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Anabela Mota Ribeiro

Daniel Oliveira

27.07.21

O que é que interessa o que o Daniel acha? A pergunta é dele. Daniel Oliveira é um dos mais reconhecidos opinion makers da sua geração. Truculento, convencido, raivoso. Político, e antes jornalista. Colunista do Expresso. Comentador da SIC Notícias. Alinhado, com muito gosto. O filho de Herberto Helder que não queria ser conhecido como o filho de Herberto Helder.

Um esclarecimento feito a Daniel Oliveira e que fica para os leitores: não ouvi nenhuma das pessoas que temos em comum. Evitei a sugestão. O que levava para a entrevista era a curiosidade pelo seu percurso, que conhecia mal, apesar de nos termos cruzado profissionalmente. Conhecia o boneco, como ele lhe chama. Pela primeira vez, iria conceder uma entrevista pessoal. O que o deixava nervoso. Embora se tenha falado de política o tempo todo. É possível entrevistar Daniel Oliveira e falar do Bloco de Esquerda, de que foi destacado dirigente, sem uma vez apontar o nome de Francisco Louçã? É. Sem fazer disso uma questão. Se é uma entrevista pessoal, que fique o que deve ficar além da espuma dos dias. Entendimento tácito sobre o assunto.

Afirmou-se no espaço público nos jornais e na blogosfera. Escreve para o Expresso. Na SIC Notícias, é comentador do Eixo do Mal. É um homem da sombra que não resiste ao (eventual) protagonismo da boca de cena. Não jura que não venha a ser um oportunista.

 

 

Quando era pequeno, quem é que era o seu herói?

Ui. Público? Privado? Há os idealizados e os reais. Tinha uma referência: o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi responsável, com a minha mãe e o meu irmão mais velho, pela minha formação cultural e política. Era um herói não reconhecido, como são sempre os que estão ao nosso lado. Foi fundamental para muitas das escolhas que fiz, para [a definição] dos meus interesses. O meu herói público – se calhar isto é deprimente… [riso] – era o Álvaro Cunhal.

Eu ligava muito a política. Anormalmente para a minha idade. Não-anormalmente tendo em conta a época. Tinha quatro anos quando foi o 25 de Abril.

 

Achei que ia responder Lenine. Cunhal, apesar de tudo, estava próximo.

Nunca tive um grande fascínio pela União Soviética. Nem quando fui militante do PC. Na adolescência, os meus heróis (e tinha sobretudo heróis políticos) eram heterodoxos. O Tito e o Berlinguer. Do Tito arrependo-me, do Berlinguer, não. Tinha simpatia por desalinhados. Em criança, não. Em criança, ia para a escola com um emblema do Ho Chi Minh.

 

Quem é que lhe punha ao peito o emblema?

Ninguém. Tinha um interesse que era influenciado pela minha família (o meu padrasto foi deputado à Constituinte, a minha mãe era sindicalista). Fui para os pioneiros [organização do PC para crianças] e a minha mãe achava mal. Eram militantes. Os militantes do PCP, em princípio, são alinhados. Mas eram, do ponto de vista cultural, heterodoxos. E liberais, do ponto de vista dos costumes.

 

Ambiente severo?

Severidade emocional. Não havia uma severidade moral. Financeira, havia por uma questão de necessidade, não por princípio. Não nasci numa família abastada. Nasci numa família intelectual sem dinheiro.

 

Uma família para quem o dinheiro era uma coisa despicienda?

Para quem ele não existia.

 

Mas a vida não era funcionalizada ao dinheiro, como acontecia com muitos dos proletários que defendiam, para quem o dinheiro era a questão central.

É verdade. A minha mãe era funcionária dos Correios, teve quatro filhos; apesar de ser um quadro superior, recebia muito mal. Nunca fui pobre, mas não era sequer de classe média. Não havia luxos, havia livros. Os nossos projectos de vida, meus e dos meus irmãos, o modo como a minha mãe os via, não era em função do dinheiro. As primeiras calças de ganga que tive foi tarde.

 

A discussão é gratuita. E essa havia em abundância na sua casa. Resultava dos livros e do pensar.

Havia. A família materna, com que vivi e cresci, tinha duas espinhas dorsais de identificação: a política e a música erudita. É um clã. Não é uma família muito grande, mas é uma família alargada. Sempre foi, e manteve-se. E muito homogénea. Éramos 13, 14, 15, 16 militantes do PC, só na família. Ainda hoje, a diversidade vai entre o Bloco [de Esquerda] e o PC – é pouca. Arrisco-me a dizer que sou a pessoa mais à direita na família [riso].

A minha avó era professora do Conservatório. Fui o único que não andou no Conservatório em toda a família.

 

Porquê?

Não tenho qualquer talento musical. Gosto de cantar, cantar entre amigos. Tinha uma voz muito rouca. Boa para cantar fado. A minha família não ligava. Eu gostava muito.

 

Era considerado um toque de marialvismo…

Era. O fado tinha uma conotação que não tem hoje. As pessoas achavam graça quando eu cantava fado. Era um miúdo bem disposto, gostava de fazer rir. Um bocado teatreiro. 

