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Anabela Mota Ribeiro

Coimbra de Matos (s/ Portugal)

20.03.22

Somos inseguros, imaturos, praticantes da transgressão na sombra, além de desorganizados, individualistas, garbosos, disponíveis. Nós, os portugueses, o que esperamos do chefe, do pai, do protector, é que decida por nós, que assuma a responsabilidade por nós, que saiba sempre a resposta. Mas que resposta para Portugal? O psicanalista António Coimbra de Matos faz o diagnóstico de um país deprimido, que, em crise, se olha desamparado.

Coimbra de Matos nasceu em 1929 numa aldeia do Douro. É um dos mais prestigiados psicanalistas portugueses. No seu consultório há uma fotografia dos vinhedos, da terra sulcada, mesmo em frente à porta de entrada. Depois, olhando à esquerda, há a secretária, o divã, o cadeirão onde ouve; e folhas e livros e jornais em quantidade e em desalinho. À direita há dois pequenos sofás onde nos instalámos. É um fumador inveterado, nas suas próprias palavras. Foi neste ambiente que em quase duas horas se falou de Portugal. Frequentemente parecia que estávamos a falar de pessoas que conhecemos de todos os dias. Pessoas como nós, de nós. Pode-se pôr um país no divã? O que constitui a nossa identidade? Coimbra de Matos começou por falar disto, antes mesmo da primeira pergunta.

 

Classicamente, a Psicologia e a Psicanálise descrevem um mecanismo de construção da identidade: por identificação de modelos. A pessoa identifica-se com o pai, com a mãe, o professor, um jogador de futebol, um grande filósofo. Fazemos mais dois processos de identificação que são mais importantes do que este. Um joga com a identificação imagoico-imagética, em que nos identificamos à imago e à imagem que os nossos pais e o mundo nos atribuíram.

 

Temos um desejo de corresponder a essa identidade?

Os portugueses têm muito isto. Vamos um bocado nessa cantiga – assimilar a identidade dos nossos políticos, dos nossos pais, o que a História nos vai infiltrando. O indivíduo assimila a imago, que é uma coisa menos consciente, e a imagem, que é uma coisa mais nítida, que o outro atribui.

 

E pretendemos transcender essa expectativa que têm em nós?

Isso já inclui outro aspecto, nem sempre lá vamos. Há outro processo de identificação, mais importante – a idiomórfica –, em que nos identificamos aos nossos projectos, àquilo que pensamos que somos, e fundamentalmente àquilo que desejamos ser.

 

Isso já tem muito de construção individual.

Tem. E aí talvez os portugueses falhem um bocado. Têm tendência a repetir, a ser conservadores. São inovadores em circunstâncias de crise, de stress, quando emigram. Sem dificuldades, não são muito inovadores.

Por exemplo, quando se diz que estamos a explorar o mar, está impresso que é uma coisa herdada da História. Somos um pouco marinheiro, emigrámos para a Índia, para África, para o Brasil. É quase uma continuidade do que fomos.

 

Foi no mar, ou através do mar, que nos transcendemos. Pode ser um pouco a herança desse mito.

Pois pode, mas também nos podemos transcender de outro modo. Sou apologista da inovação. A grande mudança que temos que fazer é inovar mais e repetir menos. Na vida pessoal também é isso.

 

Por que é que somos tão acanhados? Por que é que, se não em condições excepcionais, não ousamos, e preferimos qualquer coisa que, mesmo que limitado, não nos ameaça?

Não sei responder. Talvez uma das razões seja o facto de ser uma cultura mais dominada por influência materna do que por influência paterna. Os pais são mais ausentes, saíram de casa, iam para o mar. A influência materna é mais conservadora. Quando uma criança está com medo, aflita, a mãe dá-lhe uma mão, o pai dá-lhe um pontapé no cu.

 

Qual é que é a melhor maneira de aprender?

São as duas, deve haver um certo equilíbrio. Agora já é diferente, mas na nossa cultura o pai não intervinha muito. Ainda agora um cardeal português disse, com bestialidade, que as mães deviam ficar em casa porque eram as educadoras dos meninos.

