Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Claude Chabrol

04.02.22

Segunda feira, onze da manhã. Monsieur Cha-Cha completa nesse dia o seu 72ª aniversário. Na cantina improvisada, contígua à casa onde decorrem as filmagens, a doze quilómetros de Bordéus, serve-se o almoço. O cozinheiro é o de sempre. A equipa que ocupa as várias mesas, também. Por exemplo, Michel, o operador de câmara, trabalha com Chabrol há cerca de trinta anos. A anotadora, Aurore, é mulher do realizador. A assistente de realização, Cécile, é enteada. Thomas, um dos actores, é filho. Como explica o próprio, é bom trabalhar com a família desde que a família seja boa no que faz. É o caso.

Claude Chabrol nasceu em Paris, estudou Farmácia, tem Balzac por mestre. Tem predilecção pelo cinema de Hitchcock. «Notorius» talvez seja o filme de que gosta mais. Cary Grant é um polícia, o que se percebe pelo modo como fuma, como posiciona o cigarro entre os dedos. Prevalece a metáfora, o latente. «Sabe de cor, os filmes de Hitch», conta Thomas.

Foi o primeiro da Nouvelle Vague a produzir o seu filme, com dinheiro da mulher, uma herdeira rica. Adora comer e beber bem, fuma cachimbo. Gosta de ler policiais e ver programas pirosos na televisão. Ao almoço explicou que a estupidez é infinitamente mais estimulante que a inteligência. A inteligência conhece os seus limites, a estupidez não. «Não se sabe nunca onde pode parar». É evidentemente um homem inteligente, com um sentido de humor extraordinário. Realizou mais de cinquenta filmes.

Esta entrevista foi feita a partir do filme que estava a ser rodado, em 2002. Nele está o essencial do cinema de Chabrol: um quadro de costumes de uma burguesia provinciana, relações humanas tocadas pela incestuosidade, mortes e mistérios a ensombrá-las.

 

Porque é que que o filma se chama «La Fleur du Mal»? Não é evidente para mim.

Para mim também não. Pus-me sempre a questão de saber se as acções consideradas negativas, amorais, imorais, podiam gerar outras coisas que não as coisas negativas, amorais, imorais. Penso que as causas malsãs não produzem necessariamente efeitos malsãos.

 

O título é uma espécie de homenagem a Baudelaire?

É mais uma piscadela de olho do que uma homenagem. À medida que fui trabalhando no argumento, apercebi-me de que a personagem que comete o acto mais terrível, um parricídio, era, por fim, a melhor de todos os personagens. Isso interessava-me bastante.

 

Interessa-lhe a dualidade do humano?

Sim. O acto que cometeu é condenável; ela não foi condenada, mas condenou-se a si mesma.

 

Carrega a culpabilidade, que é a sua condenação.

Isso. De tal modo que no momento em que a sua sobrinha comete um acto próximo daquele que tinha cometido, decide tomar este novo crime para si. Isso permite à jovem rapariga, que tem quase o mesmo nome [Micheline e Michèle], viver exactamente a vida que ela não pôde viver. Micheline estava enamorada do seu irmão, não podia de modo algum viver com o seu irmão; o seu acto, [a assunção do crime] deu à jovem Michèle a possibilidade de viver com François, (que é também seu irmão)!

 

Uma redenção?

Redenção é uma palavra de que não gosto muito. Não há nada de transcendental, é tudo estupidamente humano. Ela justifica o seu acto pela felicidade possível daqueles dois jovens.

 

A flor encarna a beleza. Ao mesmo tempo pode ser uma flor carnívora.

Absolutamente.

 

O argumento fez-me pensar numa flor sinuosa, que avança com incrível voracidade.

A flor que nasce do mal, por mais bela que seja, é forçosamente uma flor que não é inocente. Pode ser carnívora. Ninguém sabe o que vai acontecer a Michèle e ao primo, pode ser que a relação se transforme numa monstruosidade, ou não. Mas a transmissão da culpabilidade terá sido cortada. 

 

O mais evidente é a repetição de uma história que não acaba nunca, uma circularidade.

