Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Cristiana Miranda

31.07.14

Cristiana Miranda nasceu em 1983. É realizadora. O que é que vimos dela? Por exemplo a chuva de azeitonas num anúncio do Oliveira da Serra. Entre a publicidade e o cinema, entre Londres e Lisboa, mostra que o segredo está… no trabalho. Vejam como ela olha.

 

Porque é que se mudou para Londres? É também um modo de perguntar em que momento decidiu pegar na sua vida e fazer dela um enredo extraordinário.

O meu filme, em relação à minha viagem para Londres, começou quando tinha 18 anos. A maior parte dos cursos que encontrava em Portugal tinha uma componente fortemente teórica, e pouco prática. Não queria cair no erro de fazer aquilo que muitas pessoas que eu conhecia faziam, que é seguir os passos dos pais. Se os pais são médicos, são médicos, se os pais são advogados, são advogados. Estava confusa em relação ao que queria seguir. Mas em Londres podemos misturar ciências e fotografia no mesmo curso.

 

Conte-me do que está para trás. Contextualize a sua família, o meio social em que se movia.

Nasci em Lisboa. Estudei nos Salesianos no Estoril. Tive a grande vantagem de os meus pais gostaram muito de viajar. Quando tinha oito, nove anos, em pleno Verão, o meu pai decidiu pegar no carro e fomos até à Noruega. Acampámos, ficámos em hotéis, conhecemos a Europa toda. Apesar da minha idade, tenho memórias nítidas de coisas que se passaram. Lembro-me de ter achado a Holanda o país mais fantástico do mundo porque tinha auto-estradas para bicicletas. Ficou desta experiência a cultura de viajar de carro, ver paisagens, tentar perceber o que se passa à nossa volta.

 

Tudo isso importa, mais adiante, para perceber como é que se forma a sua identidade artística. Como aprende a olhar.

Há também uma curiosidade em saber como vivem outras pessoas, como é que se comportam. O facto de ser exposta a culturas diferentes fez-me olhar para as características que definiam as pessoas, lidar com as expectativas (eu achava que em Paris as mulheres vestiam todas Christian Dior e passeavam cachorrinhos). Foi também importante receber dos meus pais muita liberdade, o que me obrigou a ser responsável. Aos 18 anos, senti que não podia ter a vida fácil. Como dizem os ingleses, I dont want take it for granted.

 

Consegue perceber melhor a recusa desse conforto, a razão de não querer ter isso como adquirido?

Às vezes, é preciso pormo-nos numa situação de risco. Queria sentir que era o meu valor, a minha garra, a minha ambição que estava em causa. Era também o ser rapariga, nesta profissão.

 

Contam-se pelos dedos da mão as realizadoras. Já lá vamos. Antes disso: qual era o seu quadro de vida em Londres? Partilhava a casa com cinco pessoas? Trabalhava em part-time?

Não conhecia ninguém, a não ser um amigo que me ajudou. A sobrinha da dona da casa tinha um quarto para alugar. Começou assim. Passados três meses respondi a um anúncio no jornal, mudei de casa e conheci uma senhora fantástica, de 60 anos, a Drussila. O nome é como ela: qualquer coisa de muito especial. Filha de condes russos, casou muito nova, e aos 20 anos decidiu que não era aquilo que queria; tornou-se modelo, viveu os sixties, era fotografada pelo David Bailey. Criar faz parte do respirar dela. Viveu uma vida diferente do rumo que lhe tinha sido traçado.

 

E esse aspecto já entronca na sua história.

Sim. Não queria usar a palavra rebelde, que tem uma conotação pejorativa. Mas gosto da aventura. Gosto de ver que há mais coisas do que aquelas que estou a ver. Drussila ajudou-me a solidificar uma ideia que vinha de trás, dos meus pais e do meu irmão: a de que tudo está em aberto. Os meus pais nunca me disseram: “não vais conseguir” ou “não, não é possível”.

 

Até onde é que experimentou o desconforto?

Não posso ser dramática. Sempre tive uma boa qualidade de vida. Mas a adaptação a Londres foi dura. É tão diferente culturalmente, o acesso às pessoas, a rapidez com que se vive. É duro sobretudo quando estamos numa fase de nos descobrirmos. Tive muito medo de errar. Mas no fundo, no fundo, sabia que era nova o suficiente para voltar atrás se a aposta estivesse errada. Tento transformar o desconforto como uma coisa a ultrapassar, e não como um desafio cuja pressão não consigo aguentar.

 

O seu sonho era o cinema. A publicidade acabou por ser uma derivação desse sonho original. Que filmes queria fazer?

A publicidade foi um acidente. Quando fui para Londres sabia que queria trabalhar com imagem, com fotografia. Era obcecada por fotografia de moda. Desde os 12 anos que coleccionava editoriais de moda. Tudo o que Richard Avedon fotografava, eu tinha.

 

Nesse universo, tradicionalmente, a mulher é o objecto fotografado, não o sujeito que fotografa. Ela está no coração do anúncio, mas não dirige o anúncio.

Não era a imagem da mulher que me fascinava, mas a concretização. Como conseguir uma performance fenomenal numa imagem estática? Em Londres, a meio do meu primeiro ano, peguei numa câmara, comecei a filmar e percebi que queria ser realizadora. Disse: “É isto”. Não sei explicar o clique que aconteceu, mas foi imediato.

 

Qual era o assunto? Ou interessava-lhe todo o edifício do cinema?