 

Por que é que diz que isso é uma bestialidade?

Porque os pais também são educadores, também têm responsabilidades educativas. E a mãe, para educar, não precisa de ficar em casa. Pelo contrário, se fica em casa tem pouco mundo e transmite pouco mundo aos filhos. A mulher deve trabalhar e deve sair para poder trazer o mundo para casa. Um psicanalista francês com quem trabalhei, um tipo inteligente, também insistia nisso: dizia que a mãe ficava em casa e o pai trazia a realidade, era o representante da realidade.  

 

É sobretudo um tempo. A maneira como os nossos filhos e os nossos netos são educados é muito diferente daquela como os nossos pais e os nossos avós foram educados.

E o pai também é cada vez mais presente como educador. Mesmo a sociedade portuguesa avançou. No tempo em que era professor na faculdade de Psicologia, a maior parte dos meus colegas referia-se aos alunos assim: “No nosso tempo é que havia bons alunos, agora não estudam, não querem saber”. A minha percepção é muito diferente. Os alunos actuais são muito mais interessantes, cultos e curiosos do que os do meu tempo. Ainda estamos muito presos ao in illo tempore passado.

 

A pretexto do mar falou de preferirmos a repetição e a segurança e de arrojarmos pouco. Que outras características identificaria como sendo dominantes nos portugueses?

Portugal é e sempre foi um país pobre. Não é um país com grandes recursos naturais. Isso fez de nós nómadas, viajantes, andámos à procura de coisas melhores. Se entrarmos de carro ou de comboio em Portugal, vindos de Espanha, e de avião ainda se vê mais, vêem-se pedregulhos, terrenos incultos. Isto não nos permitiu virarmo-nos para nós próprios, desenvolver as nossas próprias capacidades, ver os nossos próprios recursos.

 

A Suíça também não tem grandes recursos naturais. É certo que a Suíça é uma construção recente e nós somos um país com quase nove séculos.

Era um território de passagem. Nós não somos um sítio de passagem. As pessoas vêm e atracam aqui. Temos uma posição estratégica extraordinária e não explorámos isso suficientemente.

 

A Suíça, a Alemanha, países do centro da Europa, têm uma enorme capacidade de se reconstruir. Nós temos um adiamento sucessivo desse projecto que é refazermo-nos, reeducarmo-nos, florescermos. Concorda com isto?

Talvez, mais nos últimos 100 anos. Somos um país pouco virado para o futuro. Recordo-me que no tempo do Salazar veio cá um ministro do Franco, que foi recebido no aeroporto por um ministro do Salazar. O ministro espanhol fez uma discursata dizendo que Espanha estava no bom caminho, a montar indústrias novas, a abrir o comércio com norte de África; o ministro português respondeu-lhe de uma forma pataroca, que vinha nos jornais no dia seguinte, num discurso inflamado: “Portugal pode não saber para onde vai, mas sabe como veio e onde está”. Claro que isto era numa altura diferente, mas estamos demasiado presos às glórias do passado. Mudámos pouco.

 

Mudamos pouco porque não temos confiança em nós próprios? Estamos a falar das coisas de que os seus pacientes falam?, do medo, da falta de auto-estima.

Há outra coisa de que temos que falar: de países protestantes e de países católicos. Os protestantes são mais rígidos, mas introduzem mais mudança; aliás, produziram uma revolução dentro do próprio cristianismo. A religião católica é muito mais conservadora do que a protestante.

Um exemplo que conheço bem: a Psicanálise tem sofrido mudanças importantes principalmente nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Alemanha; nos países latinos, muito pouco, em França estão cristalizados, mais do que nós. Isto tem que ver com a cultura religiosa.

 

A religião contamina tudo, a maneira como estamos em família, como socializamos, a maneira como encaramos o trabalho, a vida. Que traços identificam a nossa matriz cristã?