Sim, sim. Estamos sempre a dizer que a História se repete, que não se repete, que balbucia... Penso que é porque se atribui uma excessiva importância ao peso do Tempo na vida humana. A ideia de Tante Line [Micheline], que não é uma filósofa, é que o Tempo não tem importância, que o Tempo não existe. Que a única coisa que existe é o momento que vivemos.

 

É um presente continuado?

É. Com esta ideia, pode-se perfeitamente admitir que a culpabilidade desaparece. Não desaparece face à usura do tempo; desaparece porque foi apagada pela vontade das pessoas que a querem apagar. É por isso que detesto a noção de culpabilidade.

 

Detesta? O seu cinema está cheio de culpabilidade.

Mas claro. O que impede o ser humano de desabrochar completamente, é o peso da culpabilidade. Tudo o que provoca a culpabilidade, detesto. A religião, detesto. Deus, detesto. Todas essas coisas, aterrorizam-me. São obstáculos à felicidade dos seres humanos, que, finalmente, não têm razão para não ser felizes.

 

Ainda que o seu cinema esteja cheio de culpabilidade, e este filme de incestuosidade, há nele mais amoralidade que imoralidade. Não faz um juízo sobre o comportamento dos intervenientes. Não os condena.

Condená-los porquê?, são pessoas como eu. Não podemos condená-los. As únicas coisas que podemos condenar são as vidas desperdiçadas. É de combater tudo o que pode desbaratar uma vida. Mas condenar as pessoas porque desperdiçam as suas vidas, não é correcto. É preciso tentar compreender quais são os fardos que as levam a não desabrochar como as flores.

 

Ontem disse-me que o cinema é uma ocasião para estar com a sua família e os seus amigos. É exactamente assim?

É, e é formidável! Estamos juntos, gostamos muito uns dos outros, divertimo-nos a trabalhar juntos.

 

É imprescindível para si trabalhar com a sua mulher, o seu filho, a sua enteada, todos os velhos amigos e colaboradores?

Bem entendido que é à partida muito agradável estar em família; mas é preciso que a família seja boa naquilo que faz. É esse o caso. Fico muito contente por sentir que há pessoas na minha família que têm talento e que posso utilizar. E é mesmo utilizar, porque enquanto se faz um filme (e eles fazem bons filmes), há um movimento de entrega a um filme que não é o deles. É o meu filme. Dão-me uma parte deles mesmos.

 

Utiliza-os também porque o conhecem muito, muito bem, porque sabem exactamente o que quer?

Sim, sim. E sabem de tudo o que não gosto. Michel, o meu operador de câmera, sabe de tudo o que não gosto. Logo aí ganhamos tempo: nunca me proporia coisas de que não gosto.

 

A propósito do tempo, numa cena filmada há pouco, Tante Line pergunta à empregada porque é que não põe a louça na máquina; a empregada responde que a lava mais depressa que a máquina. A despeito do progresso, há uma coisa que está no centro do seu cinema: as relações humanas.

É o mais importante. Interesso-me mais pelo progresso nas relações humanas do que nas comunicações telefónicas, por exemplo. A propósito, detesto telemóveis, não tenho um, nem nunca hei-de ter. Explico porquê: eu estava a descer uma rua de Paris, havia um vão de escada e nele um par de namorados que se abraçava. Acho sempre muito encantador ver pessoas que se abraçam num vão de escada. De um momento para o outro, a bela aparição do casal tornou-se um pesadelo! O tipo estava a telefonar ao mesmo tempo! Este progresso é uma degradação das relações humanas, é tenebroso.  

 

Nas tragédias gregas, de que gosta muito, os sentimentos que estão na base de enredos intrincados, são constantes.

Absolutamente. Adoro, também, romances policiais. Tratam das coisas capitais: A verdade/ a mentira. O mistério/ a solução do mistério. A morte/ a vida.

 

É por isso que há sempre suspense e morte nos seus filmes?

Sim. Um filme dura uma hora e meia, contam-se às pessoas algumas coisas que julgamos importantes. É preciso que as sensações sejam fortes e o pensamento subtil. Claro que podemos exprimir o mal de outra maneira que não por um crime, mas é uma maneira mais complexa, numa hora e meia não é possível. Se matarmos alguém, é mais simples, compreendemos logo tudo.

