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Anabela Mota Ribeiro

Clara Ferreira Alves

06.09.20

Clara Ferreira Alves, “como toda a gente sabe”, vende opiniões. As suas opiniões são lidas, comentadas, elogiadas, vilipendiadas. Tem seguidores e detractores como todas as figuras carismáticas. Formou-se em Direito, é colunista do Expresso e comentadora do programa da SIC Notícias Eixo do Mal. Foi directora da Casa Fernando Pessoa. O livro “Estado de Guerra” reúne textos escritos nos últimos dez anos. Portugal e os seus protagonistas, o mundo, as palavras, estão no centro do livro e da entrevista. (Pergunta que se antecipa: Cunhal traduziu Shakespeare na cadeia; e Relvas, que faria se estivesse preso?)

O que a irrita? A mediocridade empolgada, que refulge. O tipo expeditivo que se ocupa do vai e vem. Aquele que tem sempre presente que uma mão lava a outra.  O que a apaixona? O estoicismo do português que paga as contas e educa os filhos. O heroísmo em acção, numa fronteira da Síria. Ver a História a acontecer.

 

Cita Eça de Queiroz n’ “A Cidade e as Serras”. Jacinto regressa a Portugal. “Então é Portugal, hem?... Cheira bem.” E o outro: “Está claro que cheira bem, animal!”. Isto parece sintetizar a sua relação com o país. Não consegue destituir dela a acrimónia, a zanga...

Mas é também boa e amorosa. Tenho uma relação dupla com o país. Não é uma originalidade minha. Está no Alexandre O’Neill, no Eça, no Jorge de Sena. Há dias em que tenho um desespero bruto com a pátria. E acho que somos uma espécie de hamster. Dez milhões de hamsters numa gaiola. Sobretudo agora. Sendo a gaiola, não a Europa, mas a pobreza. Todos na rodinha.

 

Quem é que põe a rodinha a girar?

A nossa falta de independência económica e financeira gera a pobreza, a irrelevância. O que é especialmente difícil de aceitar num país que teve um império. Estamos numa zona pós-imperial e pós-colonial. Tivemos sonhos de grandeza. Temos vestígios desses sonhos de grandeza. Ainda não percebemos que somos desesperadamente pobres.

 

Em todo o caso, pobretes mas alegretes.

O alegrete já não é propriamente alegre. Há um estoicismo. Há pessoas que estão numa situação dificílima. Mas gostamos de fazer humor sobre a tragédia. (Horas depois do acidente de Camarate, já circulavam anedotas. E a morte de Sá Carneiro afectou o país, houve uma viuvez nacional.) Há qualquer coisa que cheira bem, animal. Gostamos muito de dizer mal uns dos outros, dos portugueses e de Portugal. Detestamos que alguém diga mal de nós. Os israelitas também são assim.

 

É um espírito de comunidade, de família?

Não sei bem. É um povo estranho. Tem reacções antagónicas aos acontecimentos que definem a sua vida. Grande adaptabilidade. É o Oliveira da Figueira a vender radiadores no deserto [personagem da banda desenhada Tintim, português, comerciante]. Conseguimos sobreviver a tudo. Arranjámos uma narrativa nacional: “Isto é terrível, mas”. Pomos a adversativa.

 

Somos safos pelos “mas”.

A palavra é “safar”. Vamos safar-nos. Nada acaba. Nada é definitivo. Quando os Templários acabaram na Europa toda, aqui não acabaram.

 

É um traço do nosso sentimentalismo, a dificuldade em pôr o ponto final?

É uma dificuldade em dar o nó. Em ser pragmático no que respeita a decisões radicais. A nossa relação imperial, sobretudo com o Oriente, visível em Macau, [revela isso]. (Os ingleses colidiram frontalmente com os chineses. Os ingleses, aliás, não tiveram nenhuma empatia com os povos que colonizaram. Não houve miscigenação. Ninguém fez o que nós fizemos. Adaptarmo-nos aos sítios, fazer filhos mestiços.) Macau foi o último território a ser entregue à China – por alguma razão. E amavelmente. Houve um único governador em Macau que enfrentou os chineses, [João Maria] Ferreira do Amaral. Foi decapitado. Nós não gostamos nada de ser decapitados. E achamos que é uma perda de tempo. O melhor é ir negociando. Somos óptimos negociadores. E comerciantes. A história do império é levar e trazer. Construímos igrejas, e levámos e trouxemos, não arranjando muitos sarilhos.