 

E sempre era uma forma de conquistar um espaço seu.

A família tinha talento para duas coisas que me esmagavam. É deprimente cantar o Parabéns a Você ao lado deles, porque são todos muito afinados. A minha mãe cantou no Coro Gulbenkian. Uma vez circulou uma partitura e percebi o que era ser analfabeto. Não sabia lê-la. Também tinham todos jeito de mãos. Provavelmente procurava os meus nichos de mercado. Não era tanto revolta.

 

Qual foi a sua forma de rebelião? Em algum momento, de alguma forma, todos nos rebelamos contra a família.

Em coisas pequenas. Na forma como vestia. Era mais betinho. Também foi uma influência de ter estudado no Pedro Nunes. Sempre fui muito provocador. Mas isso é da minha natureza. A rebelião era permanente desse ponto de vista. Entrei aos 12 anos para a Juventude Comunista. Quando falo da minha vida política, ela começou talvez demasiado cedo. Talvez não.

 

Foi há 30 anos.    

Para mim não foi mau. Foi um espaço de socialização como outro qualquer. Há pessoas que saem com amigos, que bebem copos, que vão para os clubes, para os escuteiros, e há pessoas que se envolvem na política.

 

Também era o espírito de um tempo.

Com certeza. E o espírito da minha família. Nunca fui muito disciplinado. A política deu-me alguma disciplina. Capacidade de falar em público. De discutir. Deu-me um interesse direcionado. Tinha algumas características para uma adolescência perdida. Era um aluno irregular, com períodos péssimos e outros em que estava entre os melhores da turma. A escola não me interessava assim tanto. A política deu-me foco, permitiu-me ser consequente. Não ser diletante.

 

Era um pecado burguês, ser diletante?

Continua a ser um pecado horrível. Há coisas em que sei que ficou uma cultura comunista. O que é bom no ter tido esta formação é que é um travão. Detesto a diletância. Detesto-a e muitas vezes identifico-a em mim. A diletância e a inconsequência marcam parte do que faço.

 

As características que apontou, e que adquiriu na política, são fundamentais para a sua afirmação enquanto opinion maker.

A inconsequência também faz parte do trabalho do opinion maker. Falamos de tudo. Um estrangeiro, que não me conhecia, quando ainda não era um opinion maker, perguntou-me: “Você só se interessa por tudo ou interessa-se por alguma coisa?”. Uma pergunta acertadíssima. O problema é que, tendencialmente, só me interesso por tudo. Tenho paixões por coisas diferentes, novas. Inconsequentes. Aí, a política deu-me, mais do que disciplina, um sentido de dever. Enorme. Brutal. Asfixiante, às vezes.

 

Que se traduz em quê?

O que é que estou aqui a fazer? Para que é que trabalho? Qual é a função do que faço? Se tenho palco, para que é que o devo usar? A favor de quem? Sou incapaz de olhar para o palco que me dão e pensar: “Agora vou dizer o que acho, e pronto”. Fui dando provas de que sou uma pessoa livre, que pensa pela sua cabeça. Mas não acho que pensar pela minha cabeça e dizê-lo chega.

 

Esteve quase sempre ligado a grupos políticos. O PC, a Plataforma de Esquerda, e com uma maior exposição pública no Bloco. Mesmo que dê provas de que pensa pela sua cabeça, tem a noção de que é considerado alinhado?

E quero ser. Vejo-me como uma voz alinhada. No dia em que disserem que sou independente, fico triste. Não o quero ser na vida. Quero ser comprometido. Mesmo que venha a não ser de partido nenhum. Como opinador: o que é que interessa o que o Daniel acha? Não é que represente um partido. Fiz sempre por não representar um partido nas minhas opiniões. Mas quando escrevo tenho um compromisso com uma área política.

 

O Bloco?

Não é o Bloco. É mais ampla do que o Bloco. Para simplificar, vai de sectores do PC a sectores do PS. Sou um social democrata. Coisa que a maior parte das pessoas do Bloco não é. Estou comprometido com essa área enquanto forem essas as minhas convicções. Mais do que comprometido politicamente, é um comprometimento social. Costumava dizer (e já não estou a falar como opinador) que numa guerra entre patrão e sindicato, escolho o sindicato, mesmo que o sindicato não tenha razão. O patrão já tem muitos porta-vozes. Não precisa de mim para nada. (Isto é uma metáfora. Até já critiquei sindicatos.) O que quero dizer: eu, com razão, sem razão, enganando-me, acertando, sinto que tenho um privilégio.

 

O privilégio de ser ouvido, de ter uma tribuna.

Um privilégio nunca merecido, obra do acaso, da sorte, de algum talento, seguramente; mas há milhares de pessoas que têm opiniões como eu e que conseguem expressá-las como eu e que teriam direito a ter espaço. Aproveito o privilégio, para usar aquela frase horrível do MR[PP], não para dar voz a quem não tem voz. Não tenho esse direito, de achar que sou porta-voz. Ninguém me elegeu para isso. Mas para tentar, numa agenda mediática completamente distorcida, puxar um bocado para o outro lado. No dia em que não cumprir este dever, não tenho legitimidade para escrever num jornal. Serei apenas mais um.