Somos um povo que acredita facilmente em qualquer coisa. Quando se vai a congressos internacionais nota-se que quando aparece uma ideia nova, os franceses, os italianos, ficam surpreendidos e desconfiados. Os ingleses, os alemães, mais os americanos, ficam curiosos, têm maior apetência pela mudança. Perante o novo e diferente, temos sempre uma dupla atitude: por um lado receio e por outro lado fascínio. Quando somos mais doentes, predomina o receio, quando somos mais saudáveis, predomina o fascínio. Nós estamos mais do lado doentio.

 

Lidamos mal com o conflito e com a interpelação? Porque é que o outro discordar de nós é sentido pelos portugueses como uma forma de afrontamento, de intimidação? Tudo é demasiado pessoal.

Confirmo isso. Se fizer uma pergunta a um conferencista, discordando dele, num congresso em Portugal sou acusado de ser agressivo. Se for num congresso internacional, isso é completamente aceite. Aqui somos muito narcísicos, ficamos logo ofendidos. Discordar é ofender o outro.

 

Isso é um traço de narcisismo?

É, não aceitamos bem que o outro discorde de nós, sentimos isso como uma diminuição.

 

Como é que ficamos menos vulneráveis, menos narcísicos? Como é que aprendemos a lidar com a crítica e aquilo que sentimos como sendo a agressividade do outro?

A causa psicológica assenta num sentimento de inferioridade. Se a pessoa se sente inferior, qualquer discordância do outro é sentida como uma ofensa pessoal. Se está consciente da sua capacidade, se não tem complexos de inferioridade…

 

Como é que se trabalha este sentimento de inferioridade? É uma coisa importante na maneira como interagimos com o colectivo.

Começa na família e depois na sociedade em geral: os portugueses tornam-se autónomos muito tarde. Por razões financeiras e por razões culturais. Mesmo nos anos 60, em que se vivia relativamente bem, as pessoas saíam muito tarde de casa. É-se muito ligado à família de origem. Desde pequeno há uma cultura de concentrar, proteger, e não de fomentar a autonomia.

 

O que podemos extrair disso é a ideia de que todos juntos somos mais fortes? É por isso que devemos permanecer no espaço da família, resguardados? Por que é que não se incentiva a independência?

Vem da geração anterior. Os pais têm dificuldade em promover a independência dos filhos, sentem isso como uma perda da influência deles. Vê-se também ao nível pedagógico; a maior parte dos professores, se um aluno tem ideias diferentes das dele sente isso mal; gosta que o aluno copie as ideias do mestre. Não gostamos de ser contestados pelos mais novos.

 

Isso é considerado uma insolência. Temos um ditado que traduz isso bem: “Já a formiga tem catarro”.

Pois é, mas não devia ser. Os mais novos trazem ideias novas.

 

Então, somos inseguros, tememos perder a influência, que o outro saiba mais. Somos imaturos?

Suponho que temos uma circunstância cultural que não facilita a maturidade. No meio disto há pessoas que conseguem amadurecer, mas o ambiente não é facilitador dessa autonomia, dessa coragem, dessa vontade de inovar, de explorar, de ser diferente.

A progressão das pessoas e das sociedades depende das pessoas que estão na posição dos mais velhos – do animal alfa. Daquele que tem mais poder, mais conhecimentos, mais história. Não são os animais ómega, as crianças, que são menos audazes; são os pais que não lhes facilitam essa audácia. Somos uma cultura muito ligada aos sistemas de poder. [Numa hierarquia], a pessoa que está numa posição superior deve ser a mais responsável, não a que tem mais poder. Em relação à guarda e ao cuidado com as crianças, só há pouco tempo [a designação] mudou de poder parental para responsabilidade parental. Na Suécia, há mais de 50 anos que é assim.

 

Mas a seguir tornamo-nos nós nos mais velhos e replicamos o que vem de trás.

Isso é. Ficamos ligados às pessoas do passado, aos pais, aos avós, à primeira namorada. Somos o povo da saudade.

 

Ao mesmo tempo, temos a ideia de que a nossa identidade é constituída pela nossa memória e pela nossa história. O passado é aquilo que fomos e fizemos, é aquilo de que somos feitos.

Mas da nossa identidade, nesta minha teoria idiomórfica, faz também parte aquilo que construímos e imaginamos, segundo os nossos anseios, antecipações, projectos.

