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Anabela Mota Ribeiro

Constança Freire de Sousa - 40 anos 25 de Abril

11.03.17

Constança Freire de Sousa nasceu no Porto. Viveu com os pais em Lisboa, depois Bruxelas, depois Porto. Actualmente vive em Londres, estuda Media e Comunicação e especializa-se em escrita criativa. Os seus sonhos? “Escrever, formar uma família e, talvez com um pouco de sorte, poder voltar ao meu país. Somos o povo que precisa de pelo menos três tipos de palavras diferentes para expressar uma só emoção. Podemos ter muitos defeitos, mas eu não trocaria a minha nacionalidade por nada.”

 

Pode fazer um auto-retrato?

Eu nasci em 1994. Quando era pequena, os computadores não tinham a importância que têm hoje e os telemóveis tinham antenas. Os meus pais trabalhavam até à hora do jantar e ainda tinham tempo para se interessar pelo meu dia e pelos desafios da escola primária. Da minha mãe, herdei determinação. Do meu pai, alguma teimosia e, sem dúvida, a maioria dos traços físicos. Dos dois, independência e sentido crítico.

 

Houve um tempo em que as mulheres tinham de pedir a autorização dos maridos para sair do país. Que é que a sua mãe ou avós lhe contaram disto?

As histórias que sei vêm mais da parte da minha mãe [Elisa Ferreira]. O meu avô era um educador exímio. A minha mãe não foi educada “para esposa”, mas para ser capaz de sobreviver sem o apoio ou a aprovação masculina, para criar a sua própria carreira e ser uma mulher forte e capaz.

Apesar de tudo, há coisas inerentes à época às quais ninguém escapava. Sei que a minha avó não tinha passaporte próprio e estava “ligada” ao passaporte do meu avô, bem como filhos menores de idade.

 

Para uma menina nascida em 1994, a ideia é abstrusa.

Sei que as mulheres tinham como principal objectivo de vida casar e criar família, que as escolas eram só femininas ou só masculinas, nada de misturas. A minha mãe conta que não se podia ir sem meias para a escola. As actividades extracurriculares passavam por cozinhar, lides domésticas, coser e bordar e até tomar conta de bonecos, para treinar o lado maternal, enquanto os rapazes tinham desporto e actividades físicas.

 

A família vinha antes da carreira. Para as mulheres da sua geração, a equação é outra. É como conciliar as duas parcelas. Pensa no assunto?

A ideia de viver apenas para casar e ter filhos, confunde-me. Não consigo imaginar-me enquanto mulher submissa ou alguém cuja carreira é marginal ou inexistente. Não fui educada a pensar dessa forma. A minha mãe sempre trabalhou arduamente enquanto criava duas filhas, geria uma casa e um casamento. Não só foi capaz de o fazer como fez um trabalho bem feito. Acredito que se ela foi capaz, também serei.

 

Os seus pais têm uma forte ligação à política. É tão politizada como eles eram com a sua idade?

Tendo crescido rodeada de conversas políticas, tentei afastar-me o mais possível. Neste momento é diferente. Sinto-me mais interessada, pergunto-lhes o que se passa. Os meus pais tiveram de criar a sua própria sorte – a minha mãe era filha de contabilistas e o meu pai de uma professora e de um agente comercial. Os desafios deles foram mais pontiagudos que os meus. Subiram na vida por mérito próprio, o que lhes deu uma grande capacidade de luta. O envolvimento na política da parte deles pode também ter nascido das épocas que atravessaram, do desejo de ser parte da mudança.

 

Quais são os desafios da sua geração?

Falando da minha geração, é inevitável falar de emigração. E a escolha da área de estudo foi complicada para todos os meus colegas. Todos pensavam no que “dá saída”. Não escolheram com o coração, mas sim a medo.

 

Agora escolhe-se em função da empregabilidade. Na geração dos seus pais, eram tão poucos licenciados que esses tinham emprego certo. Grande mudança.

Sim. A preocupação deixou de ser fazer o que se gosta. O mais importante agora é aprender a gostar do que se faz, seja isso o que for.

 

E a competição é feroz. Sente essa pressão?