 

Como é que concilia esse comprometimento e sentido de dever com a liberdade que disse sentir que tem?

É possível. É aliás a única maneira. O comprometimento que não é livre não é comprometimento – é obediência. O comprometimento tem de ser crítico. Penso pela minha cabeça e a minha cabeça está comprometida. Colunistas e opinadores que não fazem parte de uma cultura política são borboletas. Dizem uma coisa hoje, outra amanhã e nada daquilo bate certo. Tenho uma linha de raciocínio, que não é estática, mas que é coerente. É a minha coerência que me permite ser livre. Não recebo ordens para dizer o que quero dizer. Concordarei com 60% das coisas que o Bloco defende. O que é imenso. Há poucas pessoas individualmente com quem concordo em 60%. Não deixo é aparecer 40% com os quais não concordo. Não entro em guerras permanentes com o Bloco. Não faço da minha liberdade uma bandeira.

 

Ultimamente a divergência entre o que pensa e o que o Bloco defende tem aparecido mais.

Tem. Acho que estou a defender, mais coisa menos coisa, o que sempre defendi. O Bloco tem tido algumas derivas que me agradam menos. Não faço disso um drama.

 

Depois de ter saído da Comissão Política, sente-me mais livre para exprimir essa dissidência, o desacordo em relação às derivas do Bloco?

Minto se disser que não. Ser dirigente de um partido [e ser opinador] – e isso pesou para deixar de ser dirigente, por opção própria – [resultava] numa situação injusta para todos. Quando escrevia a minha opinião, muitas pessoas que me liam achavam que aquilo era a opinião do Bloco. Era injusto para o Bloco porque muitas vezes não era; era a oposta. E às vezes havia um desconforto com o que eu escrevia (não que alguma vez alguém da direcção do Bloco me tenha chamado a atenção).

 

Um dirigente pode ser opinador?

Um dirigente pode ser tudo, menos jornalista e juiz e mais duas ou três actividades. Jornalista no activo, ou numa redacção, ou de política. Já critiquei decisões do Bloco em que estive envolvido. Havia qualquer coisa que roçava a deslealdade. Por outro lado, não podia ser desleal com os leitores e dar uma opinião que não era a minha. Percebi que não estava a conseguir gerir bem a situação e que tinha de fazer uma escolha. Só passei a ser comentador nessa altura. Até lá, era um colunista alinhado politicamente. Já só pessoas muito distraídas me vêem como dirigente político. Não sou, e tenho uma actividade partidária mínima. 

 

Não ter actividade política era sequer uma possibilidade, aos 12 anos, quando iniciou o seu percurso político?

Não. Continua a não ser. A minha grande opção, do ponto de vista profissional, não era a política. Decidi que ia ser jornalista na quarta classe. Adorava política internacional. Ofereciam-me o guia do Terceiro Mundo, uma espécie de Atlas político (alinhado politicamente, é claro). Ser funcionário de um partido não estava no meu horizonte. Nunca pensei que viria a ser dirigente partidário.

 

Porque não?

Gosto de estar num partido, mas não sou um homem de partido. Sou um individualista. Sou demasiado egocêntrico, vaidoso, autocentrado. O que torna difícil a convivência num partido. É sempre uma enorme tensão entre o sentido de dever e a minha natureza.

 

Ainda mais para uma pessoa que aponta como ídolo Álvaro Cunhal.

Era um ego-maníaco. Era um autoritário. De uma inteligência superior. Ainda mantenho uma razoável admiração por ele. Mas mandava no partido. Como não acredito em partidos assim, não há espaço para ego-maníacos.

 

Gosta de estar no grupo, nos partidos. Ao mesmo tempo, quer ser protagonista nessa peça que é representada.

Pois. Talvez. Não sei se alguma vez fiz essa escolha. Se era capaz de viver no absoluto anonimato? Era. Nunca quis ser famoso. Os miúdos querem ser reconhecidos; nunca tive isso. Não vou dizer que nunca quis ser protagonista. Todos somos um pouco vaidosos. Se não quisesse nenhum protagonismo, não entrava num programa de televisão. Mas nunca foi um objectivo da minha vida. Ter importância nas coisas, foi. Gosto muito de ter um papel na sombra. Um papel determinante na sombra. E tive. Em vários momentos.

 

Isso é ser o ideólogo?

Ideólogo, estratega, táctico.

 

É o reconhecimento da sua inteligência?

Isso chega-me. Até porque sei que o protagonismo é fácil. É tão mais fácil! Para ser reconhecido basta aparecer. “Gosto muito de o ver na televisão.” Não é: “Gosto muito do que diz”. É preciso ter talentos de comunicação. Não é preciso ser especialmente inteligente. O meu boneco [televisivo] é sempre um bocadinho mais estúpido do que eu. A maior parte dos bonecos das pessoas que conheço são mais estúpidos do que elas.