 

Essa construção e esse desígnio correspondem a um sair da casa dos pais, a uma libertação das referências do passado?

A evolução natural é mais pela conquista do que pela perda. Há tempos ouvi um colega meu que dizia que a adolescência era um período terrível, em que se tinha de fazer o luto da infância, uma série de lutos. Respondi-lhe dizendo que nunca vi os adolescentes vestidos de preto. Conquista-se autonomia, capacidade de decidir por nossa conta. O que nos deve entusiasmar é aquilo que não sabemos, não aquilo que sabemos. O verdadeiro cientista põe perguntas e tem poucas respostas, interessa-se por aquilo que não sabe e que quer descobrir, não por aquilo que já sabe.

 

Na adolescência, aliada a uma curiosidade e a uma turbulência instigadora, temos uma coisa preciosa: a rede, que sabemos que está lá para o caso de cairmos.

A adolescência é um período de autonomia assistida. Mas aí, mais uma vez, a geração dos mais velhos, aceita mal. “Se quiseste sair de casa, agora aguenta-te”. Há uma certa dificuldade em deixar partir e ficar como reserva de retaguarda.

Isto levanta outra perspectiva, que é a dificuldade de aceitar a morte. Não aceitamos a nossa decadência, temos de manter os filhos dominados. Permitir a liberdade dos filhos é sentir que já não estamos cá a fazer nada, que somos menos úteis. Somos o primeiro animal que tem consciência da finitude da existência, os outros têm medo da morte imediata. Só há um processo para ultrapassar aquilo a que chamo a angústia essencial, a angústia [que resulta da] consciência de que temos um prazo (apesar de nunca se ultrapassar totalmente, transcende-se um pouco isso): realizando alguma coisa, uma obra, transmitindo cultura.  

 

São pouquíssimos os casos de pessoas que acham que não se realizam através dos filhos e dos percursos dos filhos.

Ter gosto que o filho progrida é normal e saudável. Ter gosto que o filho continue a obra do pai, que seja médico como o pai, que trate da quinta como o pai tratava, ou que siga o mesmo partido político, que tenha as mesmas ideias sociais, é um disparate. Porque não permite a evolução. A evolução faz-se por fracturas. Há duas ideias sobre o progresso; há a ideia de que o progresso se faz na continuidade – acrescenta-se àquilo que já se sabe, na mesma linha, um exemplo disso era a evolução na continuidade do Marcelo Caetano; e há outra ideia de progresso, que é por ideias fracturantes. Sou apologista desta.

 

Para que haja uma revolução.

Sim. De facto, sou revolucionário. Há uma diferença entre revolução e revolta. Por vezes há apenas revoltas, mas depois volta tudo ao mesmo. Explosões de raiva. Com a revolução, as coisas não voltam ao mesmo sítio. Há aquela célebre expressão do ministro do Interior de Luís XVI, quando foi a tomada da Bastilha no início da Revolução Francesa: “Não é uma revolta, é uma revolução! Isto não vai ficar aqui”.

 

Há outra frase famosa no filme O Leopardo: “É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”. É o oposto.

As revoltas muitas vezes são isso: dão-se uns tiros, matam-se umas pessoas e depois tudo volta ao mesmo. Mesmo na área científica, as grandes mudanças são revoluções. São “a mudança de paradigma” de que o filósofo [Thomas S.] Kuhn falava.

 

Insisto: o que é que tememos tanto nessa mudança de paradigma? Se quisermos levar isto até às últimas consequências, temos medo de desaparecer, de ser engolidos?

Insegurança, incapacidade de gostar do novo e do diferente. Há uma entrevista muito bonita de um professor de Física Teórica, brasileiro, um homem de 50 e tal anos. Às tantas diz: “Repare, o que é bonito não é o que é simétrico, regular. É o que tem assimetria, pequenos defeitos”. Tudo é impermanente, tudo é incerto, tudo é imperfeito. É isto que nos deve atrair. As pessoas mais conservadoras querem o permanente, a certeza, o perfeito.

 

Somos um povo conservador?

