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Anabela Mota Ribeiro

Clara Ferreira Alves (2000)

05.02.15

Clara Ferreira Alves nasceu em Lisboa. Assina uma coluna incontornável aos sábados portugueses chamada A Pluma Caprichosa. Fez a última entrevista ao O’Neill, além de ter feito outras memoráveis coisas. Ainda que o seu universo sejam as palavras e o recolhimento da escrita, participou em projectos televisivos. É mãe do João. Esperadamente, é avessa a falar da vida privada. É, contudo, bastante afável, apesar do tom quase seco ou metálico (depende) da sua voz.

 

Quando apresentava o Falatório, o Herman fez um sketch a que chamou Interrogatório e no qual surgia como uma temível jornalista que arrasava um pobre escritor. A paródia traduzia a imagem agressiva e autoritária que, grosso modo, as pessoas têm de si.

Os meus amigos não têm nada a ideia de que sou uma pessoa agressiva. Em televisão nunca fui assustadora. Pelo contrário, houve situações em que me apetecia responder ou levar o convidado para outro território e não o fiz deliberadamente. Nunca fiz aquele interrogatório do Shakespeare, «Quem é Shakespeare?». Mas talvez algumas pessoas se sintam intimidadas por mim, não sei...

 

Que tipo de pessoas se deixam intimidar por si?

O tipo de pessoas que se deixam intimidar. Confesso que não pertenço a esse tipo de pessoas. Não me deixo intimidar por ninguém com facilidade.

 

Não tenho ideia alguma das suas partes mais frágeis e inseguras, susceptíveis de serem intimidadas.

Há muitos territórios. Nos mais íntimos as pessoas assustam-se com as mesmas coisas: com o sofrimento, com a infelicidade, a própria ou a de alguém próximo; até se assustam com o desconcerto do mundo, às vezes. Sou completamente insensível a alguém que tenta intimidar-me porque tem poder ou dinheiro ou conhecimento.

 

Na capacidade para afrontar os outros ou resistir à intimidação, a auto-estima é um ponto chave. Quer dizer, se a pessoa se tem em muito boa conta mais dificilmente se atemoriza.

Não sei se o problema está tanto na auto-estima, toda a gente tem desfalecimentos na auto-estima. Mas esse é um negócio que tenho comigo mesma, só depende de mim e do meu trabalho. Quando considero que não é suficientemente bom, ou que não consegui, aí a minha auto-estima balança.

 

Tem crises dessas?

Ah, toda a gente tem crises dessas, e quem escreve, então... Mas uma coisa é a relação que tenho comigo mesma e as vacilações que isso me dá, outra coisa é a relação que tenho com as outras pessoas. A minha suposta agressividade não resulta da ausência absoluta de medo ou da incapacidade de me assustar com o que quer que seja. Resulta do facto de não ter uma grande tolerância para um certo tipo de pessoas.

 

Para a mediocridade?

Sobretudo a presumida. Nunca sei muito bem como vou reagir; sou capaz de voltar as costas, também sou capaz de gritar. Há pessoas insuportáveis que estão convencidas que os outros lhes devem uma vénia. Normalmente têm uma qualquer qualidade que lhes foi atribuída externamente, mas que não lhes confere um particular mérito. Não é a estupidez que me incomoda. A estupidez não é uma categoria mensurável, não se pode dizer de uma pessoa que ela é estúpida porque é menos instruída ou porque não sabe quem é Shakespeare, como no tal Interrogatório. Trata-se daquela imbecilidade que dá ordens e que opina forte sem ter nenhuma espécie de suporte.

 

No seu círculo há pessoas menos instruídas ou dotadas intelectualmente?

Podem ser. Estas pessoas imbecis podem até ser dotadas intelectualmente.

 

Claro. Mas eu pensava num outro plano e como, no caso de serem menos dotadas, a comunicação se iria estabelecer.