Gostava muito de cinema brasileiro. Walter Salles, Fernando Meirelles. Sempre gostei de histórias reais que nos fazem questionar o que é que faríamos se fôssemos aquela personagem.

Gosto muito do Alejandro Iñárritu e do David Lynch. A história que eu gostaria de realizar é uma mistura do 21 Gramas com o Mulholland Drive. Gosto que o autor não me diga o que devo pensar ou sentir. Gosto que me dê esse espaço de interpretação.

 

Estava no mundo do cinema, antes da deriva para a publicidade, quando entrou para uma produtora como recepcionista. Como é que tudo aconteceu?

Acabei o curso Media Studies, na University of Westminster. Pelo meio, trabalhava num clube de vídeo para poder levar os filmes para casa… Nos últimos seis meses do curso fiz o equivalente a um Erasmus na Austrália. Matrix e A Guerra das Estrelas tinham acabado de ser filmados em Sydney. Quando voltei a Londres comecei a procurar trabalho. Fiz um pacto com os meus pais: tinha seis meses para saltar de estudante para trabalhadora. Fiz uma lista dos 10 filmes que estavam em produção e nos quais gostaria de trabalhar. À cabeça estava Mrs Herderson Presents, do Stephen Frears. Contactei-os. “Sou estudante, posso passar algum tempo aí?, sirvo cafés, faço o que for preciso”. Depois de uma semana à experiência, no escritório da produção, contrataram-me para trabalhar um mês. Pagavam-me uma coisa simbólica, mas podia estar sentada ao lado do Stephen, ver como ele fazia, ver o que eram filmagens, ver o que era um set

 

… ver o que era dirigir uma actriz como Judi Dench.

Tem uma força incrível, um dom magnético. Inspira, faz-nos querer fazer parte desta indústria. O filme acabou. Explicaram-me que precisava de um agente, mesmo que estivesse a começar. Passados dois ou três dias, comecei a trabalhar com uma fotógrafa de moda (que tinha sido assistente do Nick Knight). Passado um mês, a produtora Knucklehead, que estava a ser montada de raiz, propôs-me trabalhar como recepcionista. Eu não sabia nada de publicidade, mas era preciso ser realista: não estava numa fase em que pudesse recusar projectos. No primeiro dia montei o telefone. Passava o dia, não só a atender telefones, mas a fazer pesquisa de imagens. Comecei a dar-me muito bem com os realizadores. Referiam uma imagem com a Cindy Crawford…, e eu sabia quem tinha sido o fotógrafo, em que ano tinha sido tirada.

 

Passo seguinte: como é que começou a trabalhar para o Discovery Channel?

O Discovery Channel propôs aos realizadores da empresa que dessem ideias para o canal. Perguntaram-me: “Não queres fazer uma proposta?”.

 

Foi sua a ideia de fazer um mini-documentário com a Dita von Teese? Porque é que ela a fascinava?

A Dita vinha fazer actuações ao Lux. O link com a Dita partiu, estranhamente, de Portugal, e de pessoas que a tinham visto ao vivo. Visualmente é tão apelativa… Fiquei empolgada quando comecei a descobrir o mundo dela. E quanto mais descobria, mais fascinada ficava. Ela era obcecada pelos filmes e pelo look dos golden years de Hollywood. Mudou o nome, a imagem. Uma borboleta. Transformou-se.

 

Assistiu alguma vez à metamorfose? Viu-a de cara lavada?

Nunca. A Dita não faz isso. Acredita que beleza tem de passar por transformação, mas com um conhecimento enciclopédico do que isso representa.

 

Tinha 20 e poucos anos quando a dirigiu. Teve sempre confiança em si? Achou desde o princípio que era capaz?

Acho que sou capaz de fazer seja o que for. Não quer dizer que acredite que seja talentosa ou extraordinária. São dois tipos de segurança. Acredito que o talento vem 90% do trabalho, e que tem de ser construído. Conheço muita gente com talento que nunca vai ser reconhecida; falta-lhes a parte da concretização. Se calhar, eu sou menos talentosa naturalmente, mas trabalho o suficiente para compensar isso. Numa série de pessoas que admiro, o talento advém do trabalho e de uma necessidade de fazer mais. Quando percebi que isso é a receita do sucesso, não tenho medo de apostar.

 

Tem trabalhado com nomes conhecidos. O piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton ou a cantora Dido. Como é que não se deixou deslumbrar ou intimidar por pessoas que nos habituámos a admirar? Como é que aprendeu a olhar para eles como pessoas com quem se trabalha?

A única pessoa em frente à qual os meus joelhos fraquejaram, por ser um ícone tão grande, foi o Daniel Day Lewis. O resto das pessoas que conheci e com quem trabalhei: estou sempre mais interessada em ver o que está por detrás, e menos na fachada. No primeiro olhar mostro-lhe que não as vou tratar como pessoas diferentes. 

 

O seu olhar, a sua maneira de realizar, traduz uma síntese, uma multiplicidade de interesses, condensados num trabalho árduo?

O que caracteriza o meu olhar é realmente a concentração de influências que venho trazendo, misturada com um grande interesse em descobrir pessoas. O que está por detrás de um olhar, um gesto, uma palavra. Odeio a palavra, mas vou usá-la: gosto de fazer as coisas de forma orgânica. Presto atenção ao instinto. Sabendo que o instinto também é formado por informação que vamos acumulando.

  

 

Publicado originalmente na Máxima em 2010