámos sempre de fazer aquilo que não era suposto irmos fazer.

 

Há uma excentricidade permitida. Seria diferente se fosse o centro da sua vida. Improvável, pelo menos...

Já me chateou mais as pessoas virem falar e dizer coisas... Mas também já apanhei com isso na televisão, é um bocado indiferente. Gosto do semi-anonimato. Em relação aos meus irmãos, às vezes digo uma boutade sobre este projecto: ele prova que sou mais conservadora que o meu irmão Paulo e mais antiglobalização que o meu irmão Miguel. E na minha cabeça, no mesmo espírito de aleivosia com que digo isso sobre o Paulo e o Miguel, este projecto é uma espécie de Martha Stewart meets António Ferro. Tudo à luz do Eduardo Lourenço e do Bruce Chatwin.

 

Está sempre pronta a partir?

Odeio sentir-me amarrada, e isso vai desde o lado emocional ao lado profissional. Gosto imenso de ter liberdade, que é uma coisa que custa horrores. Às vezes em dinheiro, às vezes noutras coisas. Hoje em dia tenho mais vontade de estar em casa do que de viajar. Se me dizerem que há uma feira bestial não sei onde, vou a correr, mais depressa do que vou para Nova Iorque ver o MoMA pela terceira vez.

 

Mas é suposto que fique por casa quanto tempo?

Deixe-me lá parar um bocadinho neste sítio! Este projecto d’ A Casa Portuguesa, para mim, são pelo menos sete anos. Já passou um ano e meio, começou com as caixas, que são um meio para pagar uma pesquisa; essa pesquisa há-de ir dar a uma loja, à produção de vários objectos, a livros e a exposições. No fim disto, acabo sempre por pensar que gostava de fazer um documentário sobre o António Ferro. É uma personagem fascinante.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2006

O projecto A Casa Portuguesa veio a transformar-se, pouco depois da entrevista, em A Vida Portuguesa