Estabelece-se todos os dias. Nem há da minha parte uma aferição se as pessoas têm os mesmos dotes ou leram os mesmos livros. Há pessoas com as quais me entendo imediatamente e outras que podem ser muito consideradas intelectualmente e que têm essa imbecilidade militante, que até pode nem ter nada a ver comigo, mas que observo. Uma das razões porque escrevo é porque observo. Posso estar a cortar o cabelo e a observar comportamentos. Há um filme do Cukor chamado «Mulheres» que tem uma cena de cabeleireiro genial. Às vezes vejo mulheres que têm muito dinheiro, ou cujos maridos têm muito dinheiro, portarem-se de uma forma tão imbecil e ordinária com alguém que está a arranjar a unha do pé ou a limar a unha da mão, que me faz ter um absoluto horror a esse tipo de gente, a essa autoridade fundamentada em nada.

 

É quase uma improbabilidade pensar em si no cabeleireiro com a cabeça envolvida em pratas.

As mulheres todas juntas têm imensa piada!

 

Envolve-se nas conversas ou distancia-se no reduto da observação?

Não converso com as outras senhoras, posso conversar com a pessoa que está a arranjar-me o cabelo. Os cabeleireiros das mulheres são como os barbeiros dos homens: são lugares de conversa. Mas gosto sobretudo de observar.

 

Tem alguma grande amiga mulher?

Sim, claro. Talvez tenha mais amigos homens, mas tenho amizades e cumplicidades femininas.

 

A cumplicidade é alicerçada nesse universo de cabelos e roupas?

Sim, as mulheres falam todas da mesma coisa, não é? Não estão a discutir Kant nem Sartre nem o último livro da Simone de Beauvoir! As mulheres riem-se umas com as outras e discutem os namorados, as compras, as dietas, a côr do cabelo, o envelhecimento. Há um livro muito engraçado, «O Diário de Bridget Jones»; a autora, Helen Felding, diz que escreveu o seu primeiro romance sobre uma mulher que dirigia um campo de refugiados no Sudão e vendeu três exemplares. Escreveu um sobre uma jornalista medíocre e frustrada que está sempre a contar os cigarros e o álcool e vendeu milhões. Porquê? Porque evidentemente ninguém está interessado na história da Marie Curie! E os homens também se riem. O próprio Salman Rushdie diz que se riu imenso com o livro.

 

No livro «Ponto pé de flor» da Clara Pinto Correia fala-se de ceras depilatórias e de tintas de cabelo e a sua crítica foi cáustica.

Fui irónica. O livro não tinha graça. Provavelmente era uma escrita muito bordada, muito lavor feminino – já não me lembro bem porque foi há imensos anos. A Tereza Coelho também não gostou e a Clara Pinto Correia, não sei se foi a mim se foi à Tereza Coelho, respondeu dizendo que não percebia porque é que dizia aquelas coisas do livro uma vez que tinha mudado de cor de cabelo 30 vezes! [riso] Isso já tem piada, por exemplo!

 

Acha graça se mantiver essa tal distância aristocrática.

Não tenho nada, não tenho distância aristocrática nenhuma. O Eduardo Prado Coelho chamava a isso Escrita de Soquettes, creio eu, ou era a ela ou à Inês Pedrosa. Provavelmente ninguém se lembra que o EPC disse aquilo e toda a gente se lembra do que eu disse.

 

O que persiste pelos anos fora é o fait divers.

É sempre o fait divers. Quem é que se lembra da minha crítica sobre o Henry James? As pessoas gostam é da anedota, e eu também.

 

O fenómeno mais recente da literatura portuguesa é o da Margarida Rebelo Pinto. O seu universo corresponde a esse tradicional feminino.

Nunca li. Em todos os países existem pessoas que escrevem aquele estilo supostamente frívolo. Não percebo porque é que em Portugal isso causa um tal espanto, que é, enfim, também uma maneira de vender o livro. As audiências very light, que não gostam de ser chateadas com coisas muito complicadas, sempre existiram. Os jovens são uma audiência very light; num mundo saturado pelo audiovisual, é pouco provável que lhes apeteça Proust e Joyce e Kafka.

 

Quando é que teve apetência por esses autores? Há uns anos os meninos liam livros espessos nas férias grandes sem terem maturidade para entender o que lá estava.