 

Eduardo Serra considera que este filme contém a essência do seu cinema. O que pensa disso?

Não sei. À medida que se avança, tornamo-nos um pouco mais indiferentes, não propriamente ao sucesso, mas à preocupação com a carreira. Eu adoro filmar, há muitas histórias que ainda não contei e que gostava de contar; mas já não é uma necessidade vital como foi noutros tempos. É verdade que neste filme vou um pouco mais além, é um pouco mais complexo. Por exemplo, não tem um fio de intriga.

 

Há o segredo do parricídio que Tante Line condensa em si mesma.

Sim, mas ao mesmo tempo, o segredo é-lhe indiferente. O facto de o conhecermos não tem importância. O que é terrível para ela, é que julga não foi punida.

 

Na peça de Sófocles «Édipo Rei» há também um parricídio. Édipo vasa os olhos quando sabe que foi ele mesmo o autor do crime.

Não o pode suportar. No fim de contas, os gregos eram uns sentimentais! Ésquilo ocupava-se da ligação entre os deuses, com as forças primitivas. Sófocles ocupava-se da relação entre os deuses e os homens. Eurípides ocupava-se dos homens em oposição aos deuses. O que penso é que Eurípides tem menos talento que Ésquilo ou Sófocles; mesmo assim, não é nada mau! Estamos agora num estádio em que já não há problemas de relação com os deuses, mas com o si próprio. Compreendemos finalmente como isto está organizado. Muito melhor do que no tempo dos antigos que eram obrigados a simbolizar de modo sumário os deuses. Agora não temos necessidade desse tipo de representação. Mesmo as representações cristãs são hoje um pouco ridículas, são-no cada vez mais. À medida que o homem evoluir, muito lentamente, reconheço-o, vai ter cada vez menos necessidade de representações deste tipo. Não teremos necessidade senão da realidade das coisas.

 

François dizia numa cena do filme que Deus e o dinheiro são os problemas dos americanos. E por arrasto, do mundo inteiro.

Há uma incompatibilidade entre a noção de Deus, que é uma noção de ideal, e a noção de dinheiro, que é uma noção prática. As duas noções são perfeitamente aceitáveis. Simplesmente é preciso saber o que representam. O dinheiro.... Você conhece o Monopólio?

 

Sim.

O Monopólio consiste em comprar casas e hotéis, assim e assado. Para quê? Para ter mais dinheiro. E quer ter mais dinheiro para poder comprar mais casas e hotéis. Mas com estas novas casas e hotéis, ganha ainda mais dinheiro, o que permite comprar ainda mais casas e hotéis. E assim sucessivamente. É um jogo que não termina nunca. Termina quando alguém tem tudo. Tenho a impressão de que vivemos num universo onde há gente que se diverte, como no Monopólio, a querer ter tudo. Não chega a ter, felizmente, e por isso o jogo continua. Mas se um dia alguém conseguisse, o jogo estaria terminado. É preciso que a partida continue.

 

Há sempre a decadência.

A decadência chega quando não pudermos continuar a jogar sem envilecer os outros.

 

A sua carreira foi relançada quando encontrou Marin Karmitz. O primeiro filme que este produziu data de 85.

Um pouco, sim. É-me muito difícil trabalhar filme a filme. Fazer um filme, procurar um produtor para outro filme, tudo isso. Só me senti à vontade quando tive um produtor que pôde manter uma continuidade. Há dois tipos de artistas: há os que fazem obras tentando atingir a perfeição em cada uma delas, e que trabalham pouco; há outros que trabalham por acumulação. Não tenho nada contra os outros, mas eu pertenço à segunda categoria.

 

Diz-se que a sua cinematografia é como um edifício em que cada filme é uma pedra. A consistência é dada pelo conjunto.

A minha obra tem a ambição de ser um edifício. Mas também pode ser um edifício muito feio!

 

Os filmes da última década têm sido os mais aplaudidos. Além do conforto que lhe confere a produção de Marin Karmitz, goza agora de uma maturidade…

Eu sabia que o que queria dizer era complicado. À medida que o tempo foi passando, as coisas ficaram mais claras na minha cabeça. Sempre me disse que estaria no ponto aos 60 anos.  

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002.

Claude Chabrol morreu em 2010.