Doutor Sérgio Godinho
Longtemps, longtemps, longtemps
Après que les poètes ont disparu
Leurs chansons courent encore dans les rues
Leur âme légère, c'est leurs chansons
Qui rendent gais, qui rendent tristes
Filles et garçons
Bourgeois, artistes
Ou vagabonds
Os primeiros versos que cito não foram escritos nem compostos por Sérgio Godinho. Vou repetir duas palavras: escritos, compostos. A interrupção é necessária. Não para articular um falso arranque, com o efeito estético que daí decorre, nem criar uma inflexão ou desritmo. Tampouco para fazer um jogo de palavras. A repetição introduz algumas questões que pretendo questionar, nomeadamente a dissociação entre escrita e composição, entre texto e música, e, em particular, a importância da língua materna. É nela que se exprime uma identidade artística, uma raiz, um imaginário, desejavelmente plural, heteróclito mesmo, uma pertença e uma errância. Uma casa e um cais.
As primeiras canções de Sérgio Godinho foram em francês. Vivia então em França, sintonizava-se com uma efervescência política, com uma vibração de quem, ainda há pouco, levantava o pavé para aí encontrar a plage. Vamos voltar a esta imagem de Maio de 68, porque, não parecendo, e ainda agora começando, já estamos em pleno terreno arqueológico.
Esse era também o tempo do musical Hair, protagonizado por uma geração rebelde e com causas, que se exprimia, nessa produção e nesse tempo, em francês.
O uso de uma língua estrangeira na qual estava imerso possibilitava ainda um afastamento de nomes de referência, como Zeca Afonso. Escrever em francês facilitava o ofício: para que as canções não soassem a Zeca Afonso. Porém, a descoberta de uma identidade autoral, como quem se encontra com o seu idioma próprio, aconteceu num reencontro com a língua portuguesa. Foi isso que lhe permitiu relacionar-se consigo de um modo vital, escutar a ressonância afectiva que as palavras tinham nele, desapertar nós da memória, conhecer o coração da palavra, o seu significado mais íntimo.
Falar de língua materna é abrir um baú inesgotável. “O baú de Sigmund Freud”. Como então resumiu, na canção de 1989, “O cobarde é uma pessoa que foge para trás, o herói é uma pessoa que foge para a frente”. Também aí cantou: “quem quiser vir a si, vai ter que abrir o baú”. Para este vir a si, este cair em si, para se ser quem se é, mesmo sendo um sujeito à deriva, sem nunca abdicar da deriva, é necessário identificar as suas âncoras.
Os versos com que comecei são uma âncora. Interpretados por Charles Trenet, ouviam-se em casa dos pais. Nova interrupção. Somos tentados a aproximar Sérgio Godinho e Serge Gainsbourg. E essa conexão foi inclusive feita por Godinho num espectáculo e disco ao vivo, no Ritz, ao interpretar “L’Anamour”. O desamor. Une os dois Serge uma poética provocadora e desconforme, um som áspero e urbano, a versatilidade de quem está entre o rock e o jazz. De quem é moderno e vanguarda.
Mas antes de Serge, havia Trenet, a música e a poesia da casa onde cresceu. E por isso é necessário voltar aos versos iniciais desta canção. Ali se diz que as canções são a alma ligeira do poeta, trazem ou ecoam alegria e tristeza, a burgueses, artistas e vagabundos. Também se faz menção a um tempo sem tempo em que os poetas terão desaparecido, mas as suas canções serão o murmúrio, quiçá apócrifo, das ruas, da multidão.
Longtemps, longtemps, longtemps.
Algo persiste, sobrevive a todos os naufrágios, desperta encantamento. Mais do que tudo: o lugar da poesia é a rua. É no instante, no inesperado, no ocasional, é na corrente sanguínea da rua que a vida se dá. O poeta é um flâneur, livre num labirinto, o que tropeça em emboscadas. A rua é o teatro onde contracenam personagens fulgurantes, Etelvinas, Ritas, Velhas, Amantes, Companheiros.
Sérgio Godinho escolheu “L’âme des poètes” para o espectáculo “Escritor de Canções”, em 1990. A primeira canção em português tinha pelo menos 20 anos, a escuta de Trenet era anterior a várias voltas ao mundo, literalmente.