 

Partes boas do reconhecimento?

Fazerem-nos sentir importantes. Desde que não percamos a noção de que essa importância é falsa… Não terei direito a uma nota de rodapé de uma nota de rodapé de uma nota de rodapé da história de qualquer coisa. Não sou deslumbrado. Gosto de falar de mim, mas isso não é novo. [riso] Mesmo quando ninguém sabia quem eu era gostava de falar de mim. Pelo contrário, a exposição pública reduziu a minha vaidade. Pôs-me no meu lugar. De repente ficamos inseguros.

 

Voltemos ao momento em que se jogam as grandes cartas. Houve um momento em que quis ter uma menção numa nota de rodapé? Um papel mais executor.

Não. Não sei se aguento essa responsabilidade. Uma das razões porque acabei por ser comentador é por que o papel de protagonista tem um lado que me estimula e um lado que me assusta.

 

E se a decisão for errada? – é isso?

Com certeza. É sinal de alguma fraqueza. No Bloco tive um papel relevante mas escondido, e sempre peneirado pelos outros. Tinha um papel nas decisões, mas não final e determinante. Não tenho assim tanta confiança na minha razão. É preciso ter uma grande autoconfiança (e eu tenho alguma) para se decidir o futuro de tanta gente. Sendo um grupo, permite que essa responsabilidade seja dispersa. A decisão colectiva tende a ser mais acertada. Várias cabeças juntas anulam as coisas realmente estúpidas. Não é humildade. É ter a noção dos nossos limites.

 

Em português curto e grosso: é uma questão de tomates?

Acho que os tenho bastante. Se há qualidade que acho que tenho é a coragem.

 

Afronta poderosos. A zanga com o clã Soares dos Santos é apenas um dos casos.

A coragem tem sempre um grau de inconsciência. O que é que me pode acontecer? Nada de especial. Ficar sem emprego. Acho que me consigo virar. Se não corro o risco de passar fome, chega.

 

Vou perguntar de outra maneira: o que é o torna vulnerável?

A melhor maneira? Não me importar de ser vulnerável. Há um lado de arrogância na coragem. Tenho-o. Não me preocupa a minha respeitabilidade (no sentido mais bacoco do termo). “É muito interessante, muito inteligente, muito culto…” Como se a cultura fosse um Ferrari que se anda a mostrar por Portugal. Estou-me nas tintas para isso. O dinheiro: gosto de viver bem. Não vivo com excessos. Na Índia entrei no lobby do Taj Mahal e não me apetecia ficar ali. Há um luxo a partir do qual não me sinto confortável.

 

Advém uma culpa de um conforto excessivo?

Sim.

 

Viver numa casa com jardim, como esta, e provindo de uma família como a sua…

… não há dia nenhum que não me ocorra que sou um privilegiado. Até porque não há dia nenhum em que não escreva sobre a desigualdade em Portugal, a pobreza. Não sinto uma culpa que tento permanentemente expiar. Vivo exclusivamente do dinheiro do meu trabalho. Não exploro ninguém, não tiro dinheiro a ninguém. Mas sei que há muita gente que trabalha muito e que tem pouco. Nas opções privadas tento não ser contraditório, mas sou. Não consigo ser coerente entre o que apregoo e o que faço. Como quase toda a gente. Os que conseguem, assustam-me.

 

O que é que muda significativamente quando vive com mais dinheiro ou menos dinheiro?

Perde-se liberdade. O que não quero é ter um nível de vida que me tire a liberdade. Não me endividar excessivamente (as minhas dívidas são as da generalidade das pessoas – comprei casa).

Não consigo perceber porque é que a tantas pessoas que escrevem falta coragem. De que é que têm medo? Há uma coisa que me afecta: se alguém me chama cobarde. É pior do que tudo. Há um lado de vaidade que me move na minha coragem.

 

Como é que lida com o seu erro?

Depende do erro. Estou a rever textos, vou publicar em livro algumas crónicas. Mil e tal textos. Encontro ali muitos, muitos erros. [Leio os textos] com alguma distância, com naturalidade. E até com um riso trocista em relação a mim próprio. “Daniel, és tão exagerado” “Tens alguns ódios de estimação que te cegam”.

 

O que é que o cega?

Nalguns casos, paixão. Sentir que tenho um dever de combate, que me tira o distanciamento necessário para perceber o que está em jogo. Evito escrever sobre pessoas que conheço bem. Já escrevi mal sobre pessoas de quem gosto e conheço. Já escrevi bem de pessoas que não suporto pessoalmente. É mais o que representam. Pessoas como [Alexandre] Soares dos Santos: não tenho nenhum ódio pessoal, não o conheço. Mas há nele uma arrogância social que me tira do sério. Ou mexe nas minhas raízes comunistas ou não sei o que é.

 

É um self made man, Soares dos Santos.

Não tenho especial respeito pelos self made men. Respeito pessoas que escreveram livros que mudaram a vida de outros ao lê-los. Respeito pessoas que se envolveram politicamente e ajudaram a mudar a vida dos outros. Não é preciso ser um génio para ficar rico.