Não é só Portugal. A cultura europeia é mais conservadora, pelo peso da história, do que a cultura americana. Os brasileiros são muito mais abertos à novidade do que nós. É um fenómeno das culturas mais antigas que estão mais presos à história do que aqueles que têm uma história menor e que evoluíram mais depressa.

 

E somos um povo deprimido? Tem investigado especialmente o tema da depressão.

Há dois tipos de depressão: a depressão normal e a patológica. A depressão é sempre uma reacção, frequentemente diz-se que é à perda, mas eu penso que é à derrota. Perante a derrota todos nos deprimimos, ficamos mais abatidos, com menos iniciativa, menos motivados para fazer coisas. Na depressão normal isto é acompanhado por um sentimento de revolta. Na depressão patológica o indivíduo resigna-se. Quando não se culpa a si próprio. É o que estão a fazer com esta crise actual: a culpa foi nossa, e aceitamos [que assim seja].

 

Somos os da depressão patológica e os gregos são os da depressão “normal”?

Sim. Resta saber se eles são capazes de ultrapassar a fase de revolta e ir para uma revolução para mudar o sistema. É um escândalo aquilo a que assistimos, a nível mundial. Estas ajudas que se oferecem aos países periféricos, dizem eles, não são ajudas nenhumas; emprestam-nos o dinheiro e depois pagamos com um juro brutal.

É um pouco o que se passa no amor parental. Há um amor parental saudável, que é incondicional, que não está à espera de retribuição. E há um amor parental condicional: “Gosto muito de ti, meu filho, se prometeres proteger-nos, se não te esqueceres de nós”. Esse amor condicional é o que nos estão a fazer os países centrais, a Alemanha, a França. “Depois vocês compram os nossos automóveis e devolvem o nosso dinheiro com juros”.

 

Essa narrativa vingou porque inculcámos a ideia de que fomos os responsáveis pela crise. A verdade é que gastámos acima das nossas possibilidades.

Mas isso também nos foi facilitado por eles. As pessoas consumiam demais porque os bancos forneciam dinheiro barato com hipotecas fáceis.

 

Caímos num logro?

Sim, caímos na ilusão.

 

Na ilusão de que seríamos ricos como os outros, que viveríamos bem como os outros?

Pois, e que não precisávamos de trabalhar. Aproveitámos mal. Os primeiros subsídios que vieram da União Europeia foram aproveitados para fazer grandes estradas, algumas para sítio nenhum. Houve responsabilidades de um lado e do outro. Não nos ensinaram que devíamos gastar aquele dinheiro de outra maneira.

 

Falamos de Portugal como um filho a quem a educação não foi bem dada. Não nos ensinaram a gerir bem o dinheiro, não nos ensinaram a ser produtivos, não nos ensinaram a ser adultos e responsáveis. Mas estes que não nos ensinaram são a nossa família, os nossos antepassados.

O que não temos tido é governantes políticos à altura, nunca tivemos, pelo menos desde o pós 25 de Abril, e antes pior ainda.

 

Somos um povo dúplice, temos características muito contraditórias. Se por um lado somos pacíficos – os famosos brandos costumes –, revoltamo-nos pouco, por outro lado a agressividade há-de aparecer de alguma maneira… Como?

Mais passivos, mais agressivos… Uma das coisas que não se cultivam em Portugal é a coisa intermédia, a afirmação pessoal, aquilo a que os psicólogos gostam de chamar assertividade. A agressividade é uma coisa mais destrutiva. Na afirmação pessoal, na defesa dos interesses próprios, dos direitos de cada um, somos muito fracos. Se a pessoa se afirma, é sentida como agressiva.

 

A própria assertividade é considerada uma forma de agressividade. Onde é que o clínico põe as fronteiras? O que é uma pessoa passiva, o que é uma pessoa assertiva e o que é uma pessoa agressiva?

Posso dizer como costumava explicar aos alunos, servindo-me do exemplo da potência sexual. Uma coisa é ser impotente, outra coisa é ser omnipotente. O que é normal é ter a potência necessária, suficiente para a tarefa que se vai realizar. Num homem, ter potência sexual quando vai com uma mulher para a cama, está certo. Ficar em erecção enquanto está a conduzir um automóvel só serve para perturbar a condução. Se tenho que levantar um peso de um quilo não preciso de contrair os músculos todos.