Este longo excurso cruza linhas importantes. São como que núcleos a partir dos quais irradia o mundo de Sérgio Godinho. Nesta canção, há uma referência à vagabundagem, que é — ou foi — uma condição indispensável. A palavra errância traduz de modo parcelar o que aqui está em jogo. É sem dúvida uma palavra mais apropriada ao contexto académico, fica bem nos compêndios. Mas falta-lhe um lado sujo, o suor, o perigo, o medo, o dormir ao relento, o cru por oposição ao conforto, o instinto do sobrevivente. Proponho que se reabilite o verbo vagabundear! O embate não é macio, mas a acidez é um travo necessário.
Sérgio Godinho nasceu numa família burguesa do Porto, a mãe tinha o curso superior de piano, o pai era anti-salazarista convicto, a avó tornou-se alfarrabista, havia uma tradição republicana e maçónica, o bisavô, o Actor Verdial, foi quem leu a proclamação do 31 de Janeiro, o primeiro golpe republicano falhado, eram três irmãos. As coordenadas ganham relevo se pensarmos no Portugal dos anos 40 e 50, fechado sobre si, e na natureza sempre distinta do Porto em relação ao resto do país.
Há alguns sinais que evidenciam o estatuto social da família, embora o que mais me impressione seja a abertura, o cosmopolitismo e a consciência política e social. Ouviam discos em 78 rotações, peças tão díspares quanto as histórias do Capuchinho Vermelho com sotaque brasileiro, Frank Sinatra no tempo das big bands, um poeta do quotidiano como o brasileiro, autor de canções, Noel Rosa, discos de poesia de João Villaret, os musicais My Fair Lady, West Side Story ou Porgy and Bess, Os Beatles, Amália. Gosto ecléctico, discoteca abundante, curiosidade voraz. Era também o tempo de comprar a revista Tintim todos os meses na livraria Lello, de ler aos 13 anos, e sem ser à socapa, O Crime do Padre Amaro, de descobrir Brecht ainda na adolescência.
Quando se faz a sistematização destes dados biográficos e referências, quando se olha pelo “Retrovisor”, apropriado título da sua uma biografia musical, torna-se evidente que, de certo modo, tudo estava já lá. Bases sólidas, margens. Uma casa onde o diálogo entre diferentes disciplinas artísticas se fazia. Agora, só era preciso ir on the road, encontrar uma estrada que fosse sua, como mulheres procuram um quarto que seja seu. Ou mares. Em qualquer caso: sem bússola. Para se chegar a saber, é muito importante perder-se, errar. Errar num duplo sentido: o de andar à toa, e o de falhar. A toa é um cabo que liga o barco a um ponto fixo. Não resisto a convocar uma entrevista que fiz ao autor e uma passagem em que, em alto mar, tem uma sensação de plenitude. Está atoado e não está.
"Nessa viagem de barco, fui até à Jamaica, Trinidad. Trabalhava na cozinha de um barco holandês. Primeiro trabalhei como estivador no porto de Amesterdão. Fiz anos no meio do Oceano Atlântico. Estava uma lua magnífica, e senti-me bem comigo mesmo. Não disse a ninguém que fazia anos. A única coisa que fiz foi mandar um telegrama aos meus pais a dizer: "Parabéns a nós todos". Qualquer coisa assim. Aquele aniversário em solidão absoluta [constitui] uma belíssima recordação. Sentia que as coisas estavam certas naquele momento."
Leio neste excerto uma maravilhosa declaração de amor à vida. Navegar é preciso, viver também é preciso. Navegar, atoado, falhando, falhando sempre, falhando cada vez melhor, para citar Samuel Beckett, que, por acaso, também andou entre géneros e línguas, materna e estrangeira. Questão pertinente: que outro somos quando nos exprimimos numa língua que não é a nossa, por mais proficientes que sejamos nessa língua? Teremos um inconsciente comum, babélico? A estranheza é um valor muito importante, o atrito que provoca é precioso. Mas pode alguém ser quem não é?
A palavra é a célula, sem muros. A palavra declamada, performada, encenada, gritada, discutida, cantada, dançada. Na poesia, no teatro e no cinema, na ágora, em palco. A sós consigo e perante uma audiência, a palavra é um elemento de comunicação, e o meio é também a mensagem. Enuncia programas políticos, é musical.
Um exemplo. Cada um de nós ouve cá dentro:
A paz, o pão, habitação, saúde, educação.