 

É um modo de ser particular.

Talvez explicável pela geografia. Estamos aqui neste rectângulo. Que é um cais. O Atlântico de um lado e o inimigo espanhol do outro. O impulso da caravela, e, mais tarde, da emigração (que agora se está a repetir), é um impulso de fuga mas também de sobrevivência. O grande problema português é que precisamos de uma elite. De uma geração de Aviz, e de uma mistura com sangue inglês, que deu muito bom resultado.

 

O elite representa o quê?

A visão. O D. João II.

 

O nosso desespero, de momento, acontece também por não termos farol?

Porque não há elite. Percebi isso quando Cavaco ganhou as eleições. As primeiras [legislativas, 1985]. Nunca acreditei no cavaquismo. Pensei: “Estamos perdidos”.

 

Antes de falarmos de Cavaco, continuemos a falar das elites. Uma das crónicas mais polémicas é aquela em que diz: “Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente.”

Sobre o actual Governo.     

 

Nessa crónica, “É a cultura, estúpido”, põe na mesma frase Relvas, “posando nas fotografias ao lado da bandeira”, e Cunhal, que traduziu Shakespeare aos 80 anos, quase cego.

Que não traduziu aos 80. Os blogues de direita caíram-me em cima e chamaram-me ignorante. Aproveito para esclarecer: Cunhal começou a traduzir o “Rei Lear” na prisão, onde não tinha nenhuma hipótese de traduzir o Lear decentemente. Quando tinha 80 anos, meio cego – disse-me isto numa entrevista – tomou a decisão de fazer a tradução completa do livro. Aquilo que na juventude era uma atracção, e na prisão uma forma de se manter vivo, aos 80 anos tornou-se um projecto consequente. É extraordinário.

 

O que é que Relvas traduziria na prisão? Ou: o que é que Relvas faria na prisão? Exercício especulativo.

Consigo ter uma ideia... O que é que ele venderia entre prisioneiros. Ia para uma cela e dizia: “Pá, queres que te escreva umas cartas para a família? Uns parentes emigrados na Venezuela. Eu falo espanhol, pá. Se tu me deres um maço de cigarros eu escrevo quatro quartas em espanhol.” Ia traficando. O Relvas é um tipo que já existia no tempo das caravelas. Um expeditivo, um facilitador, é o vai e vem. De uma enorme eficácia. O pior é que esta gente é intermediária dos intermediários dos intermediários. Quando se lhes dá poder, e um poder grande, transformam-se em tiranetes. Neste Governo, Relvas é alguém que tem muito poder. Houve uma altura em que toda a gente dizia que tinha mais poder do que o Primeiro Ministro. Provavelmente tinha.

 

Deixou de ter porque caiu em desgraça?

Não, não. Não deixou de ter poder coisíssima nenhuma. Resiste a tudo.

 

O que é uma prova do seu poder?

É um tipo com grande dedicação ao trabalho da auto-preservação. Com uma óbvia inteligência pragmática. Não é culto, nada disso. Mas presume. Tem um complexo de inferioridade.

 

Patente na frase: “Norteio a minha vida pela simplicidade da procura do conhecimento”?

Como é que Portugal se vinga destes tipos? Vexando-os. Ninguém foi mais vexado do que Relvas.

 

Sócrates, que foi o político mais odiado das últimas décadas, não foi vexado desta maneira. É um sentimento diferente aquele que suscitou.

Houve momentos em que foi vexado. Acontece que, ao contrário do Relvas, Sócrates não é uma caricatura. Teve muitos defeitos, tem muitos defeitos, mas há nele qualquer coisa que não é redutível a um boneco. A um cromo. Pode ser odioso, um vigarista, um grande líder, o que quiserem. Não é uma anedota. O Relvas tornou-se parte do anedotário nacional. Mas foi muito mais odiado do que o Relvas. E mais perigoso.

 

Porquê?

