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Anabela Mota Ribeiro

Dama Bete

22.03.14

Tomámos um capuccino num hotel fino de Lisboa. Ela está sentada à minha frente e tem um corpo franzino, uma voz frágil, uma atitude quase dócil. Custa a identificar aquela como sendo a Dama Bete desafiadora, segura, afirmativa, que está, por exemplo, na capa do disco “De igual para igual”. Ou a Elizabet que não baixou os braços e que não quis desistir. (As suas colegas, como diz, foram mães adolescentes). Talvez tudo fosse diferente se não fosse o rap. “Quando começo a rappar, eu transformo-me!”, esclarece.

O disco tem dois temas que rolam nas rádios e televisões: “Cala-te” e “Definição de amor”. Mas há mais. A atitude, o universo, uma estética americanizada que se abre ao R&B e à cultura europeia. O seu flow (ou seja, a forma de rimar, de brincar com as palavras) é importante, mas não é o mais importante. Dama Bete tem coisas para dizer, e di-las.

 

Comecemos por palavras suas. “Já percorri caminhos em que me perdi/ já tive sonhos que nunca foram cumpridos”. “Destino: tenho que aceitar?”. Quando é que percebeu que o seu destino estava nas suas mãos?

Quando era criança, ia à catequese, ia à missa. Achava que tudo estava nas mãos de Deus, que já havia um destino e que nós só tínhamos que obedecer. Ao mesmo tempo, uma parte de mim era contra isso. Aos 16, 17, quis tomar as minhas próprias decisões. Escolher o curso que queria, impor-me contra os meus pais. Percebi que comandamos o nosso destino. Se lutarmos, conseguimos. Apesar de haver coisas que não escolhemos, como o sítio onde nascemos, a família, a raça.

 

Há um momento em que acredita que os sonhos se podem cumprir. Fale-me de como é que percebeu o que queria, acreditou que era possível, e foi por aí.

Sempre fui uma pessoa muito criativa. E impulsiva… No momento apetece-me fazer uma coisa?, acabo por fazer. Desta forma fui-me encontrando. Fui encontrando aquilo que queria ser. Muita gente dizia que estava perdida. O meu irmão: “Tu nunca sabes o que queres”. A minha mãe: “Hoje queres isto, amanhã queres aquilo”. Mas foi esse poder, de experimentar, que me levou ao meu caminho.

 

Que percurso está para trás, até encontrar o seu caminho?

Aos 10 anos, tive uma professora que nos incentivava a escrever poesia. A minha escola ia mudar de nome e passar a chamar-se Matilde Rosa Araújo. Ganhei o concurso, conheci a Matilde Rosa Araújo, pensei que se calhar tinha talento para escrever poesia. Eu tinha boas notas. Até ao sétimo ano tinha cinco a tudo. A partir do sétimo, deixei de me identificar com as minhas colegas. Passei a dar-me com pessoas que viviam em bairros sociais (bairro das Marianas e bairro de Matarraque) que ficam perto da minha casa, na Parede. Percebi que havia outras realidades, comecei a ouvir rap e música negra. Quis falar na minha poesia – que já não era sobre as árvores, o céu – dos problemas da sociedade, de coisas que eu via e que não achava justas. As notas baixaram.

 

Até aí, quis ser médica.

A minha média era 16,7. O meu pai: “Disseste sempre que querias ser médica e agora já não queres?”. Quis cinema, vídeo e comunicação multimédia. Algo em mim chamava-me para um curso ligado às artes. Fui, estudei um ano e desisti. Já começava a fazer música e levava-a a sério. Desisti da Universidade Lusófona, onde a propina era cara… Fui para uma universidade pública estudar Gestão do Lazer e da Animação Turística. Com o intuito de estar ligada aos eventos. Neste momento estou na Restart para aprofundar os meus conhecimentos.

 

Nasceu em Moçambique, veio aos dois anos para Portugal. Como é que descreveria e situaria a sua família, e como é que isso determinou o seu percurso?