A cadência com que é dito, as pausas, um rap tantos anos antes do rap, traz a oralidade, traz a vibração da rua, uma prosódia tão característica do homenageado. Passados 50 anos, 53 para ser exacta, continuamos a repetir aquele bordão, com urgência, sob um céu que vai ficando de chumbo. Está tudo lá. Como está nestas quadras soltas, cantadas, não ao desafio, com amigos, mas desafiando:
Ó i ó ai, Nós queremos é justiça
Ó i ó ai, E dinheiro para o bife
Ó i ó ai, E não esta coboiada
Em que é tudo do sherife
Até ver!
Ah, esqueci-me de dizer que em casa também se ouvia o Conjunto António Mafra. Quadras populares. E havia um jeito trocista e brincalhão, não apenas nas encenações domésticas ou em petit comité. A graça, o riso são nomes do meio de Sérgio Godinho.
Eis-nos em 2025. O doutor e doutorando completou 80 anos, eis-nos a reivindicar justiça e dinheiro para o bife, a queixar-nos da coboiada, da desigualdade, e hoje, mais do que nunca, do problema da habitação. Não falo de pré-histórias. Nem de presciência, embora pareça. Falo de uma capacidade do criador de se conectar com o mundo, de o escutar naquilo que não é ainda audível, de reconhecer o gérmen.
O fascismo é uma minhoca (não é? lá isso é)
que se infiltra na maçã (não é? lá isso é)
ou vem com botas cardadas
ou com pezinhos de lã
O mandão é que põe e dispõe
mas o povo é que manda no povo
ai isso é claro, claro
mais claro que a clara dum ovo
O poeta vai sempre à frente. O jogo de sentidos é hábil. Outro exemplo:
Andas aí a partir corações
Como quem parte um baralho de cartas
Cartas de amor
Escrevi-te eu tantas
Às tantas, aos poucos
Eu fui percebendo
Às tantas eu lá fui tacteando
Às cegas eu lá fui conseguindo
E continua. Atentem no desdobramento de sentidos, na homofonia e na cacofonia, atentem na visualidade do gesto, como quem espalha as cartas sobre uma flanela verde. Partir corações, partir um baralho de cartas, escrever cartas de amor, tactear às cegas: que metáforas. O amor, como a vida, é este jogo onde nunca sabemos que naipe nos calha, onde sempre procuramos um ás de copas, onde, titubeantes ou impetuosos, apostamos a nossa vida o melhor que conseguimos.
Naipe, já agora, em sentido musical, designa um grupo de instrumentos da mesma família.
Parenteses para falar dos instrumentos de Sérgio: a viola irmã (ele sente que não é um virtuoso); o piano que ficou lá atrás, nas aulas da infância; uma corneta de plástico, de feira, de saltimbancos e brincadeiras de criança; os ferrinhos que a Sheila tocava, os bombos, as gaitas... A sonoridade é versátil, ampla, mas diria que as cordas são predominantes. Arriscaria mais: a voz é predominante. Não só as cordas vocais, em sentido anatómico, mas a maneira de cantar, a maneira de compor, a maneira de escrever. E raramente elas surgem separadas. Por isso penso-as como uma voz completa, singular, inigualável. Se ouvirmos qualquer canção interpretada por Sérgio Godinho, ela passa a ser outra canção. L’âme des poètes de Charles Trenet, quando cantada por Sérgio, tem outra alma. É mesmo outro poeta. São outras ruas.
E além da voz, outro elemento é distintivo: o corpo. É um intuitivo, capta com os sentidos, elabora na escrita, demora-se naquilo a que chama: a carpintaria. O que não deixa de ser uma palavra física. Carpintaria alude ao que é tangível, a uma matéria que tem cheiro, que passa do tosco ao lixado. Mais uma referência explícita a esta parte importantíssima: o humor. Na oficina usa-se lixa e outras ferramentas até chegar aquele ponto em que parece que a canção nasceu pronta. Essa aparência de leveza e naturalidade é, como se sabe, ilusória e difícil de atingir.
Dizia eu: o corpo. A performance em palco dá nova vida às canções registadas em disco. Depende da energia da plateia, de tantos factores. Considero que a importância da performance não é apenas devedora da ligação ao teatro e ao cinema. É inegável que fazer tournée com o musical Hair, numa fase tão incipiente do caminho, exercitou um músculo, uma noção de espectáculo. Mas julgo que a centralidade do corpo vem antes, é intrínseca, está no modo como compõe uma galeria de personagens, desenhados como pessoas de carne e osso. Todos já vimos o casal de “Segundo Andar Direito”:
Ele vinte anos, e ela dezoito, E há cinco dias sem trocarem palavra, Lembrando as zangas que um só beijo curava.