O Partido Socialista, a seguir a Mário Soares, teve um grande problema em encontrar líderes com capacidade de decisão. Voltamos ao início, ao problema português de dizer “sim” ou “não”, em vez de “talvez”. Teve uma série de líderes “talvez”. Diplomatas. Inteligentes. Civilizados. Vítor Constâncio, Jorge Sampaio, António Guterres.

 

Alunos brilhantes.

Incrivelmente bem preparados. Mas não eram taxativos. O primeiro líder taxativo que aparece no PS em muito tempo chama-se José Sócrates. Para o bom e para o mau.

 

Levou com o epíteto de autoritário.

Imediatamente. É uma tradição que em Portugal é muito mal vista. Na América as pessoas são pão pão, queijo queijo. Os americanos não aguentam o nem carne nem peixe. A hesitação é terrível.

 

A gente vai levando, como se diz na canção escrita por Chico Buarque.

Vai levando. “Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim”, o hino da Mocidade Portuguesa. No caso, pelo Salazar.

 

A canção de Chico é a propósito do Brasil. Mas pode dizer-se o mesmo de Portugal. Onde tudo se passa no gerúndio.

Um bocado. Não há nem pretérito nem futuro. É mais o condicional e o gerúndio. Fez? Não. Faz? Não. Está fazendo.

 

Retomemos a tópico das elites, de que começámos por falar falando de Cunhal e de Relvas. Como compreender que esta gente muitíssimo bem preparada gore expectativas, não chegue ao poder, não faça a grande diferença?

Temos tendência a manter no poder gente [que está] manifestamente contra nós. Que consegue um unanimismo em torno da mediocridade.

 

Vai falar de Cavaco, a seguir? As suas crónicas frequentemente vão dar ao cavaquismo quando fala de mediocridade.

Cavaco é uma metáfora disto tudo. Mas é visível noutros sectores. As coisas verdadeiramente notáveis que foram feitas por portugueses, ou foram feitas por portugueses fora de Portugal, ou foram feitas por portugueses dentro de Portugal que permanecem anónimos, ou são feitas por portugueses contra Portugal. Quando se tem o apoio da comunidade normalmente é um péssimo sinal.

 

É sinal de uma certa mediania ou mediocridade. Não se é uma ameaça. É isso?

É. Normalmente há um apoio que vem da comunidade depois da consagração no estrangeiro. Há então um servilismo. Todos os velhos inimigos se tornam amigos no dia seguinte. Oportunismo. Vil. Uma falta de espinha confrangedora. O Saramago tinha gente que dizia horrores dele antes de ganhar o Nobel e que depois do Nobel estava compungida em sinal de grande amizade. Prefiro aqueles que sempre disseram: “Isto é muito mau”. Há uma coerência. Vi pessoas fazer isso. Pessoas que hoje são importantes na cultura portuguesa. 

 

Onde estão os nossos heróis?

Temos muitos heróis. Não sabemos é da existência deles. Cientistas. Jovens. Empresários. Jovens empresários. Temos pessoas admiráveis que todos os dias se levantam às cinco da manhã, vão para emprego, pagam os impostos, pagam a renda de casa, educam os filhos, com 1000 euros de salário, 600, 750. Quando Passos Coelho fala de estoicismo... não vejo que haja naquele Governo nada de estóico. Mas o dia a dia das pessoas que estão a passar por dificuldades tremendas é de um enorme estoicismo. Fartam-se de trabalhar, compraram o carro, compraram o televisor e agora dizem-lhes que não têm direito a ter carro e televisor. Tinham a mania que estavam a ficar ricos? “Tira lá o plasma.” O plasma apareceu como grande símbolo de que os pobres estavam a sair do seu lugar. Os pobres compraram plasmas e viajaram para o Brasil. Eh pá, que crime incrível.

 

De que pobre estamos a falar?

Um pobre segundo os parâmetros vigentes. Uma família de baixa classe média, com dois salários, não com muito dinheiro, com um filho ou dois (não dá para mais), que se mata a trabalhar. E que tem a vaga ambição de um dia visitar um país estrangeiro.

 

Há um reaccionarismo de classe nesses comentários?