Sempre li antes do tempo. Ia por intuição. Praticamente não leio autores do meu tempo. A partir de certa idade percebe-se que o tempo é muito curto. Tenho muitos livros aos quais quero regressar. Uma das razões porque deixei de fazer crítica literária é porque há um número finito de coisas que posso dizer sobre um autor. Posso escrever duas vezes sobre o Garcia Márquez; à quinta vez já não tenho nada para dizer. E há coisas que não leio, simplesmente. Quando digo que não leio a Margarida Rebelo Pinto, também não leio outros. Leio quando admiro o autor, e faço isso com três ou quatro pessoas. A minha curiosidade não é suscitada por livros publicados em Portugal. Sou uma anglo-saxónica. Leio quase tudo em inglês e abasteço-me na Amazon. Quando era criança adorava ir à Feira do Livro, era o momento alto do meu ano. Hoje vou à feira do Livro e não tenho nada para comprar.

 

A sua relação com o Cardoso Pires era muito próxima. Imagino que tenha sentido muito a sua morte.

Talvez o maior amigo de todos os escritores fosse o Zé Cardoso Pires. É uma amizade que me faz muita falta.

 

Os escritores entre si não falam de literatura, não é verdade?

As pessoas não falam de literatura. Assim que se apanham juntas num jantar falam é da vida. A vida é mais interessante, apesar de tudo. Fala-se do que se fez anteontem, contam-se anedotas. Os escritores normalmente nem lêem outros escritores, a não ser quando vão lá vigiar, ou quando há uma relação de amizade. Exceptuando isso, vivem fechados no seu mundo interior. Escrever é uma actividade horrível. Demora muitas horas a apurar, ao contrário do jornalismo.

 

Não parece que as suas crónicas sejam escritas numa hora.

Não são, apesar de ter ganho aí uma velocidade de cruzeiro, digamos assim. Mas escrever um livro é um trabalho que nos separa totalmente da vida. Senta-se de manhã ao computador, está o dia inteiro a escrever, o mundo deu duas voltas, passaram-se imensas coisas: gente foi raptada, um avião caiu, dois namorados desceram a rua. Milhares de coisas se passaram no mundo, mas esteve todo o tempo dentro de um mundo criado por si. É uma coisa completamente autista, fechada ao mundo externo: não pode ter interrupções, conversas ao telefone

 

É por tudo isso que ainda não conseguiu escrever o seu romance?

Nem consegui ainda reunir as crónicas para publicar! O romance? Tenho uma espécie de handicap relativamente à publicação, vou refazendo tudo até ao fim. Mas trata-se sobretudo de falta de tempo. Eu devia, se pudesse, mas não posso, abandonar rapidamente o jornalismo e não fazer mais nada senão escrever. Mas isso é extremamente difícil, porque toda a gente precisa de ganhar dinheiro. E também porque teria de prescindir de viver para escrever, o que me maça. Gosto de viajar e de estar com pessoas e de ver exposições. Não gosto muito de vida social, e em Lisboa não faço nenhuma, mas gosto muito de perder tempo com outras coisas.

 

Quantas vezes começou o seu romance?

Diversas vezes. Mas escrevia horrivelmente ao princípio, ainda bem que nunca publiquei! Já teria para aí três maus romances dos quais me envergonharia! Sim, sim! Só agora é que começo a ver com alguma nitidez como é que escrevo. Escrevia com muitos adjectivos!, era uma amálgama de coisas que tinham coerência interna mas que não tinham importância narrativa. Há pessoas que tem muito talento aos 30 anos e escrevem romances geniais. Não há muitas... Estou muito grata a mim mesma por não me ter precipitado. Um era um verdadeiro horror!, começava no cemitério!...

 

Eram sobre quê?

Sobre nada. Eram ficção, repassada de uma autobiografia e de influências. E depois o jornalismo dá vícios de escrita terríveis. A minha pasta no Expresso é um monstro! Se fosse reunir, como fazem os ingleses, um volume de crítica literária, um volume de jornalismo, um volume de não sei quê, já tinha sete ou oito livros escritos. Aviava prosa a uma velocidade tal, e nos intervalos ia escrever umas narrativas profundamente débeis que tive a decência de nunca publicar.

