Daniel Blaufuks
O que é um flâneur? É alguém que se passeia por entre a multidão. Sem destino. Imerso na multidão, mas suficientemente distanciado para poder traduzi-la na sua acção poética. Baudelaire, fundador do conceito, vagueava pela cidade de Paris, atormentado pelo tédio. Daniel Blaufuks vagueia pelo mundo. É também um passeante. O seu elemento de viagem é a melancolia.
Nasceu em Lisboa em 1963, é fotógrafo. Diz-se dele que fotografa a solidão, a espera em momentos suspensos do quotidiano. Expõe no mundo inteiro.
No seu auto-retrato mais famoso aparece com binóculos. Não tem uma máquina fotográfica, que seria o esperado. Os binóculos servem para observar mais atentamente. E nas suas fotografias há um olhar muito apertado e concentrado sobre cenas do quotidiano.
Os binóculos servem para observar mais atentamente, sim. E servem para ganhar uma distância em relação ao que estamos a ver. Há uma duplicidade: vemos ao perto e conseguimos aumentar a distância em relação a esse objecto. Tem esse lado de observador, de voyeur, que está intimamente ligado à fotografia. Como o nome indica, um binóculo são bi-óculos, dois óculos, que é uma diferença em relação à fotografia, que é um monóculo.
Quando é que tem noção de si a observar?
Quando escrevo sobre isso. Não só com palavras, também com fotografias. A exposição que esteve na Gulbenkian é um assumir desse contar de histórias, a partir de acontecimentos concretos, mas alterando essas histórias, ficcionando por cima dessas histórias. E ao fazê-lo, há uma certa distância. O próprio trabalho sobre a memória é um trabalho ganho com distância. Metade das nossas memórias são ficção, porque são construídas.
É fascinante pensar no que a memória retém autonomanente, no que ela guarda sem o nosso consentimento.
E daí pode falar da memória como máquina fotográfica: porque é que escolheu aquilo e não outra coisa? Se compararmos memórias de várias pessoas sobre um mesmo assunto, vão-se lembrar de coisas diferentes. Se falar com amigos de uma noite de há dez anos, vão lembrar-se de detalhes diferentes.
Walter Benjamin encontra na fotografia um carácter redentor. Apesar da multiplicação que a fotografia permite, e que retira unicidade a cada Ser, é possível resgatar o fotografado a partir do momento em que foi fotografado. Não é possível anular a sua presença naquele instante, registado naquela fotografia.
Ao eleger aquela pessoa, aquele momento, aquela pessoa naquele momento, está a fazer uma opção de tornar aquele momento mais duradouro. Ele vai durar pelo menos o tempo que aquela fotografia existir, como momento. Mas transformando-se noutros momentos. Passa de um momento em que a pessoa que fotografa vê, e depois ultrapassa isso ao dar a outras pessoas, noutros momentos, a possibilidade de observarem aquele momento, aí já num ponto de vista fechado.
Fechado, mas não hermeticamente. As pessoas podem fazer leituras a partir das suas fotografias. É um modo de se acrescentarem e de acrescentarem algo à fotografia. Isso interessa-lhe, a si, que narra com imagens?
Interessa. Não há nada tão sugestivo para mim como receber um email de alguém que nunca vi na vida, que vê as minhas fotografias e constrói a partir daí uma história que é dele, ou que se revê nessa minha história.
Porque é que é tão estimulante?
Porque é diálogo. Arte, apesar de tudo, deve ser uma forma de comunicação. Se conseguir comunicar através do que faz e perceber que isso tem alguma importância na vida de outras pessoas... Não estou aqui para salvar o mundo, mas tenho de acreditar que ao fazer o que faço tenho alguma influência numa ou noutra pessoa. A arte pode salvar. Salvar é uma palavra muito forte... Mas uma obra prima pode ser um momento chave na vida de uma pessoa.
Não sei como é que despertou para a arte.
Nem eu sei! [risos] Na minha família não havia ninguém ligado à arte. Penso que só entrei na arte pela via da fotografia. Quando me perguntam o que é que sou, normalmente digo que sou fotógrafo. A ideia de que a fotografia também é arte parece-me mais do que óbvia. Mas não comecei por dizer: «Vou ser artista». Queria fazer cinema e fotografia e não pensava em termos artísticos.