Completamente! A famosa elite que tem dinheiro, e que se considera o sal da terra, acha que isto lhes é intrínseco, mas que os outros não têm direito. Por isso é que fiquei tão irritada com o discurso da Isabel Jonet. Lida com pobres, fez um excelente trabalho no Banco Alimentar, um trabalho heróico – a palavra heroísmo não está deslocada – mas a formulação é muito infeliz. Não podem comer bifes? Não se pode dizer isto. Não produz efeitos, além da reacção natural: “Vai-te catar”. Não suporto este discurso de cima para baixo. Mas é um discurso comum nos chamados benfeitores da humanidade.

 

(A entrevista é anterior à recolha do BA no fim de semana passado). Aconteceu uma coisa com Jonet muito portuguesa: uma crucificação instantânea.

Cai-se logo no extremo oposto, a mulher é um diabo.

 

É uma forma de sacudir a água do capote e também de distracção. Por momentos, alguém nos distrai.

É um alvo da vingança, do ressentimento. É um alvo errado, neste caso.

 

Na mesma crónica diz que a forma de diferenciação em relação à elite deixou de ser a instrução. Passou a ser ditada pelo dinheiro.   

Claro. A elite pode comprar coisas. Os pobres é que não. A elite comprou carros, condomínios, iates, Rolex. Apareceu um fenómeno de novo-riquismo urbano, sobretudo em Lisboa, que era desconhecido. É uma riqueza de salários. Salários muito elevados, desiguais, de grandes empresas. Uma vez entrei numa casa de um casal abastado, muito amável, onde estava reunida gente importante – gente da elite. Não havia um livro.

 

Havia outros símbolos de poder, seguramente.

Havia todos os símbolos de poder.

 

O que quero dizer é que conhecimento deixou de ser um símbolo de poder.

Um livro não é um símbolo de poder, mas é um sinal de qualquer coisa que acho importante: instrução. Se calhar é mais fácil ir a uma casa da margem sul e encontrar uma estante com três ou quatro livros do que encontrar um livro naquele casarão enorme onde não faltava nada.

 

Numa das crónicas fala de estarmos na 25ª hora da tragédia nacional. É fácil ter essa impressão quando vivemos um momento agónico como este. Mas há quantas horas, quantos anos, quantos séculos estamos na 25ª hora?

Antes [da crise], não achava que estávamos na 25ª hora. Achava que estávamos um bocado entalados. Critiquei o novo-riquismo, o facto de estarmos a gastar o que não tínhamos. Nalguns projectos deixou-se sedimento – como a Expo, onde trabalhei, e que foi um projecto notável. Não havia a ideia de que o dinheiro nos ia faltar. Gastou-se como se não houvesse amanhã. Não fomos os únicos, sabemo-lo. Se intuí que isto ia ter uma factura no fim? Sim. Não há almoços grátis. Tenho um amigo alemão que tem casa em Portugal e que me disse a certa altura: “Vai haver uma consequência disto”. Acontece que as megalomanias, mais uma vez, foram de cima para baixo. A megalomania não foi a do tipo que comprou um telemóvel, um carro para o filho e foi passar umas férias à Baía. A megalomania foi a da pseudo-elite que criou uma arquitectura fictícia, que os pobres e a classe média não tinha obrigação de perceber – que não podiam perceber – [mas eles, sim].

 

Porque é que os pobres e a classe média não tinham obrigação de perceber?

Iam ao banco. O banco dizia: “O senhor pode comprar uma casa, o juro é tanto. Nós emprestamos. Não tenha problemas. Quer comprar outro carro para o seu filho? Compre! Quer comprar dois televisores a prestações?” O problema foi de quem vendeu.

 

Os bancos são a criatura odiosa desta crise? Tanto quanto os políticos.

Não. Os bancos portugueses nem fizeram as loucuras que fizeram os irlandeses. Tiveram uma maior prudência. Mas nos bancos portugueses tivemos esse epifenómeno que nos custou os olhos da cara, e continua a custar, que se chama Banco Português de Negócios [BPN]. Só em Portugal é que existe um banco que custa à pátria milhões [e que é] dos amigos do presidente da República. Há um tipo que é apanhado, Oliveira e Costa. Mais ninguém. Bem sei que ainda não era presidente, mas foi, a seguir. Esse banco fez o que os outros bancos não fizeram. Praticar o crime. A fraude. Numa escala gigantesca. Banco esse que é vendido por tuta e meia, depois de pagarmos as dívidas, a Angola. O modo como passamos por isto sem um grande grito de revolta é admirável.