 

Se fosse tão fácil assim, mais pessoas estariam ricas.      

O que me interessa é o que estas pessoas fizeram pelo sítio onde vivem. Irrita-me o paternalismo. Quanto mais pobre e desigual é o país pior são as suas elites económicas. Acham que tudo lhes é devido. Que tudo o que têm é direito seu. Que não devem nada à comunidade. A maior parte é ignorante. Confesso: sou snob em relação à nossa elite económica.

 

Vamos tergiversar: frequentou o ISCTE mas não concluiu a licenciatura. Foi uma escolha? Foi uma forma acintosa de dizer que não precisava do canudo para se afirmar?

O meu percurso académico é bastante atribulado. Não acabei sequer o liceu quando era suposto acabar. Interrompi os estudos para ser estafeta.

 

São devaneios de menino.

De menino, não. Que não tinha dinheiro.

 

Sabia que não morria à fome. Tinha sempre garantida a rede mínima por trás.

À fome não morria, como a maior parte das pessoas não morrem. Foi um período atribulado.

 

Foi nessa altura que foi trabalhar para O Século? Tinha 18 anos?

Quando fui para estafeta, tinha 17 e fui para a Sábado. Tinha muita vontade de trabalhar. Tinha a possibilidade de entrar para um jornal por via familiar – não quis. Tinha uma necessidade enorme de afirmação. De saber que o que conseguia não o devia a ninguém. Depois fui para O Século, depois para o Diário de Lisboa. Depois para a tropa, onde acabei o liceu. A escola não me entusiasmava e não me chegava.

 

O que sustentava a singularidade da família era serem intelectuais. São precisas ferramentas.

A minha mãe nunca ligou ao curso. Achava que não devíamos ser o melhor aluno, porque o melhor aluno é odiado. Valorizava o trabalho.

 

Não foi uma forma de insubmissão ter ido para estafeta?

Não. A faculdade, basicamente, não gostei. Já era jornalista. O curso era para me dar prazer, para orientar leituras. A disciplina [leccionada] pelo Paulo Pedroso foi a única de que gostei. Fui copy numa agência de publicidade durante um ano. Foi um tempo de experimentação. Hoje existe a ideia de que se deve acabar o liceu, fazer o curso, escolher uma carreira… Não olhei assim para a vida, e não olho.

 

O desarrumo é bem vindo?

É. Não é abrir um restaurante hoje e amanhã estudar ciência política, e no dia seguinte dedicar-me à astrofísica. Tudo isto tinha balizas de interesses. E, é preciso dizê-lo, sustentando-me a mim próprio. Mudou um pouco a partir do momento em que tive uma filha.

Depois fui para Praga. Tinha 24 anos.

 

Como é que foi dar a Praga, onde tinha estado na adolescência? Eram ainda coisas do comunismo?

Não. O meu irmão vivia em Praga. Na publicidade ganhei bem e consegui juntar dinheiro. Queria levar uma vida frugal e ler. Isso sim, foi um devaneio. Não acho mal se o fizermos com o nosso dinheiro e não com o dos paizinhos.

Já lá tinha ido no tempo do comunismo, em 1984. Abalou muito as minhas convicções políticas.

 

Em 1998 ganhou o prémio Gazeta Revelação com um trabalho sobre a Primavera de Praga.

A primeira visita que fiz ao estrangeiro foi à então Checoslováquia, num grupo de filhos de sindicalistas. Para um campo de pioneiros. Foi um embate. Cresci intelectualmente muito cedo e emocionalmente muito tarde. Por um lado, tinha interesses que não eram habituais. Por outro, brincava com soldadinhos às escondidas.

 

O que é que foi chocante em Praga?

A disciplina. A falta de liberdade. O que vem nos comentários dos jornais: uma escola a sério, disciplina, exames na quarta classe. O que muitas pessoas querem da escola para os seus filhos foi o que me fez afastar do comunismo. A disciplina como um valor e não como um instrumento. Desse ponto de vista, aquilo era o sonho pequeno-burguês. Tinha alguma estabilidade económica. O direito ao mínimo. Coisas que ainda hoje valorizo. E tinha o resto. O anular da individualidade. Do risco. Mais do que ter ficado chocado, aborreceu-me mortalmente. Rapidamente comecei a instaurar o sistema capitalista, porque comecei a trocar autocolantes coloridos (que lá não havia) por carradas de chocolate. Capitalismo especulativo! [riso] Logo a seguir fiz a escola de quadros do PC.

 

O que era, para um miúdo de 14 anos, fazer a escola de quadros do PC, como fez?

Era uma vivenda onde o PC fazia cursos de formação política. Em regime de internato. No meu caso foi uma semana.

 

Davam-lhes uns livros para ler?