Foi viver para a Alemanha aos 11 anos. Porquê? Qual é a sua ascendência familiar?
Os avós do lado da minha mãe são judeus refugiados que vieram da Alemanha em 1936. Do lado do pai, eram judeus que vieram da Polónia no fim dos anos 20. A minha mãe nasceu em Portugal, mas toda a estrutura familiar era estrangeira. No filme que fiz, «Sob céus estranhos», conto um pouco essa história. Foi uma infância diferente. Todas as infâncias são diferentes. São muito ligadas às particularidades de cada família.
Foi uma infância em Portugal, mas não tipicamente portuguesa.
Não tínhamos bacalhau e as comidas portuguesas. A minha avó cozinhava comidas diferentes. E, como judeus, não tínhamos propriamente Natal, não tínhamos Páscoa. E principalmente não tínhamos a vivência de ir nas férias para casa dos avós algures em Trás-os-Montes. Ou os primos; os portugueses têm grandes famílias. A minha família eram cinco pessoas e uns que estavam na América ou no Canadá e que de vez em quando apareciam.
Quem eram os cinco?
Os meus avós, a minha mãe, o meu irmão e eu. O meu pai não tem uma grande influência na minha vida porque se separou da minha mãe quando eu era muito novo. Havia uma diferença de que me apercebi naqueles anos, mas de que só me consciencializei muito mais tarde.
Foi por causa dessa diferença que sentiu necessidade de fazer o filme que conta a história de judeus refugiados? Conte-me como é que ser judeu vinca as pessoas.
Vinca. No meu caso de uma forma mais cultural do que religiosa. Foi crescendo a noção de que a quebra na minha família vem de os meus avós terem sido postos fora de um país devido à sua religião. Do seu próprio país. Sentiram-se rejeitados.
Tem uma série de fotografias em que mostra alguns desses rejeitados, cuja memória é recuperada pela acção fotográfica.
No caso dessas fotografias, são rejeitadas no seu país e não foram deixadas entrar em Portugal. Não foi felizmente o caso dos meus avós. A dor para as pessoas como o meu avô... O meu avô não esteve num campo de concentração, teve essa sorte. Mas tem a dor de ter sido expulso de uma comunidade e de um país que pensava que era o dele. Se tentarmos transpôr isso para as nossas vidas é alguém de repente, em Portugal, dizer que não somos portugueses porque gostamos de bicicletas!
É ser posto fora, e ficar sem raízes.
É. É perder toda a noção do seu espaço. E por um factor a que nunca tinham dado muita importância, porque não eram muito religiosos.
Sente a marca do judaísmo mais no plano cultural. Isso dá em quê?
Numa memória comum, que nos últimos anos passa evidentemente pela memória do Holocausto, de pessoas desenraízadas. A ideia de exílio atravessa gerações. Chega até mim.
Acompanha-o um sentimento de errância?
Eu não posso dizer que seja errante. Nasci aqui. Apesar de sair muito, viajar muito, sei que aqui é a minha casa. Mas, ao mesmo tempo, não era a casa dos meus avós. Há um corte. Sei que tenho uma nostalgia dentro de mim. Há uma fractura, e tem a ver com uma questão de família.
Sentiu essa fractura, também, quando foi viver para a Alemanha? Sentiu que o puseram numa terra que não era a sua?
Absolutamente. Com a agravante de, não aos 11, mas aos 16, 17, 18 anos, ter a consciência plena de que aquela era a terra que criou aquele horror e que expulsou os meus avós. Apesar da grande admiração que tenho pela cultura alemã... Vivi na Alemanha entre os 11 e os 20. Em qualquer país teria sido marcante, mas a Alemanha é um país riquíssimo culturalmente.
Aos 20 anos, regressa a Portugal. Antes disso, fez na Alemanha um curso de Gestão. Pensou alguma vez, convictamente, que ser gestor de empresas era vida para si?