Todos já vimos "O Charlatão" numa ruela de má fama a vender anéis de ouro a um tostão.
Todos nos condoemos da rapariga que, cada terça-feira:
desce a escada quatro a quatro
vai vender mágoas
ao desbarato
vai vender
juras falsas
amargura
ilusões
trapos e cacos e contradições
Todos já sentimos a raiva do emigrante:
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Construir as cidades pr'os outros
Carregar pedras, desperdiçar
Muita força p'ra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força p'ra pouco dinheiro
Se é verdade que muitas canções têm um cariz político e reflectem um contexto, que tristemente não ficou desactualizado, é também certo que Sérgio nunca se encarou, apenas, como um cantor de intervenção. Basta pensar em canções como “Com um brilhozinho nos olhos”, “A barca dos amantes”, “A noite passada”, “Espalhem a notícia” para sentir o fogo, o hálito da intimidade. Uma compilação de canções de amor manifesta isto mesmo: elas compõem a banda sonora dos nossos dias, de diferentes gerações, dos nossos namoros. Tanto quanto as canções de um activista comprometido com o mundo em que vive.
Uma vez, no virar do milénio, um jornalista brasileiro perguntou-lhe: “que género de canções você canta?”. A resposta dele: “é um género híbrido, que tem características urbanas, jogando com os recursos da língua, as frases feitas, a consciência social, o amor e tal e tal...”
As auto-definições são falíveis, aborrecidas, aprisionam um objecto que se quer livre. Contudo, dão algumas pistas importantes. Há duas que gostaria de sublinhar: uma é o formato canção ser aquele que serve Sérgio Godinho. Dos tempos em que estudou Psicologia com Piaget na Suíça, vem este ensinamento: “a inteligência desenvolve-se pela acção. É pela acção que a criança desenvolve a sua estrutura cognitiva. Fazer canções é singelamente o motor da inteligência criativa.”
As suas micro-ficções, os seus personagens, os seus manifestos, a indagação filosófica: estão condensados numa estrutura. Que não é rígida, que se reinventa, que enxerta texto, o insólito, outras vozes, que tem um mote no refrão, cujos sentidos se iluminam do desenvolvimento estrofe a estrofe, nota a nota. A canção compõe um sentido, e é parte de um sentido se integra um álbum, mas pode viver a sós.
O outro sublinhado vai para a hibridez apontada na resposta ao jornalista brasileiro. Vejo nela uma das maiores riquezas do artista, um sinal da sua natureza indómita, da sua heterodoxia. Sérgio tem convicções firmes, não é volátil, mas procura seguir Caetano e proibir a proibição, resistir ao pré-conceito que define com muita clareza o que se deve cantar, o que não se deve cantar (e não esqueço aquela vez em que fez uma versão d’ “O Rapaz da Camisola Verde” de Frei Hermano da Câmara). Como pode isso viver com gostar de boxe, experimentar a literatura numa fase madura, escrever e ilustrar um livro infantil sobre Medos, inventar e cantar com personagens de uma série de televisão para crianças...? Saiu há meses um novo livro de Sérgio Godinho. É um conjunto de contos sobre suicídio. Alguns não foram conseguidos, graceja ele. A minha primeira associação é com uma nota biográfica, por mais escorregadio que seja ligar a biografia de um artista aquilo que escreve ou cria: a ficção começa logo na rememoração do facto havido. Na sua infância houve um suicídio.
De certezas está o mundo cheio. O mundo estaria menos cheio de certezas de tivesse por perto esta frase de Garcia de Orta, pioneiro da investigação médica, botânica e farmacológica, do século XVI: “O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos”.
Sérgio Godinho duvida. E experimenta. Se algo o define, se tivermos de juntar uma característica em jeito de cognome, eu proponho, não o homem dos sete instrumentos, mas o experimentador. Vejo na falha e no contínuo desejo de descoberta a ignição do conhecimento. Um sinal de sabedoria.
Discurso lido no Doutoramento Honoris Causa de Sérgio Godinho, na Universidade da Beira Interior, de que fui a madrinha.
8 Out 2025, Covilhã