 

Admirável?

Admirável no mau sentido. Provoca admiração. O mensalão no Brasil: é um volte-face extraordinário. A corrupção foi sempre o cancro brasileiro. País com muitos recursos, ao contrário de nós. Qualquer coisa mudou. Até admito que a pena do Dirceu seja excessiva para um white collor crime, dez anos. Mas aquilo é um pelourinho. É um exemplo.

 

Em Portugal a prisão de Oliveira e Costa não foi um pelourinho suficiente?

Não. Um banco persegue até ao infinito uma pessoa por causa de uma dívida de três ou trinta mil euros. Escreve cartas, ameaça, penhora. Mas se dever três milhões, como dizia o outro, o problema é do banco.

 

O caso BPN representou um divórcio entre a sociedade portuguesa e o Estado? Foi uma machadada na credibilidade do Estado.

O caso dos submarinos é a mesma coisa. Há uma grande opacidade sobre o modo como se administra o dinheiro público. O que permitiu todos os fenómenos de corrupção conhecidos. Permitiu a não-punição dessa corrupção. O outro grande trunfo, além dessa opacidade – e nada disto abona a nosso favor – é o de comprar cumplicidades, facilidades, audiências. Envolver as teias numa cumplicidade complacente para com o grande tráfico. A partir do momento em que se institui o pequeno tráfico... Não é [um sistema que premeie] o mérito.

 

É um sistema de cunha.

Cunha. Comprar favores. “Faço isto por ti, depois farás tu por mim.” É assim que se formam clientelas partidárias. “Vamos instalar as nossas pessoas nas câmaras, aqui e ali, mantê-las alimentadas.” E essas pessoas passam a ser cúmplices da opacidade. O BPN por alguma razão comprou a chancela de prestígio de Cavaco Silva, ex-PM. Precisavam daquela caução de seriedade. Quando já havia interrogações sobre o BPN, mantinha-se um silêncio à volta daquilo. Os reguladores não agiram. Vítor Constâncio, o Banco de Portugal. Como é que isto é possível? Quando Sócrates nacionalizou o banco, não sabia a extensão do buraco. Esta cumplicidade reles – é o adjectivo do Eça no Fradique Mendes – é que nos mata.  

 

Foi o grande erro político de Sócrates? Foi também o seu momento de corte com Sócrates?

Não, não foi. Nunca cortei com o Sócrates nem nunca fui socratista.

 

Quando toda a gente zurzia em Sócrates por causa do Freeport, você e Miguel Sousa Tavares eram dos poucos colunistas com uma posição contrária à da maioria.

O Freeport é uma muito história mal contada, a meu ver.

 

Quando da nacionalização do BPN, soltou os cães.

Foi uma má decisão. Dele e do Teixeira dos Santos. Politicamente foi a pior decisão que podia ter tomado. Poupou os seus inimigos, tentando evitar uma corrida aos bancos (que percebo). Havia dinheiro público no BPN, o que, já de si, é extraordinário. Problemas do bloco central. O que matou o Sócrates não foi isso. Não é o que matou. É o que serviu como arma. Foi a licenciatura.

 

Porque representou uma descredibilização pessoal? Parece uma coisa menor, se olharmos para o impacto na opinião pública, e se comparado com outros casos que atingiram o ex-PM.  

Relvas está-se nas tintas e finge que não é nada com ele. Sócrates ficou terrivelmente afectado. Aquilo matou-o psicologicamente. Perdeu a cabeça. Achou que o estavam a vexar. A partir do momento em que a vítima aceita ser vítima, está tramada. Ele devia ter feito o que fez Bill Clinton, que foi o político mais humilhado da história política recente. Deu a volta. É hoje o ex-presidente mais amado da história dos ex-presidentes americanos. É preciso sobreviver a estes golpes. Um homem como Mário Soares sobreviveria.