Aulas, discussões, trabalhos. Era dirigido a jovens. Que eu saiba, fui a pessoa mais nova [a frequentá-lo]. Foi desinteressante. Em 1984 estava longe a queda do muro, mas havia a Polónia, o Afeganistão..., e eu estava mesmo à espera que me explicassem tudo. Fizeram o pior que podem fazer a um adolescente com as minhas características: tratarem-me por parvo. Assumir que as minhas dúvidas eram resultado de ouvir as pessoas erradas, fazer as leituras erradas. Percebi que as respostas evidentes eram as que tinha na minha cabeça mas que não queria verbalizar. Começo a ter um pensamento desalinhado. Até aí, era um indefectível.

 

Há uma emancipação em relação à família? Foi o começo de um cisma?

Com a família, não. A minha mãe e a minha tia eram do PC, mas não eram muito alinhadas. Já saíram quase todos do PC. Claro que as minhas dúvidas eram mais radicais. Também tinha a ver com a idade. Não tive nenhuma má reacção da família quando saí, ao contrário do que é habitual – eu sei – em famílias PC.  

 

Saiu em 1989. Com a queda do Muro?

Uma semana antes da queda. Fui entregar o cartão, à noite, que foi recebido com razoável alívio. Eu já tinha tentado sair, mas era doloroso. Era um corte com a minha mundividência, mais do que com a minha família. A minha desculpa: num congresso da Juventude Comunista houve uma purga, e de uma pessoa especificamente, o Rogério Moreira.

 

Teve alguma relação directa com Cunhal?

Não. Deu-me uma vez uma festa na cabeça porque cantei no coro dos pioneiros. Pronto, este é o momento em que toda a minha credibilidade vai por água abaixo! Posso dizer que algumas vezes fiz as primeiras partes dos comícios do Cunhal.

 

Parece que está a descrever uma festa religiosa.

Há muito de religioso no PC, como toda a gente sabe. A presença física de Cunhal era magnetizante. E era um mito. Eu era um miúdo, era impressionável.

 

Quando é que cresceu emocionalmente?

Fui crescendo. Há coisas que ainda estão por fazer. Um grande salto foi a puberdade. Outro foi começar a trabalhar. Ter uma filha. Ter uma filha foi seguramente o mais importante. O peso brutal de ter uma pessoa que depende mesmo de mim... Deixou-me em pânico. É preciso ser muito maluco para ter um filho. Depois, corre bem. Corre bem para nós. Para eles, nunca corre bem. Façamos o que fizermos, estamos a fazer mal.

 

Ela é “a filha do Daniel Oliveira”?

Não, não. Não liga nenhuma. Passa pela televisão e nem olha. Nunca exibi, nunca apareci em revistas. Só se ela quiser é que sabem que sou o pai dela. Nunca me deu um sinal de que a minha visibilidade a marcava, tolhia ou diminuía.

 

Pôs como condição para esta entrevista não falar do seu pai. Porquê?

O meu pai mantém, por opção própria, uma reserva absoluta em relação à sua vida. Não quer existir publicamente para além do que faz e do que escreve. Eu respeito e não questiono esta escolha. Admiro. É mais difícil do que aparecer. Habituei-me desde cedo a que houvesse a tentação de eu ser o buraco da fechadura. Aprendi, com erros e acertos, que só há forma de lidar com isso: com o mesmo absoluto do meu pai. A minha fronteira é a dele. Não falo sequer da minha relação com o meu pai, ainda que o meu pai nunca me tenha pedido para não falar.

 

Pode, apesar da limitação, explicar como é que lidou com o peso de ser filho de um mito, e de como construiu um espaço à margem disso?

Houve uma altura da minha vida em que houve necessidade de afirmação. Se não quero que a minha filha seja “a filha do Daniel Oliveira”, muito menos quero ser eu “o filho do Herberto Helder”. O peso é muito maior. Não estou no mesmo campeonato. Fiz um grande esforço [para que não se soubesse]. Nos primeiros três anos da minha vida profissional ninguém sabia. Tinha a vida facilitada: o meu pai não faz vida pública. O meu nome, sendo dele, é um apelido que não usa. Porque é que durante anos uma pessoa deve esconder quem é o pai? Não sei se era natural. Sei que foi bom para mim. Permitiu-me mais rapidamente resolver esse problema na minha vida pública e profissional. Dedico-me à política, ao comentário. Coisas que seguramente o meu pai não quereria fazer. Acho que as pessoas que tiveram pais com importância pública percebem isto. Se é difícil ser filho de uma figura pública, ser filho de um mito ainda é mais. Porque a curiosidade das pessoas é muito maior. E porque o mito só tem qualidades.

 

E hoje?

Não é assim. Tenho uma relação pacificada e fácil com o facto de ser filho do meu pai. Nunca tentei acompanhar o patamar em que está. Uma vantagem. Como não é atingível, não está nos nossos objectivos. Ajuda a reduzir o deslumbramento. Afinal, tudo o que estamos a fazer não é assim tão importante. Tenho absoluta consciência da minha irrelevância pública.

 

A confiança que adquiriu em si fê-lo permitir-se deixar crescer a barba? Ficar mais parecido com o seu pai.