 

Acha que somos de pavio curto, fervemos em pouca água?

Não sei se como povo seremos isso. Mas é uma característica de pessoas que têm sentimentos de inferioridade e de impotência, fervem em pouca água. Quando se tem uma maior afirmação pessoal, um maior sentimento de competência não se ferve em pouca água.

 

Também parece que estamos sempre enredados numa mesma narrativa. Temos dificuldade em olharmo-nos de fora e perguntarmo-nos de uma outra maneira.

Alguém dizia que o infortúnio da pergunta é a resposta [riso].

 

Mas há uma resposta da qual precisamos: como é que saímos desta crise, como é que vivemos melhor. Quando as pessoas o procuram querem viver melhor, não aguentam viver mais em depressão, em sofrimento.

Às pessoas deprimidas, que tentam suicídios, que não suportam a vida, uma das respostas que dou é: “O que você não suporta é a vida que leva, aquela que tem, porque é de facto insuportável. Isso não é a vida”. As pessoas mais imaturas, e nós, o colectivo, não pensamos num futuro a longo prazo, pensamos num futuro a curto ou médio prazo. É preciso pensar a longo prazo para organizar as coisas bem.

 

Por que é que somos tão pouco persistentes? No fundo, quando nos ocupamos do curto prazo, isso quer dizer que, ou não temos a persistência ou não temos a organização necessárias.

Uma das razões é porque acreditamos na Virgem. Acreditamos sempre que nosso Senhor ou a Virgem fazem milagres, que o Estado ou os papás vão resolver a situação. Acreditamos sempre que vem qualquer coisa que nos salva, que não o nosso esforço, o nosso trabalho, a nossa intervenção.

Somos educados na base da religião a sermos adaptados, a obedecer ao pai, ao chefe, ao polícia, a Deus, e a não interferir no meio.

 

Gostaria de explorar o tópico da nossa relação com a autoridade e com o poder. Somos uma gente treinada para obedecer, esse é um dos nossos traços mais evidentes?

Sim, somos um povo masoquista. Há duas grandes instituições que fazem estagnar as sociedades, a Igreja e as Forças Armadas (Freud falou disto em 1923). São instituições conservadoras e que se baseiam em obediência. Quando o chefe disser: “Atira-te para a frente”, as pessoas vão sem pensar. Na Igreja é a mesma coisa, todos de joelhos quando se levanta a hóstia.

 

Somos dados à transgressão?

Somos um povo obediente, e como a obediência não se pode conservar sempre, somos de transgressão clandestina. Transgredimos na sombra. Achamos que devemos pagar os impostos, mas fazemos tudo para não os pagar. Nos países nórdicos, de uma forma geral, as pessoas pagam os impostos porque têm consciência de que são utilizados de uma forma útil para todos. Aqui são utilizados para o BPN e outras coisas assim. Compreende-se que depois não apeteça pagá-los. É um ciclo vicioso.

 

Um ciclo viciosos que só se interrompe com uma revolução?

Sim, com uma mudança drástica.

 

Como é que reconhece imediatamente uma pessoa autoritária?

Não sei. Estou a lembrar-me de um caso que tinha, de um psiquiatra distinto, que se descrevia como um tipo muito generoso, nada autoritário. Eu notava que não era nada disso. Ele estava convencido que era um tipo muito inteligente, e era-o, mas não tanto como julgava; e docemente impunha sempre a sua vontade, quer na família quer no trabalho. Uma coisa que acontecia quase sempre é que eu fazia uma interpretação e ele dizia: “Estou de acordo consigo, mas...”. Um dia disse-lhe: “Já reparou que tem sempre que me provar que é mais inteligente que eu? Sempre que faço uma interpretação, a maior parte das vezes concorda, mas acrescenta sempre qualquer coisa. Para me mostrar que vai mais longe que eu”. Só aí é que ele percebeu esta omnipotência. A última palavra estava sempre do lado dele. Também me lembro de um colega psicanalista que não tinha opiniões, só convicções. Nunca dizia: “Penso que”, só dizia: “É assim ou assado”. Uma vez disse-lhe, ele até ficou zangado: “Não tens opiniões sobre nada, só tens convicções”. Isto é o núcleo do autoritarismo: está convencido de que a única verdade é a sua e mais nenhuma [é válida].