A direita percebeu que havia uma vulnerabilidade e nunca mais parou. Depois houve a história do Freeport, que é provavelmente mais uma história de corrupção dos partidos. Entrou dinheiro. Não [nos bolsos dos] líderes, mas nos cofres dos partidos. Entrou sempre dinheiro. Continua a entrar. Que não é dinheiro limpo. Acontece cá, acontece nos outros países. Em França (como se viu com Sarkozy), na Alemanha, nos Estados Unidos.

 

Mas aqui nada vai parar a tribunal, e mesmo que vá tudo fica em águas de bacalhau.

Porque as pressões são enormes. Nunca se chega a conclusão nenhuma. Quando se está próximo da presidência da República, não se pode escavar muito. O que quer que se escave, afectará a instituição.

 

E são estilhaços por todo o lado. Não rola só uma cabeça.

Na América estão-se nas tintas. Nós não gostamos de afrontar a instituição. Sinceramente acho Cavaco Silva um homem sério do ponto de vista de dinheiro. Incorrupto e incorruptível. Tem muitos defeitos, mas esse não tem. Mas que aquela malta andou toda ali à volta... Ou Cavaco era completamente burro e não percebia que o estavam a utilizar para fazer negociatas ou percebeu e fez vista grossa. Uma de duas coisas. Ambas são más. O que é certo é que manteve Dias Loureiro no Conselho de Estado até muito tarde.

 

Porque é que em Portugal nada acontece no dia seguinte?

É uma pergunta a fazer aos agentes da justiça. Porque é que demoram tanto tempo a [actuar]. Há falta de meios. A justiça portuguesa é lenta, arrastada e está toda ela politizada. Em células PC’s, PSD’s, PS’s, que se equilibram umas às outras. É também o modo como a pátria é administrada. “Tu não me lixas muito e eu não te lixo a ti. Somos todos amigos e amanhã vamos almoçar. Eu sei coisas sobre ti e tu sabes coisas sobre mim, portanto vê lá.” E ninguém paga as dívidas.

 

Quando falei da 25ª hora pensei no texto de Antero de Quental sobre a decadência dos povos peninsulares. Que parece de grande actualidade, tendo mais de cem anos. O Eça, que cita abundantemente: muitas daquelas páginas podiam ser escritas hoje. Há coisas da 25ª hora que ficam sempre por resolver. Há quanto tempo estamos nela?

Ah, provavelmente desde a fundação da nacionalidade. Embora eu saiba pouco sobre esse tempo [riso]. Se é o Salazar? Não. O Salazar é a matriz do medo e da obediência. Antero, os Vencidos da Vida: há sempre uma elite que tenta refundar a pátria. Fazer com que isto seja mais ilustre, mais decente, mais civilizado. E há os que desistiram e têm um azedume permanente. Cá em baixo há todo um mundo de gente que não tem paciência para este dilema. Nem tempo. Um mundo de insectos organizados que vai fazendo pela vida. “Enquanto estão ocupados a digerir se chegámos à 25ª hora, vou almoçar com o meu cunhado, que tem dois primos na câmara municipal. Tenho um negócio em vista. É coisa para render dois milhões”

 

Outra expressão muito portuguesa: “em vista”.

Não é “invista”. É “em vista”. “Conheço o gajo, sou amigo do gajo. Sou muito amigo da mulher, também. Vou fazer um almoço em minha casa no próximo domingo e ponho-te em contacto com o gajo.” São assim os negócios em Portugal. É assim que o país é administrado. Se as pessoas pensam que isto corresponde a um grande desígnio – Merkel, Europa, défice...

 

Não é Angela Merkel que manda?

Merkel dá directivas: “Não gastem muito, entrem rapidamente na miséria, e não me chateiem. Não me peçam mais dinheiro, que já tenho os gregos. Caladinhos, simpáticos. Que tenho umas eleições para ganhar na Alemanha. Lá vai a tranche.” Já cá canta o dinheirinho, como diria o Palma Cavalão [personagem de “Os Maias”] 

 

Diz numa das crónicas que os escrúpulos são para os tolos.

É, numa crónica sobre corrupção. O português odeia afrontar o sistema, corre-lhe mal. O sistema vai lixá-lo. Então não lixou o Zé e o Ricardo Sá Fernandes? Ficámos todos com uma vontade enorme de denunciar práticas corruptas depois de perceber que aquilo nos vai custar os olhos da cara. Como diz o Ricardo: “Envelheci mais com isto do que com o Casa Pia”.