Penso que a minha geração sente uma pressão enorme para “ser o melhor”. Aprender a maior quantidade de línguas possível, tirar cursos e mestrados, trabalhar em part-time, fazer estágios e enriquecer o currículo. A questão da emigração está presente na cabeça de cada um de nós, mas há um nível de exigência que eu não vi na geração dos meus irmãos.

 

A democracia parece-lhe uma evidência?

Não consigo imaginar a minha vida numa época que não esta, muito menos nos tempos da ditadura salazarista. Parece-me um mundo irreal e é difícil imaginar que se passou tão “recentemente”. É suficientemente recente para os meus pais serem capazes de relatar episódios e histórias de então. Fico com os olhos arregalados de espanto.

 

Na escola, estudou a revolução dos cravos?

Foi assunto muito falado na escola, ajudado pela leitura obrigatória do “Felizmente Há Luar” [Sttau Monteiro], um dos meus livros preferidos. Deu-me uma ideia do ambiente e da opressão sentidos na época.

 

Viveu em Bruxelas, vive agora em Inglaterra. Países muito diferentes de Portugal. Que coisas funcionam melhor lá do que cá?

A educação. Cá, sinto que somos educados para acertar nos critérios dos exames nacionais. Pensamos “em caixinhas”. Cada estudante tem de ter palas nos olhos. Não nos ensinam a saber pensar, ensinam-nos a decorar e a seguir os critérios do ministério, mesmo quando fazemos algo como interpretar poesia. Tantas vezes ouvi a frase: “Está muito bem pensado, Constança, mas não é o que o Ministério quer”. No meu primeiro dia na universidade, disseram-me que não há uma única resposta certa. Obrigam-nos a pensar por nós próprios – ou dito à inglesa, out of the box.

Além disso, Bruxelas e Londres são cidades multiculturais. Diria que é essa a maior diferença.

 

Uma e outra contêm uma amostra do mundo todo. Como é que isso a tocou?

Dos amigos que fiz nestas cidades, nenhum é oriundo da própria cidade. Não há categorização, não nos organizam em “gavetas”. Em Londres, seja quem for, tem espaço na cidade. Isso faz com que toda a gente se sinta integrada, o que nem sempre acontece em Portugal, onde estamos demasiado preocupados em apontar dedos e bichanar nas costas.

 

O que é que percebeu acerca da sua portugalidade estando fora?

Em Bruxelas, como não havia feriado nacional no 25 de Abril, pintávamos as caras com bandeiras, levávamos cachecóis e camisolas da Selecção Nacional. O 25 de Abril era uma forma de mostrar o amor a Portugal. Agora aprecio o meu país por outros motivos. Moro com uma norueguesa, dois ingleses, um búlgaro e um libanês. Comparamos os nossos países, pontos de vista. Começo a reparar que nos subvalorizamos muito.

 

Subvalorizamos? Pode explicar?

Para os portugueses, somos aquele país no cantinho da Europa, que é demasiado pequeno para valer alguma coisa. Eu também pensava assim e agora discordo. Somos melhores e mais desenvolvidos do que o que pensamos.

 

Por causa da crise, estamos zangados com o país e em especial com os políticos. Ouvem-se pessoas a dizer que “dantes é que era bom”.

Quando eu era mais nova, essas expressões não me afectavam tanto, porque é um traço tipicamente português, a insatisfação com o presente, a nostalgia do passado. Agora sinto tristeza, porque sei que estas frases nascem de uma falta de esperança e motivação que nunca vi nos portugueses. Mesmo a minha geração já é adepta do “no meu tempo não era assim”! É triste quando os adolescentes falam como idosos e não conseguem ver futuro no seu país, no país que desejariam não ter de abandonar.

 

Consegue fazer um retrato, a traço grosso, de Portugal e dos portugueses?

Não somos só faladores e barulhentos. Ou preguiçosos e constantemente atrasados. Somos isso e muito mais. Somos um povo com História, com valores, música, memórias e personalidades fortes. Somos um povo que faz o melhor que consegue com aquilo que tem – sem nunca pararmos de nos queixar! – mas que demonstra uma coragem que outros não têm. E é forte e criativo.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Abril de 2014