 

Isso é capaz de ser o primeiro elo da cadeia, mas logo a seguir vem submeter os outros, dominar os outros. Se a verdade é só uma, os outros têm de se submeter. Políticos autoritários, são quase todos?

São. O Mário Soares dá a volta, acaba por fazer o que quer. Mas em todo o caso tem um toque pouco autoritário. Como Presidente da República, uma vez recebeu-me oficialmente e quando vim embora acompanhou-me ao carro. “Senhor Presidente…” “Sou o anfitrião, a minha obrigação é acompanhar as visitas”. É a capacidade de ser chefe. Poucos o fariam.

 

E um marcadamente autoritário?

O Cavaco. Porque fica fixado naquelas posições, porque tem um medo enorme que o ponham em causa. Isto de não ter ido à escola [onde o esperava uma manifestação] é um exemplo. O autoritário tem muito isto, não permite que alguém o critique, que duvide da sua supremacia.

Em 1980, na faculdade de Psicologia, uma aluna disse-me no fim de uma aula: “O professor tem uma coisa a que aqui não estamos habituados: fazemos uma pergunta e muitas vezes responde que não sabe. Os outros dizem sempre qualquer coisa”.

 

Também já disse algumas vezes na entrevista que não sabia responder.

Talvez. Somos muito narcísicos e frágeis nesse aspecto. Não admitimos ser postos em causa.

 

Somos um povo deprimido? Ou estamos deprimidos?

Estamos deprimidos porque estamos em perda, em perda económica; a perda é sempre uma causa importante da depressão. E porque sentimos que estamos a ser tratados injustamente.

 

Tendencialmente, somos deprimidos?

Houve momentos em que não fomos um povo deprimido, mas na maior parte dos momentos históricos fomos. Não fomos um povo deprimido nas conquistas da primeira dinastia, na [aventura] expansionista, no tempo das descobertas. Fora isso, fomos um povo que perdeu quase sempre.

 

Ao mesmo tempo com um lado garboso, amável. Podemos dizer o pior de nós próprios, mas quando nos sentimos ameaçados, tal como numa família, não admitimos uma palavra mais acintosa.

Temos motivos para ser garbosos, para essa auto-estima. Temos factos importantes na nossa História, temos uma produção artística, literária importante, uma língua que se expandiu bastante para o tamanho do país. Mas fomos sempre um país mal governado.

 

E muito desorganizado, todos dizem. Por que é que temos tanta dificuldade em interagir com o outro de um modo organizado? Por que é que temos este individualismo?

Somos um país que não passou pelo feudalismo, pelas organizações em pequenos grupos. Fomos sempre um país de poder central, comandados pela corte, e o resto eram escravos. A nobreza portuguesa nunca teve grande força, a não ser a que vivia na corte, ou à custa da corte, como dizia o Francisco Sousa Tavares. E não fizemos a revolução industrial.

 

Se este país se deitasse no divã tinha emenda? O que é que precisaria, mais que tudo, de trabalhar?

Tinha de ter tempo e espaço para poder crescer por si próprio sem se apoiar noutros. A Psicanálise é uma auto-análise assistida, o analista só dá uns toques, o paciente é que faz a análise. Como num parto. Quem faz o parto é a mulher, a parturiente; o parteiro interfere se houver alguma coisa, se tudo correr bem não faz nada. Facilitar o crescimento pessoal, a auto-determinação, a identificação idiomórfica, segundo o seu próprio plano, o seu próprio projecto, e não seguir ideias do analista ou de outra pessoa qualquer. Sou a favor da imigração, de que as pessoas se movam, se cruzem. E sou a favor da depressão normal, com revolta e revolução! Devemos zangar-nos com os tipos que nos fazem mal.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012