(A parte triste disto é que o sistema penal assenta num princípio: in dubio pro reo.

 

Toda a gente é inocente até prova em contrário.

A ideia de que o Carlos Cruz possa estar inocente – aquela prova testemunhal não tem nenhuma fiabilidade – e foi sujeito a isto é repugnante e assustadora. A liberdade está acima da propriedade. Tem outras implicações filosóficas, ontológicas, éticas. Não estamos a falar de um pequeno negócio entre amigos, mas de valores fundamentais.)

 

Se escarafuncharmos bem vamos dar sempre à justiça?

Não. Vamos dar sempre à política. A política infiltrou a justiça. Há muita gente boa na justiça em Portugal. Mas não há muita gente boa na política.

 

Porquê?

Estive dois anos no PS. A aprender com o Dr. Mário Soares. Partido Socialista na oposição. Era jovenzinha. Nunca fui membro. Percebi que é um mundo de compromisso. Nas convicções, há pessoas inabaláveis. No que é essencial, nunca cederão. Em tudo o resto, é um mundo de negociação, é um processo permanente. A partir do momento em que a política não tem esse núcleo de integridade, isso contamina toda a sociedade. Contamina o jornalismo (outro pilar da democracia), a justiça, tudo. Quando vejo a falta de integridade premiada, tenho asco.

 

No texto que abre o livro estabelece uma analogia entre “O país tipo Portugal” e o queijo tipo Serra. Tudo a apontar para o pífio, o pechisbeque. E para o provincianismo.

Já o Fernando Pessoa se queixava do provincianismo português. Faz lembrar aquelas pessoas que andam a esquiar na Serra Nevada com t.shirts a dizer “Aspen – Colorado”... Eh pá, Aspen – Colorado para quê, na bicha do ski? “Ó pra mim.”

 

Temos uma boa expressão para isso: armar ao pingarelho.

Armani ao pingarelho – como diz um amigo meu. É óptimo, o sentido de humor. Vamos à Síria, ao Iraque, Palestina, e os gajos, com o lenço na cara, estão a mandar pedras com uma t.shirt Dolce & Gabbana. [riso] Mas no caso deles não é Armani ao pingarelho. São t.shirts chinesas que se encontram nas feiras de todo o mundo. A força da marca... Veja lá se eles têm uma t.shirt a dizer Edward Said, o grande intelectual.

 

A segunda parte do livro tem textos sobre viagens, em especial sobre o Médio Oriente, a sua zona de eleição. Sempre em ebulição. Porque é que se sente confortável nesses territórios? E Portugal, à sua maneira, está em ebulição?

É uma ebulição íntima, de raiva, de zanga e de humor. É a frase do Ruy Belo: “No meu país não se passa nada”. Às vezes tenho a sensação de que estamos arredados da História. Isso desgosta-me. A Grécia: muito piores as contas do que as nossas, muito maior o colapso social, mas está na primeira linha do drama da História. Nós não temos nenhuma espécie de relevância no grande drama histórico.

 

Só no futebol.

Pois. Deixámos que isto nos acontecesse. Andámos com esta conversa miserabilista do “vamos portar-nos bem para o patrão alemão”. É um bocado cobardolas, ou não? Faz-me lembrar aqueles alunos que nem eram nem bons nem maus e que passavam entre as gotas da chuva. Alunos de suficiente, suficiente menos. Temos um governo de suficiente menos, com políticos de suficiente menos. E o povo português é menos obtuso do que pensam. Já não se deixa comer. Já percebeu que é mal governado.

 

Esteve na Grécia há uns meses, em reportagem. Pensa que quer num país quer noutro qualquer coisa de cataclísmico pode acontecer num futuro próximo?

Se não acontecer na Grécia é porque a Alemanha resolveu impedir o cataclismo. Provavelmente haverá um perdão da dívida e o dinheiro volta a circular. É isso ou saírem do Euro e desvalorizarem a moeda. Nós vamos a reboque. A Irlanda vai safar-se; tem quatro milhões de pessoas, fala inglês, tem multinacionais americanas, não tem um problema de pobreza igual ao de Portugal. Somos o país mais desigual da Europa ocidental. Talvez seja bom perceber isto de uma vez por todas.