Em 1986, quando vim para Portugal, em Moçambique havia uma guerra civil. E havia fome. O meu pai é português, a minha mãe é moçambicana. O meu pai queria que viéssemos para Portugal. Poderíamos estudar e ter uma melhor vida do que aquela que tínhamos lá. Somos três filhos do meu pai e a minha mãe tem mais três filhas. O meu pai continuou a trabalhar lá, na exportação de madeiras para a África do Sul. Sempre vivi só com a minha mãe, a minha irmã e o meu irmão. O meu pai, o contacto que tive, foi: pagou os estudos, foi o sustento da família. Acompanhava a nossa vida e as nossas decisões. Sempre disse aos amigos: “Esta vai ser médica”. O meu pai, que tem família espanhola, ainda quis que eu pensasse estudar medicina numa universidade espanhola. Não queria desistir da ideia de eu ser médica.

 

O desejo de ser médica passava também por uma afirmação social?

Acho que sim. Mas um lado de mim gosta mesmo de ajudar os outros, da intervenção social. Fiz um estágio no [Centro] Porta Amiga, da AMI.

 

De onde vem o desejo de intervenção social, que está muito presente nas suas letras?

Tem a ver com o facto de a minha mãe ser moçambicana, negra. O meu pai parece indiano, o pai dele era mulato e a mãe branca. A minha mãe nunca teve os mesmos direitos dos portugueses. Sempre que eu queria fazer alguma coisa, a minha mãe não tinha dinheiro para isso, ou não tinha forma de tratar disso. Não tivemos direito a subsídios para livros ou transportes, abonos familiares. O meu pai, não estando presente, não havia quem tratasse. Trato dos meus documentos desde os 14, 15 anos, sozinha. Revia-me nas pessoas dos bairros sociais porque eles tinham os mesmos problemas.

 

A vossa condição era: não viviam num bairro social, mas tinham uma vida material próxima daqueles que viviam num bairro social.

Sim, muito próxima. Eu não me indentificava com os meus colegas cujos pais iam buscá-los à porta da escola. Nunca pude fazer nada. A nossa viagem de finalistas do nono ano era aos Açores e eu não tinha dinheiro para ir. No último dia, a professora ofereceu-me o bilhete. São realidades que quem está de fora não percebe. Por exemplo, acabei a faculdade e só um ano e tal depois pude pagar a propina e ter o diploma. Porque é que não pedi bolsa? Porque nunca foi aprovada. Faltava sempre um documento, qualquer coisa.

 

O que se passa nestas letras é bastante autobiográfico?

É denúncia. Quando escrevo, também penso na situação de pessoas que observo. Na Porta Amiga da AMI, de dia estava com crianças, à noite com idosos. Olhava para as crianças e pensava: que futuro é que vão ter?

 

A pobreza determinou a sua vida?

Sim. Não conseguir ter coisas que queria… Está na letra do “Já”: “Já quis ser tanto e nunca consegui”. Havia pessoas na minha turma que jogavam ténis; “Mãe, quero jogar ténis”, “Onde é que está o dinheiro?”. Nunca joguei. Ou ballet. Só pratiquei os desportos escolares. Outra coisa: a minha mãe nunca teve carro. Era preciso vir das compras com os sacos carregados, ajudar. Mas isso também me deu força.

 

Alimentou a sua vontade de vencer?

Eu não queria aceitar que aquele fosse o meu destino. Na minha música “Destino”, o “Carlos” conhece o seu “irmão gémeo”; o irmão tinha-se tornado em tudo aquilo que ele queria ser. Ele, “Carlos”, desistiu de lutar, aceitou o que era. Eu nunca quis aceitar. As pessoas sempre me disseram: “A música não dá dinheiro”. Quero provar que estão erradas. Ainda não consegui provar [risos]. Mas se é aquilo de que verdadeiramente gostamos, podemos vencer.

 

Houve alguém que tivesse aparecido na sua vida e que tivesse o efeito que o “irmão gémeo” teve na vida de “Carlos”?

Acho que isso aconteceu no primeiro ano da faculdade. Fiz um estágio no Santiago Alquimista (tinha enviado o meu currículo e feito entrevistas, fui aceite). Participei no Festival Musidanças. Foi nesse festival que realmente quis ser artista. Conheci músicos. A Sara Tavares, os Terrakota, o Firmino Pascoal. O Firmino foi a pessoa que mais acreditou em mim. “Tu cantas, vais ter que cantar”. Eu estava apenas na produção do Festival. Saiu uma crítica na revista Blitz, positiva, apontando-me como a artista revelação do festival.