 

Mostrou a pessoas próximas?

Não, não mostro nada a ninguém. Depois de publicada [a crónica], a única coisa que faço é ver se não tem gralhas, e normalmente tem; ou gralhas que se fazem porque se estava distraído ou gralhas que aparecem nos jornais. Deixam-me absolutamente doente. Por mim, escrevia-as e ia trabalhando o resto do tempo e já nem as publicava.

 

Tem a noção de que inevitavelmente vai escrever e publicar?

Inevitavelmente.

 

O facto de ter sido mãe adiou o seu projecto?

Absolutamente. Nos primeiros anos de vida, até a criança ter uma autonomia e o seu próprio mundo, não há hipótese de fazer as duas coisas. Quando se fala da Silvia Plath; é evidente que era uma personalidade depressiva e auto-destrutiva. Mas imagino, quando o Ted Hughes a abandonou, ainda por cima por outra mulher!, imagino o horror, com os filhos, sozinha, a tentar escrever. A maioria das escritoras não tem muitos filhos, a Duras, a Yourcenar, a Virginia Woolf. Não vê escritoras como o Tolstoi com uma filharada. Os homens são muito espertos. Têm normalmente uma mulher extraordinária que lhes organiza a vida e sem a qual o génio não teria existido. Porque a vida é muito complicada. O Martin Amis dizia que não era capaz sequer de passar um cheque; saía de casa, ia para um apartamento escrever, depois voltava a casa. Se olhar para a história da literatura, não vê nenhum homem a fazer esse papel que a mulher do escritor tem feito.

 

Há entre nós o caso raro da Agustina. O marido ocupa-se dos manuscritos.

A Agustina é uma mulher genial! É das mulheres mais inteligentes que conheço, é extraordinária no verdadeiro sentido do termo.

 

Em que é que mudou a sua vida com a maternidade?

Fui mãe com 37 anos. Em que é que mudou? Mudou tudo. As rotinas, a restrição da liberdade.

 

Numa crónica falava de uma experiência arriscada no Peru e de outras reportagens de guerra que fez nos anos 80. Pergunto-me se as faria igualmente, insistindo na imprudência.

Foi uma idiotice! O fotógrafo já se tinha vindo embora, e eu não disse a ninguém, a não ser ao Joaquim Vieira que era o editor da Revista, que ia para Ayacucho. Aquilo era o centro do Sendero [Luminoso]. Arranjei um avião e fui. Foi uma situação em que poderia ter sido morta, fiquei três dias fechada numa igreja. Lembro-me que tinha medo que me cortassem as mãos, tinha aparecido o cadáver de um jornalista a quem tinham cortado as mãos. Foi uma daquelas parvoíces que hoje não faria.

 

Em Portugal quase não se faz reportagem de guerra.

Apareceu um caso interessante, o Pedro Rosa Mendes, que começou a fazer um trabalho excelente sobre a guerra em Angola. Eu, genuinamente, é a única coisa que gosto de fazer em jornalismo. É por isso que odeio o herói óbvio, o tipo que pensa que por ser entrevistado na televisão é importante. Tenho admiração pela gente vulgar que mantém em situações de extrema violência, de extrema dificuldade, uma coragem e dignidade, e que recomeça a vida todos os dias. Passei muito tempo, por exemplo, com os palestinianos no fim da guerra do Golfo. Conheci um que tinha estado preso e sido torturado; estava sob prisão domiciliária. Nada naquele homem o tinha definido à partida como herói. E no entanto, era uma pessoa com uma coragem física e moral!, percebe, o tipo de pessoa que dá depois um Nelson Mandela. São pessoas a quem pode fazer tudo: são torturadas, são presas, voltam a ser torturadas, e isso não muda um idealismo, uma convicção na justeza das razões da causa! Conheci gente dessa também no Peru, com um nível de pobreza... Só quando se vai ao Terceiro Mundo...

 

É um embate, não é?