 

Pedro Passos Coelho é uma surpresa para si? Esperava isto?

Foi uma certa surpresa. Tinha alguma simpatia pela figura. Achei que estava melhor preparado. Quando descobri a extensão do poder de Relvas e o ascendente de Relvas sobre Passos Coelho, e pormenores da vida empresarial comum, no passado, percebi que um não é muito diferente do outro. São dois irmãos gémeos; como um não me merece nenhum respeito, o outro deixou de me merecer respeito. 

 

Voltando atrás: porque é que o terreno em ebulição lhe interessa?

É a marcha da História. Fui para a fronteira da Turquia com a Síria. Gosto de ver o heroísmo em acção, como jornalista e como pessoa. Encontrei um tipo que andava a desminar o caminho dos refugiados da Síria com as próprias mãos. Correndo o risco de explodir a qualquer momento. Ver a coragem no meio da maior agonia reconcilia-me com a espécie humana. A coragem dos voluntários americanos que estão no Líbano a ajudar pessoas gravemente feridas. Esta grandeza do ser humano tem para mim qualquer coisa de divino. A minha pequena depressão portuguesa dissolve-se numa história que é uma grande história. E a quantidade de gente que está lá como eu... Que está lá em vez de estar em casa a ver pela televisão.

 

Escreveu: “Gasto o meu dinheiro para ver a História em directo em vez de a ver na televisão”.

Não posso interromper a minha vida. Mas se não tivesse a necessidade de ganhar dinheiro e de sustentar a minha família, o meu filho, aquilo era uma coisa que eu faria. O que acontece a esta gente também me diz respeito. Diz-nos respeito. Tudo é muito relativo em Portugal. E isso gera um relativismo moral. Tudo é importante e nada é importante. Ali, há coisas verdadeiramente importantes, essenciais.

 

“Como toda a gente sabe, vendo opiniões.” Transformou-se numa das pessoas mais influentes, e, nesse sentido, poderosas, em Portugal. É uma coisa em que pensa?

Nada. Vivo num buraco. Não faço vida social. Não ando nos salões. Nem poderia escrever o que escrevo se o fizesse. Tomei o compromisso de não ceder a ser simpática com pessoas que não valem um pataco. Fazer esse tipo de vida obrigar-me-ia a compromissos numa zona onde não me quero comprometer. Também sou punida por isso, mas foi o que escolhi. Dou-me com muito pouca gente. Amigos íntimos que são uma espécie de família, e que me põem no meu lugar porque não acham que sou poderosa. Nunca fiz nada para ter poder, não quero ter poder, não me interessa nada o poder. O único poder que gostava de ter, e que não tenho, era o de disciplinar a minha vontade. Sou extraordinariamente disciplinada, mas não o suficiente. É de mim para mim. O segundo poder que gostava de ter era o de me conhecer melhor. “Conhece-te a ti mesmo”, como dizia Sócrates. Não conheço.

 

Como assim?

Tenho reacções opostas a fenómenos idênticos. Posso ser extraordinariamente polida com uma pessoa que acho desprezível, e posso ser extraordinariamente bruta com uma pessoa que acho desprezível. Administro as minhas paixões de um modo não-equilibrado. Não percebo qual é a sardinha que faz cair o camelo. Portanto não me conheço o suficiente. Irritam-me cada vez mais as explosões de temperamento. É melhor fazer a coisa à inglesa. O que implica um certo cinismo, que não tinha quando era mais nova, mas que agora me posso permitir. As pessoas com quem tive uma explosão são tão medíocres como aquelas com quem não tive uma explosão. A mediocridade é de tudo o que mais me irrita. A mediocridade empolgada. O medíocre cheio de si mesmo, coberto de auto-honrarias...

 

Uns pozinhos de Dâmaso Salcede, para voltar a’ “Os Maias”...

O Dâmaso Salcede está aí, a subir o Chiado. Está por toda a parte. Contente, ganha prémios, todo ele refulge. E há sempre o João da Ega e o Dâmaso Salcede.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios, em 2012