Sou muito, muito parecido fisicamente com o meu pai. Com a barba, fico ainda mais parecido. Se calhar, isso sempre pesou para não deixar crescer a barba. Gosto de ser parecido com o meu pai. É normal, quando chegamos a uma certa idade, gostarmos de ser parecidos com os nossos pais. Gosto de olhar para ele e ver-me. Mas acho que a razão por que deixei crescer a barba foi mais prosaica. Emagreci, a barba ficava-me melhor, gostei.

 

Está uns vinte quilos mais magro.

Agora, só quinze.

 

Porquê estas grandes oscilações? Coisa imprevista numa pessoa tão política, num intelectual.

Aparecer na televisão fez com que o corpo ganhasse importância. Tornou-me mais vaidoso fisicamente.

 

Desvalorizar a aparência era comum no PC a que pertencia.

Sim. Mas depois havia o João Amaral, que era um galã e que vestia muitíssimo bem. Sim, gosto de coisas boas e não tenho vergonha disso. E sou homem, superficial. Gosto de mulheres bonitas.

 

Não são umas mulheres bonitas quaisquer. As relações que lhe são conhecidas são com mulheres de personalidade vincada, com percurso profissional reconhecido.

Odeio bibelôs. Não procuro companheiras – como se diz na esquerda. Não sou capaz de ter uma relação próxima com alguém que não me estimule intelectualmente e que não tenha vida própria. Admirei, e admiro, todas as mulheres com quem tive relações, a todos os níveis. Tem a ver com o modelo feminino em que cresci.

 

É muito filho da educação que teve?

Sou. A minha mãe teve uma importância central na minha educação como pessoa. Um metro e meia de extraordinária força, intelectual, pessoal, emocional, que me marcou. Eu não choro. Nunca chorei à frente de pessoas que não fossem muito, muito, muito íntimas. Não quero responsabilizar só a minha mãe. Outro herói: Hemingway. Há quem ache que sou um pouco machista. Na minha adolescência eu queria ser como o Hemingway. Comecei a gostar de tourada por causa dele, por uma razão meramente literária. Gosto, e não me fica nada bem.

 

Hemingway encarna um lado aventuroso e sedutor.

Tem isso tudo. E uma imagem de masculinidade, de firmeza e força, que me ficou como virtude e como defeito. Tenho dificuldade em publicamente demonstrar os meus sentimentos. Sinto-me nu. (Há um ambiente piegas no espaço público. As pessoas põem frases espirituosas no Facebook, e dizem que estão apaixonadas ou tristes. Odeio isso.) Acho que devemos manter uma fachada. E acho que não devemos carregar os outros com o nosso sofrimento.

 

Falou quase nada de livros ou autores. A relação com as palavras começa cedo. O exercício retórico que domina a sua actividade profissional faz-se de palavras.

A leitura é para mim tão importante que sou o contrário de um citador. Só digo por palavras de outros se não conseguir dizer [pelas minhas]. As nossas leituras, devemos ter com elas a relação que temos com o dinheiro: só se explicitam quando tem de ser.

Na minha infância, a relação com as palavras não passava muito pelos livros. A política tomou conta de tudo (mesmo no caso do meu padrasto). Não sobrou espaço. Provavelmente, até se liam maus livros na minha casa porque eram de camaradas! 

 

Que coisas leu e que foram marcantes?

Não consigo dizer. Consigo falar de autores que me marcaram numa frase específica. Recentemente li o Anna Karenina. Adorei.

 

É um livro de que as meninas gostam. Imaginei que fosse gostar mais de gostar do Guerra e Paz.

Estou a ler agora.

 

Como é que se tornou um dos opinion makers mais proeminentes da sua geração? 

É tão difícil perceber. Não era nada o que tinha [previsto]. Faço projectos. Apesar de achar que as coisas não têm que ter um percurso clássico, não gosto de as deixar ao acaso. Não gosto de me deixar ir em nada. De sentir que não fui eu que escolhi.

 

A imagem que passou ao longo da entrevista foi a de pouco ter sido escolhido.

Eu sei. Mas foi tudo escolhido. De forma emotiva.

 

Persiste na escolha?

Se me interessa. Senão, abandono. Foi o que fiz com Praga, com a publicidade, com o curso. Toda a vida julguei que ia ser sempre jornalista. Posso dizer que ainda era o que gostava de ser. Não gostava de ser nas condições em que é possível ser. O trabalho do jornalista, em 99% dos casos, é pouco autónomo. Não estou a falar de liberdade de opinião. Estou a falar de liberdade de escolha. É um trabalho muito proletarizado.

 

Porque é que abandonou o jornalismo?

Abandonei por opção. Lembro-me do momento. Estava numa inauguração de uma autoestrada no Alentejo, atrás do Jorge Coelho. Olhei à minha volta. “O que é que estou aqui a fazer? O que é que isto me interessa?”. Decidi que não ia passar a minha vida a fazer aquilo. Preferia servir cafés. Pelo menos, não exigia nada intelectualmente de mim. (Ainda uso muitos neurónios para coisas que não têm importância nenhuma. Mas menos. É a vida.) Tinha um convite para ir trabalhar para o Bloco. Fui e avisei que só ia ficar quatro anos e que não iria ser assessor de imprensa. Claro está que ao fim de seis meses era assessor de imprensa.