Toda a gente aqui se deprime porque há muito trânsito e muitos buracos em Lisboa e porque a vida é muito agressiva. Não se imagina o que é viver no Terceiro Mundo. Assistir à concentração de miséria e violência que há numa favela em Lima ou no Rio de Janeiro ou na Índia muda a cabeça. Como muda a cabeça ver alguém levar um tiro. Vi um miúdo de nove anos a levar um tiro. Nunca mais se é a mesma pessoa a partir daquele momento.

 

Qual é a primeira reacção?

A sensação que se tem de é incredulidade. Ver uma criança que está viva e depois vê-la cair, é uma experiência terminal. Os grandes fotógrafos de guerra não podem já voltar à vida normal. A absoluta indecência que é haver tanta gente a viver daquela maneira...

 

Falávamos do que mudou na sua vida depois da chegada de uma criança.

As pessoas ficam mais macias, mais pacientes. Reaprende-se uma certa inocência. Rearranja-se toda a lista de prioridades. Arranja-se tempo.

 

Porque é que teve a criança?

Bom, não gosto muito de falar disso, já entra por terrenos da minha vida privada. Foi uma coisa inesperada que mudou, de facto, a minha vida. Não se tratou de «Agora tenho 37 anos e preciso de ter um filho porque estou a envelhecer». Mas uma criança, veja o que aconteceu a uma mulher como a Madonna.

 

Admira a Madonna?

Acho imensa piada. Certamente ela não é a mesma depois de ter aquela criança.

 

Houve um tempo, nos anos 80, quando integrava a equipa maravilha do Expresso, que a sua vida era mundana.

Sim, todos nós éramos muito mundanos! Passámos os anos 80 fora de casa e a viver de noite.

 

Como olha para esse tempo e para essa equipa? É a única que permanece no Expresso.

Foi um momento prodigiosamente divertido! Havia um grupo à volta da revista e da personagem que era o Vicente Jorge Silva. São fenómenos um bocado irrepetíveis. As pessoas envelhecem, casam, descasam-se, têm filhos, vão para o estrangeiro. As vidas das pessoas mudaram. Enquanto durou, foi um período extraordinário.

 

Era a única mulher do grupo?

Da mesma faixa etária, com mais preponderância, talvez fosse a única mulher, sim. Também éramos muito poucos, até nos chamavam o Grupo dos Quatro. Éramos meia dúzia de gatos pingados e fazíamos aquilo sozinhos. Se duas pessoas não trabalhassem nessa semana, paravam a Revista. Trabalhávamos que nos matávamos. Discutíamos terrivelmente uns com os outros: livros, filmes, exposições, viagens. Havia rivalidades porque há sempre, mas tudo era feito com uma grande intensidade. Depois as pessoas vão fazer outras coisas.

 

Porque é que nunca saiu do Expresso?

As pessoas que saíram foram fazer jornais ou projectos delas. O Miguel [Esteves Cardoso] saiu para fundar O Independente, o Vicente [Jorge Silva] foi fazer o Público e levou uma parte grande da equipa. Tive uma experiência como editora, e não tenho nenhuma vocação. Rouba muito tempo. As pessoas que vão fazer projectos próprios não querem ser poetas nem romancista, são jornalistas que gostam de editar. A certa altura fiquei muito assustada porque não conseguia ter tempo para ler, não conseguia já escrever. Não tenho nada esse espírito empreendedor de ir fundar coisas. Pondo a metáfora nas artes plásticas, posso participar numa colectiva, mas o meu trabalho é profundamente individual e feito em solidão. Tenho hoje uma enorme dificuldade em escrever numa sala em que esteja outra pessoa; uma redacção já é difícil para mim.

 

Chega a ir ao Expresso ou manda tudo por email?

Chego a ir, evidentemente, mas não estou lá em permanência. Nós vivíamos no Expresso, a casa era o jornal. Houve uma altura em que havia um chuveiro! Há uma parte no projecto jornalístico que é este. Quando começa um grande projecto, vive lá, acampa, não há outra maneira de fazer as coisas senão viver dentro do jornal e em comunidade.

 

Esta forma de vida, romântica, era a que imaginava quando era menina?