Importei bombas hidráulicas durante uns belos meses! Fui director de importação de uma empresa no Porto! Depois trabalhei em Lisboa, fiz o [curso de fotografia no] AR.Co. E de repente surgiu «O Independente», que me permitiu uma profissionalização. [pausa] Há pouco falávamos do interesse pelas artes; o meu interesse pelas artes nasceu porque venho da Alemanha para Lisboa, em 1986, quando se cristaliza a primeira geração do período pós-revolucionário. A geração que não viveu o 25 de Abril muito conscientemente.
Foram para a Alemanha em 76. Há alguma relação entre a ida e a Revolução?
Há. Teve a ver com o facto de o meu irmão e eu não termos aulas no Liceu Camões durante um ano. A minha mãe estava um bocadinho enervada. Mas não tínhamos propriedades a defender ou coisa assim. Essa geração de pessoas que tinham 11 anos no 25 de Abril não era tão politizada como a anterior. Toda a gente estava farta de política, houve um certo desinteresse e desencanto pela política.
Falavam de quê?
Do que as pessoas iam fazer, de cultura, de cinema. Foi uma escola para todas as pessoas envolvidas. Tenho a memória de passar noites seguidas no Bairro Alto, de as tascas fecharem e de virmos a pé pela Avenida da Liberdade até ao Saldanha, onde eu morava, e de irmos para minha casa conversar. Fazer directas a conversar! E nesse processo conheci pessoas que já estavam nas Belas Artes. Teve muita influência.
Passa uns meses por ano fora de Portugal. É uma necessidade imperiosa, já não consegue aguentar o país e tem de partir? Ou fá-lo com o propósito de fotografar, tendo esta como razão capital?
Cheguei à conclusão que fotografo para viajar, mas que viajo para fotografar. Já não sei. Sinto-me claustrofóbico quando estou aqui muito tempo. Não é particular, há muitas pessoas que sentem o mesmo. Portugal é um país muito pequeno e periférico. Ainda que tenha dado passos largos; há hoje uma programação cultural em Lisboa muito boa. O mais difícil é com a criação. Refiro-me ao respeito pelas pessoas que há anos tentam fazer coisas com meios mínimos. E agradecimento. A cultura continua a ser uma palavra de enfeite.
Quando faz as viagens é o flâneur de Baudelaire, ou seja, alguém que está simultaneamente na multidão, mas que consegue distância suficiente para deslizar sobre ela e observá-la? É mais fácil pelo facto de estar num país e numa realidade que não é a sua?
Sim, tenho uma distância completamente diferente. Uma distância irónica que tenho também com Portugal. O Agostinho da Silva dizia que as pessoas deviam todas viajar quando são novas, e é verdade. A viagem dá distância em relação à realidade própria.
É sobretudo isso, um viajante?
Gosto de pensar que sou. Mas em cada sítio onde estou conheço uma pessoa que viaja vinte vezes mais! Admiro imenso as pessoas que viajam pelo puro prazer de viajar, de conhecer outras culturas. Eu tenho sempre o propósito de trabalhar ao mesmo tempo.
Viajar é conhecimento. Ao viajar, deslocamos o nosso eixo. Vamos para Bombaim e Portugal perde toda a importância.
E nesse espaço exótico que importância têm as suas raízes, elas cabem ainda?
Somos sempre o centro do nosso mundo, e é impossível deslocar esse centro. Eu sou sempre eu. E quem é que eu sou? Sou uma pessoa que nasceu em Lisboa, neto de judeus alemães e polacos que tem tentado ver o máximo de mundo que pode, mas que não deixa de ser daqui. Não deixo de ser os livros que li, não deixo de ser as pessoas que conheço, não deixo de ser este espaço.
O céu que o cobre é sempre o mesmo.
Mas posso aumentá-lo. O Fernando Pessoa escreveu: Para que é que eu havia de ir à China se, quando estivesse perante a muralha da China, tudo o que encontraria seria eu próprio? Há uma grande verdade nisso. Ao mesmo tempo, se for à muralha da China e reencontrar-me a mim próprio perante a muralha da China, que é um dado que só posso ter lá, vou encontrar o meu Eu aumentado.