 

O jornalismo ficou arrumado?

Não quer dizer que não volte. Mas não há lugar. O que gosto de fazer é reportagem, e teria de ser o melhor repórter do país para conseguir voltar e fazer só reportagem. Não sou o melhor repórter do país. 

 

Paralelamente, o Barnabé, e depois O Arrastão, foram determinantes para o seu reconhecimento no espaço público. Sintomático de um geração, também.

Não consigo não escrever. Depois convidaram-me para escrever no Expresso e na mesma semana para o Eixo do Mal. Aí sim, fui escolhido. A minha vida mudou. Nem eu sabia quanto.

 

É sobretudo o dinheiro, a visibilidade? O poder.

É outro poder, com o qual tive de aprender a lidar. A visibilidade muda mais do que parece.

 

As pessoas que o reconhecem na rua estão à espera de uma cartilha?

Sim. Mas não faço nenhum esforço para corresponder ao que esperam. Perde-se privacidade. É mais difícil ter vidas duplas, triplas. Também não é nada de insuportável. O mais importante que muda: o espelho torna-se enorme. O olhar dos outros sobre nós é-nos devolvido com muito mais frequência e obviamente distorcido. Com violência. Tenho uma carapaça muito boa.

 

Percebeu que a tinha ou adquiriu-a?

Tinha. Era natural em mim.

 

É belicoso?

A discutir, sou. Mesmo nas relações pessoais. Mais do que as pessoas vêem na televisão. Por entusiasmo. Não sou nada conflituoso. Sou uma pessoa bem disposta grande parte do tempo. Tenho crises de mau feitio fortes e espaçadas. Tenho um grande prazer em discutir. Vem da família. Discutimos todos assim. Aos gritos. Com paixão. Como se fosse a última discussão das nossas vidas. As pessoas que vêem a minha família ficam aflitas, julgam que estamos quase à estalada. Cinco segundos depois parece que a discussão não existiu. Estamos a comer e a mandar piadas uns aos outros. É muito, muito raro ter uma zanga com uma pessoa. É muito difícil melindrar-me, magoar-me. Dou quase sempre um desconto. Sou bruto. Gosto de pessoas brutas. Desconfio de pessoas demasiado simpáticas. Fico desconcertado com elogios.

 

Não sabe se estão a sério?

Se estiverem a sério, ainda fico mais! Tenho um lado exuberante e um lado tímido. Vivo melhor com a crítica.

 

Com a patada, sabe como reagir?

Sei. Sei desviar-me. A patada pública: presto-me a isso. Sou truculento nos meus textos. É normal que as pessoas o sejam comigo. As pessoas não me conhecem. É do boneco que estão a falar. O boneco não sou eu. Tem partes de mim, fui eu que o escolhi, não é completamente à parte. A generalidade das pessoas que me conhecem publicamente e depois pessoalmente ficam espantadas.

 

Acha que vão ficar espantadas com o que aqui conta de si, com o que deixa entrever?

Não sei. Acho que se espantam porque sou mais simpático do que imaginam. Tenho sentido de humor.

 

Faz autoironia, e sabe que isso é uma arma.

Ah, faço. Sempre a usei. Os meus amigos diziam que eu era convencido. Sou. Combati isso. Percebi que não resultava. O melhor era começar logo a fazer piadas sobre o assunto. Torna o convencimento menos patético. A vaidade é sempre um bocadinho patética. Às vezes sou pateta. Por exemplo, cito-me demasiado a mim próprio. Faço coisas que sempre disse que nunca faria. A autoironia é um bom contrato que faço com os outros. É uma maneira de dizer “desculpa lá”. Depois, o que as pessoas vêem na televisão são as minhas sobrancelhas com um ar agressivo, sinceramente indignado. Fico espantado: como é que ainda consigo indignar-me?

 

Boa questão. Alguma coisa morreu em si?

Do fundamental, nada. Trinta anos de militância política, 24 anos de actividade mediática, e ainda não fui atingido pelo vírus do cinismo. Vou tentar descrever o fenómeno fisicamente: os meus pulmões ainda se enchem de indignação ou de entusiasmo ou de paixão pelas coisas como há 20 anos. Há uma pessoa que diz que mesmo no cinema só choro com injustiça. [riso] Não choro com cenas românticas. Não é por não me tocarem. É que há um lado em mim que ainda sente aquela coisa de que o Sérgio Godinho fala, “a raiva a crescer-me nos dentes”.

 

É também ressentimento?

Não. Ainda sinto uma profunda tristeza perante a miséria, perante a desgraça evitável. Ainda não posso nem sei ficar calado. Significa que ainda tenho o sentido do dever. Digo “ainda” porque ninguém sabe o que é a que vida nos faz. O que é que o conforto nos faz. O que é que o egoísmo nos faz.

 

O que é que o reconhecimento nos faz.

O que é que o reconhecimento nos faz. O que é que a proximidade da morte nos faz. Não faço juras. Não juro que não venha a ser um oportunista. Mas não estou mal, aos 42 anos.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012