A única coisa que gosto de fazer é ler e escrever, desde sempre. É o único projecto de vida que tenho. Se não publicar livro nenhum, isso não me assusta particularmente. Se conseguir fazer uma coisa bem feita, mesmo que nunca veja a luz do dia, mas de que goste, esse é o meu projecto de vida.

 

Porque escolheu Direito? Seria mais previsível que fosse para Letras.

Havia dois cursos interessantes para mim, Direito e Medicina. Tenho muitos amigos médicos, que é uma coisa curiosa. Mas tinha horror à matemática. Letras não me atraía porque na altura era Histórico-Filosóficas, em que não se aprendia nem História nem Filosofia. Direito tinha uma boa capacidade de abstracção, uma certa aridez que era atraente. Havia uma parte relativa à encenação de tribunal e achava alguma carga dramática nisso. Uma idiotice! Não conheci nenhum professor interessante, manduquei as sebentas umas atrás das outras, cheguei a fazer cadeiras marrando uma sebenta uma noite!

 

Como é que chega ao jornalismo?

A advocacia não me interessava nada. Vou parar ao jornalismo assim de um dia para o outro. Quem me convida para escrever na Tarde foi o Nuno Rocha, e depois vou para o Correio da Manhã, um tablóide. Depois então é que tive a experiência política no gabinete de imprensa do Mário Soares. Tenho uma grande curiosidade acerca de outros trabalhos. O próprio jornalismo ao fim de certa altura é muito repetitivo. Apeteceu-me ver uma campanha eleitoral do outro lado.

 

Uma opção que os fundamentalistas não vêem com bons olhos.

As pessoas têm ideias muito restritas sobre isso.

 

Além da inteligência analítica de que falávamos no início da entrevista, parece habitá-la um romantismo.

Ah, sou uma romântica, posso não parecer. A escrita ainda é um lugar romântico. As pessoas que resolvem escrever, que é uma coisa tão mal paga, tão ingrata...

 

Tinha a ideia de que o seu estatuto era particular em relação ao grosso do jornalismo português.

Repare quanto é que ganha o meu dentista e quanto é que eu ganho! Quanto ganha um advogado e quanto ganha um jornalista por mais bem pago que seja. Quanto é que ganha um administrador?!, que é um dos trabalhos mais vagos do mundo. Quando o Saramago ganhou o Nobel toda a gente estava preocupada com o dinheiro; sendo o maior prémio do mundo e sendo algum dinheiro, por comparação com qualquer fortuna ganha por um ricaço que faz especulação no mercado bolsista, é ridículo.

 

É possível ganhar muito dinheiro com os livros?

Creio que há dois escritores em Portugal que ganham muito dinheiro por causa das traduções e do que vendem lá fora, o José Saramago e o António Lobo Antunes. Vê grandes milionários a escrever livros? Mesmo em França. Em Inglaterra já há quem ganhe, porque recebem avanços. A escrita é muito mal remunerada. Por comparação com o que ganha um apresentador de televisão? É obsceno! O que você ganha para dizer «Boa Noite, Patati Patata»!, que não dá assim muito trabalho, o que dá é a cara, que é uma chatice. É obscenamente bem pago! Porque é que o entretenimento há-de ser tão bem pago e a escrita não há-de ser bem paga?

 

Concordo absolutamente. Quando acedeu em fazer televisão foi pelo dinheiro?

Sem dúvida nenhuma. Admitindo que houve coisas que me deram imenso prazer. Mas tenho horror a ser fotografada, a aparecer. Nunca vi um programa meu.

 

Como é que lida com a sua imagem?

Nem mal nem bem, é-me indiferente.

 

O que é que a levou a aceitar esta entrevista? Só me lembro de a ter visto numa produção antiga, com o seu filho bebé, para a Marie Claire.

Normalmente não dou e digo logo que não. Mas há sempre alguém que me convence. Para a Marie Claire foi a Inês Pedrosa. O trabalho de exposição incomoda-me terrivelmente.

 

Expõe-se bastante nas suas crónicas.

Mas não apareço. E não me exponho muito. É a mesma coisa que dizer que um escritor se expõe naquilo que escreve.

