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Anabela Mota Ribeiro

Cristina Branco

22.10.15

Cristina Branco é cantora. Vive entre Portugal e a Holanda. Tem uma cara portuguesa. Júlio Pomar pintou-a para ilustrar a República. Tanto canta Zeca Afonso como Joni Mitchell. O fado é a sua casa-mãe.

 

Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Ou seja, um tempo esvaziado de ideologias, onde a política foi engolida pela finança. Onde fica o oásis?

Sim, um deserto, uma construção de pseudo-perfeição. As guerras fazem-se com números, a tortura com ameaças ao cidadão e à sua construção do quotidiano. O oásis está na mente que, por enquanto, continua a ser livre. 

 

Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Discute os cenários, coligações, candidatos de uma e outra? Discute política? Que espaço é que ela ocupa no seu dia a dia? Os seus amigos: diria que estão mais alheados da vida pública, mais participativos depois dos anos de crise?

Discuto, em casa, em família. Fala-se muito, mas quando me manifesto fora de casa sinto, infelizmente, que tenho que ser cautelosa. Tenho que calcular a quem me dirijo e como vão ser interpretadas as minhas opiniões.

 

Cautela? Pode ser mais explícita?

Digo cautela, sim. Não me manifesto em redes sociais, por exemplo, porque ouço dizer (e vejo) a agressão gratuita que se instalou só porque alguém tem uma opinião. As redes estão a formatar o indivíduo para o “direitinho”, a felicidade imanente. O “horror” pode ser, mas tem que vir de fora, de algum lado que una as massas numa causa humanitária. 

Eu manifestei o meu desagrado, um dia, e não sei se como mulher se como cantora, claramente essa opinião prejudicou-me.

 

Como é que explicaria a um jovem que vai votar pela primeira vez, e que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita? O eixo que as divide está onde? Ou, na prática, não o vê e tudo conflui no centrão?

Estou nessa fase. O meu filho mais velho tem 12 anos e tenta perceber. Eu lá vou tentando explicar, tentando definir as linhas gerais de uns e outros. Mas, na prática, sei que o que ele vê. E na voragem de viver e perceber tudo o mais depressa possível –para seguir caminho – vê apenas uma grande interrogação desapaixonada. Usa frequente a frase: “Afinal, este é de quem?”. Como num jogo de futebol... O Martim não está assim tão longe da realidade.

 

“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?

Meia dúzia de fotografias que nos lembrem de onde viemos. Os livros que nos marcaram e ajudaram a decidir quem queríamos ser. E o desejo, a paixão pelo começar de novo. 

 

O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?

Quando penso na geração que está a despontar para a vida agora, e para as vindouras, penso realmente (e com muita tristeza) que o futuro joga contra eles. Nós tivemos muito mais oportunidades, apesar de tudo. De crescimento. E penso que a minha geração (e a anterior) lhes amputou o futuro. Porém, esperança é ainda uma palavra que uso muito. Acredito, e talvez tenha fé, que o gene Bom dos homens prevaleça. 

 

Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado, posto em causa, que urge fazer cumprir?

O direito à expressão! Será que somos realmente livres de dizer o que pensamos? Ou, para conseguirmos edificar, temos que perder o livre arbítrio?

 

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo? De certo modo estou a perguntar pelo que o faz seguir um caminho, investir num sonho, promessas e decepções.

Esta é a história da vida: sonhar. Sonhar porque é próprio da humanidade sonhar. Eu, até há uns anos, achava que não havia lugar para o sonho porque a minha realidade era tudo isso! Aconteciam-me coisas que nem sequer conseguiria sonhar. Depois veio a vida como ela é. Sem rede. Quando tive que engolir lágrimas, desaforos e defender o meu reduto. Veio o tempo de aprender com erros, de perceber o que é a amizade, do fundo do ser. E aqui, sim, exposta à vida, permito-me sonhar de verdade .

 

Outro verso de Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal? O que é que o toca mais?

São tantas as frentes que se torna difícil enumerar o que mais me choca ou toca. Certamente a fome. Pensar que há pais que não conseguem dar o básico aos seus filhos, magoa-me como cidadã, como mãe. Não deveria um Governo de uma nação garantir um Estado Social, defender os seus cidadãos como primeira instância? 

 

Oficialmente saímos da crise. Com cautelas, uma parte da população recuperou hábitos anteriores à chegada da Troika. À esquerda ou à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Pessoalmente, aprendeu? E o país, aprendeu? O que é que significa este aprender?

O que é viver acima das possibilidades? Os portugueses estagnaram de vergonha (também) por lhes terem chamado preguiçosos. A meu ver serviu apenas para amedrontar. Serviu de ariete contra quem ainda trabalha e faz o que pode por se manter à tona. Aprenderam o quê? Que lição foi essa? Ensinaram-nos a confiar nas instituições?

 

Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?

Um abraço apertado que me dê confiança.

 

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?

Tenho inúmeras. O Verão determinou sempre o meu crescimento. Senti sempre que passado esse tempo eu era outra. Maior, mais desperta, esclarecida. O Verão dos dias compridos de praia, das leituras e de ficar invisível a ouvir a família contar histórias. Não por me esconder, mas por ser silenciosa – até os outros se esquecerem de que estava ali. 

 

Pode fazer um curto auto-retrato?

Tenho 42 anos, 18 de trabalho, os dentes todos, saúde de ferro e uma vontade férrea de continuar a Ser.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015