 

Dama Bete é um personagem. A maneira como está e como olha é diferente da da Elizabet que está à minha frente.

Quando tive oportunidade de gravar o álbum, quando a Universal quis assinar comigo, queriam a rapper. Tenho uma grande preocupação com a estética. Não gosto de fotos em que não esteja bem… Tem a ver com o meu lado feminino. Queria que o título do álbum, “De Igual para Igual” me representasse. Que fosse ao encontro dos outros homens que fazem rap. Também estou aqui, também aqui cheguei, também consigo.

 

Há muito menos mulheres a fazerem rap.

Era muito Maria-Rapaz. Daquelas que estão sempre com feridas e que sabem sacar com a bicicleta [fazer cavalinho], dar toques na bola. Não ter o meu pai presente, fez-me ouvir o que o meu irmão dizia. A dada altura, o meu irmão criou um grupo de rap. Comecei a imitá-lo. Levava as minhas letras super-infantis, em que falava da floresta e dos problemas da Natureza. Tentava rimar como ele rimava. O meu irmão criou uma comunidade na internet e não havia raparigas. “Tu não queres fazer uma das tuas musiquinhas?”. Eu era a B.Boss – influência dos Estados Unidos. Já não consegui parar.

 

Na sua página do MySpace, fala da disciplina do hip hop: com pouco fazer muito. E tem outra divisa: do it yourself.

Nós próprios, com o pouco que temos, temos de conseguir fazer. Por exemplo, não tínhamos mais bugdet para fazer um vídeo, e eu queria fazer um vídeo de uma música que dissesse quem sou, que não fosse a música que passa nas rádios e televisão. Então, o meu irmão e eu fizemos o vídeo do “Já”. Eu filmei-me com uma máquina fotográfica e o meu irmão fez a parte 3D. E pronto, fizemos aos poucos.

 

Nunca baixou os braços. O que seria previsível.

Não. A minha mãe diz que sempre fui muito orgulhosa e com a mania que sabe tudo. Também é verdade que dentro de casa sempre fomos muito competitivos, uns com os outros. A jogar computador ou playstation ou megadrive. O que é que queria ganhar? Queria provar que conseguia.

 

Esteve perdida? Fala disso na letra do “Já”. “Já andei perdida sem saber como voltar”.

Quando comecei a perceber e a sentir a injustiça – porque é que uns faziam isto e outros não podiam? –, revoltei-me. Andei com más companhias. Tinha daqueles amigos que as mães não querem que entrem em nossa casa. Não diria que os meus amigos fossem todos assim, mas muitos eram. Tinha um namorado que com 16 anos foi preso. Há uma fase em que as raparigas gostam dos mauzões. [risos] Tinha cabelo rapado de lado, rabo de cavalo, ténis da Nike, fato de treino. Eu conseguia ver o outro lado. Viam-no como um ladrão, que roubava telemóveis, que andava sempre à porrada. Eu via o lado da injustiça que ele estava a viver; o pai que faleceu cedo, a mãe que não ligava, não estar na escola aos 14 ou 15 anos. No fundo, é bom rapaz.

 

O que é que não a fez resvalar para o outro lado?

Eu sempre quis continuar a estudar. Sempre tive o sonho de ser alguém. Às vezes não sabia o quê, mas tinha o tal sonho de vencer, vencer pelo meu esforço. Os meus amigos dessa altura: as raparigas, quase todas, tiveram filhos aos 16, 17 anos. O meu ex-namorado foi preso mais duas vezes. O meu irmão também já esteve perdido. Desistiu dos estudos no 12º ano, passava a vida a dormir. Um dia decidiu voltar e com 23 anos inscreveu-se em engenharia multimédia.

 

O que é que os seus pais dizem do seu disco?

A minha mãe gosta. Apesar de não dizer, sei que tem orgulho, e fica feliz quando perguntam: “A sua filha é a Dama Bete?”. O meu pai não tem noção do que se passa cá. Sempre que liga, pergunta: “Então, já arranjaste emprego?”.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2008