 

As pessoas acusam-na de ser egocêntrica.

Não há ninguém que escreva que não seja, não há outra maneira. Só tem um lugar para ir buscar tudo aquilo que deita cá para fora, que é você mesma. A escrita são sempre ficções. Esta história do jornalismo objectivo é uma parvoíce. A partir do momento em que a realidade está a ser descrita, ela já está a ser ficcionada, filtrada pelos seus sentidos. Mas há momentos em que a troca de opiniões é boa, é rica. Uma pessoa que vem ter comigo na rua e me diz uma coisa, (acontece-me quase todos os dias), às vezes é quase comovente, palavra de honra. Por outro lado, no meio, como em todos os meios, há invejas e complexos de inferioridade, que me deixam completamente indiferente. Só me interessa o juízo dos pares que eu respeito e com os quais me dou pessoalmente.

 

Como reage quando essas pessoas não gostam?

Fico inquieta, fico bastante inquieta. Na televisão, por exemplo, houve programas atrozes, em que estava murcha; se alguém me diz isso, tomo atenção, porque é uma pessoa cuja opinião tenho em conta. Meio jornalístico? Depois desse período glorioso do Expresso, depois desse grupo que se separou, nunca mais tive grupo. Mesmo essa gente, vemo-nos muito pouco.

 

É interessante pensar no que sobrevive no tempo.

Nessa fase você absorve tudo, aprende tudo, experimenta tudo. Depois começa a elaborar essa experiência autonomamente. É o período da vida e o período da escrita. Nesse período, o jornalismo, além de ser uma profissão profundamente romântica, possibilitou-me viajar pelo mundo inteiro, conhecer pessoas interessantíssimas, que admirava e que entrevistei. O Expresso dava liberdade e meios, enfim, muito menos que hoje, mas dava os meios para as pessoas poderem fazer certas coisas. Se me tivesse fechado aos vinte e tal anos a escrever, hoje tinha três ou quatro livros de moda, idiotas, e tinha desaparecido. Nem teria aprendido nada, nem teria treinado a mão. Para muita gente que escreve, o jornalismo é uma fase.

 

Na altura do Nobel escreveu que o Saramago a tinha aconselhado a abandonar o jornalismo e a concentrar-se na escrita.

Ainda há pouco tempo a Pilar me voltou a dizer isso.

 

O que pensei foi que precisava desta aprovação, deste reforço de pessoas que ganham o Nobel.

Não é uma aprovação, é um gesto de amizade. Elas já não me reforçam. O que me dizem, pelo contrário, é que me estou a desperdiçar, a perder o melhor de mim. Mas se recebesse agora uma herança de um tio da América, dava-me imenso jeito!

 

A incontornável questão...

As pessoas acham que o modo como escrevo não é já jornalístico. Nunca fiz jornalismo em moldes tradicionais. O que fazia, nem era bem novo jornalismo, mas eram experimentações dentro do género. Evidentemente sem falsear os factos, a prosa jornalística pode oferecer a possibilidade de uma certa criação, que acho fascinante. Não conseguiria escrever de outra forma. Eu não sou jornalista, não sou escritora, não tenho uma categoria precisa. A minha versatilidade nas crónicas é enorme. Sou um bocado maverick.

 

A primeira palavra que me ocorre para aplicar à sua escrita é água.

Porque corre? Se quiser vejo-a mais como um trabalho de quem está a fazer um tapete, simultaneamente preocupado o lado mecânico (manual ou do tear) e o lado artístico (a escolha das cores, o desenho). Seria como fazer um tapete de cerzidura complicada, com pontos diferentes, em que estou preocupada não com uma mas com várias coisas ao mesmo tempo, e sobretudo com o efeito final. Não é muito diferente da composição musical. Tem um número finito de palavras, são sempre as mesmas palavras – como dizia o mau compositor, «Não percebo porque dizem que sou mau, porque eu componho com as mesmas notas com que Beethoven compôs!». O modo como vou repartindo as palavras, e aí tenho alguma preocupação que a escrita escorra e corra, que tenha um sentido. Vou ouvindo a música, e nem sempre se ouve a música.

  

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2000