A viagem é, então, qualquer coisa que o engrandece.
Engrandece a maneira como vejo as coisas e os meus pensamentos. E a viagem pode ser daqui a Badajoz. Um livro é uma viagem.
As suas imagens são fragmentos do quotidiano, momentos suspensos. São mais as pessoas e menos os lugares?
Espero que sejam mais as pessoas. Corre-se sempre o risco quando se fotografa em países tão distantes como a Índia de cair no exotismo, no pitoresco. Já fui quatro vezes à Índia e acho que ainda não toquei a superfície. Nunca tocamos. A viagem serve mais para ver a minha existência, e com isso a minha realidade, de outra forma do que para ver esses sítios de modo concreto e aproximado.
Há uma imagem de uma rapariga numa mesa de café. Tem um ar desamparado. Podia ser num sítio qualquer, mas ocorreu-me que fosse na América. O que procura é a intercepção da pessoa com o seu lugar?
E eu nesse cruzamento. Esse retrato, os retratos, vejo-os cada vez mais como auto- retratos. Essa pessoa, se calhar no momento a seguir estava-se a rir imenso. O que reencontro nessas pessoas são olhares, sentimentos, pensamento, e, se quiser, solidão. Esses momentos são também os meus. No fundo, encontramos aquilo que procuramos. E muitas vezes não sabemos o que procuramos, só sabemos quando o encontramos.
A imagem do Lisboa Photo apresenta pessoas em trânsito, acompanhadas por uma luz incerta. Os seus dípticos são isto: a retenção e o movimento.
As minhas fotografias têm muito a ver com esses momentos suspensos que existem mas que vão deixar de existir. Essa fotografia da Lisboa Photo tem muita relação com outras fotografias que tenho: são momentos que acontecem todos os dias, mas que não acontecem da mesma forma. Isto é, aquelas pessoas nunca se vão voltar a encontrar naquela constelação. É como entrar numa carruagem do metro, e parece igual ao dia anterior, e o dia seguinte vai parecer igual; mas o facto é que, mesmo que o mundo se repita anos, décadas, séculos, aquilo nunca vai voltar a acontecer.
Não se pode rebobinar.
É uma conjuntura de acaso e precariedade. Porque é que aquelas pessoas estão juntas? Temos consciência disto quando vemos cair um avião: porquê aquelas pessoas? É a sensação de que estamos sempre à beira do abismo. O próximo minuto pode ser fatal, para nós, para quem está próximo, para desconhecidos. É a sensação de uma perda constante, que existe em cada um de nós.
A melancolia radica aí?
Sim. E a valorização, a intensificação, ao mesmo tempo, de tudo isso. Essa fotografia: há uma massa de pessoas a passar, uma massa urbana que tem muito a ver com o princípio de Benjamin e de Baudelaire. Mas não podemos esquecer-nos de que cada uma daquelas pessoas é uma pessoa, e é uma história. Essa fotografia, voltando aos binóculos, é uma foto à distância que faz um zoom sobre aquela pessoa. No meu filme, em que se fala de milhões de pessoas que morreram no Holocausto, ou que foram exiladas, quando se pega numa só história, isso torna-se muito mais palpável, muito mais real.
Falamos de um processo de identificação.
É. É podermos rever-nos nessas pessoas. São tudo histórias. Somos imensos!, há gente que nunca mais acaba. Mas cada pessoa traz uma história. Cada uma, é singular. Uma das bases de fazer fotografia e arte é uma curiosidade imensa pelo mundo. A condição de artista passa por uma curiosidade imensa. E no querer alargar esse mundo, não querer estar numa ruazinha.
Consegue prever em que direcção vai? O flâneur é aquele que avança entre a multidão sem ter um rumo definido. Vai simplesmente. Goethe dizia que «O alvo da viagem é viajar».
Exacto. Mas o próprio Goethe, quando viajava, fartava-se de escrever! Prevejo até certo ponto, mas tento cortar com as previsões, inflectir, não fazer o que seria suposto. Tenho curiosidade por outras áreas. Faço fotografia como base, mas dou saltinhos no cinema.
Publicada originalmente na revista Elle em 2003