Dulce Maria Cardoso
Dulce Maria Cardoso regressou de Angola na ponte aérea de 1975. Diz que o frio da metrópole lhe fez o que faz aos bolos quando se abre o forno: parou de crescer. Viveu uns meses em Trás-os-Montes, mudou-se para Cascais. Estudou Direito, é escritora. Tem 50 anos. “O Retorno” centrado na experiência da perda e do recomeço, está traduzido em várias línguas, vendeu milhares de exemplares, é estudado em escolas.
Passam este ano 40 anos sobre a independência das colónias. A ferida sarou?
Qual foi o dia do retorno?
Foi 8 de Julho de 1975. Dois dias antes de fazer 11 anos. Fiz anos quando cheguei a Trás-os-Montes. Deduzo que tenha sido esse o dia. Mas pode haver um registo a 7... Fomos para o aeroporto [em Luanda], estava cheio, ficámos à espera. Não havia um bilhete, um “vai-se naquele dia”.
Foi o fim de uma vida e o começo de outra. Foi o fim da infância e o começo da vida adulta – sem passagem pelo corredor de transição que é a adolescência?
Passa-se pela adolescência. É uma coisa que se aprende nestes períodos mais extremados: independentemente das nossas circunstâncias, há uma parte biológica que se impõe.
África é o continente da infância. Por causa do espaço, da cor, dos cheiros. É tudo muito excessivo. A infância é sempre um tempo mítico. A minha infância ainda foi mais.
Porquê?
Foi passada num cenário ao qual nunca mais regressei. Coincidiu, não com o fim da ditadura, mas com uma coisa mais vasta: o fim do império. Foram 500 anos. A minha história pessoal cruzou-se com a História. Foi a única vez na vida em que fiz parte de um processo assim. Fui uma das vítimas, fui uma das testemunhas, e, por ser criança, não fui uma das cúmplices. Senão teria sido.
O império foi desmantelado e a sua vida também. Arrumada em malas, apressadamente, para iniciar uma nova vida. Retrospectivamente é essa a imagem que fica, que se impõe?
Na altura não se pensa em nada disso. Olhamos para o passado com lentes do presente. Obviamente já sabemos o desfecho. Já somos outros. Na altura é uma família com malas – ou sem malas, no nosso caso. É só uma família aflita num país que está em guerra civil. Que vai perder tudo. Que sabe a miséria de que a metrópole é feita, e que sabe que vai regressar para a realidade de onde fugiu.
Os meus pais foram para Angola por questões familiares e financeiras. Foram para Angola como podiam ter ido para outro sítio qualquer. Mas para a maior parte das pessoas a narrativa era a da pobreza da metrópole. Poucos recursos, pouco emprego, vida pior. Muitos retornados foram para os Estados Unidos, África do Sul, Brasil. Eu tinha muita inveja deles.
Porque iam para destinos exóticos?
Porque não vinham para aqui. Tanto me fazia. O mundo era pequeno para mim. Só há pouco tempo deixei de querer sair daqui. Só em 2010.
Coincidiu com a escrita d’”O Retorno”?
Foi uma coincidência. Já tinha passado uma temporada nos Estados Unidos e um ano na Alemanha. Foi aí que percebi que pertenço aqui. Não por um sentimento de pátria. Esses conceitos não me dizem quase nada.
Onde é que sente que pertence?
Geograficamente não pertenço a lado algum. Pertenço aos meus pensamentos. Pode ser uma construção minha... Pode estar um sol maravilhoso, se estiver triste e não conseguir sair dessa tristeza, o sol não existe para mim. E nos pensamentos englobo tudo. Pertenço aos meus amores. Concentraram-se aqui as pessoas de que preciso. Não me habituo à ausência dos que amo.
Ainda antes do 25 de Abril, vai para a escola, onde é ensinada uma ideia de império. Como é que era?
A ideia de império era passada como é passada qualquer ideia de propaganda. Com a glorificação de um mito. Portugal era um país que ia do Minho a Timor. Tínhamos um mapa [onde se lia] “Portugal não é um país pequeno”. Tínhamos outro mapa só para as colónias: Portugal continental enorme e as colónias à volta muito pequeninas. (Ainda hoje sou muito má a geografia.) Aos sábados de manhã havia os hinos, com a Educação Física. Cá, na metrópole, mitificava-se a vida nas colónias. Com fazendas e elefantes e pôr do sol e mariscos, e as pessoas sempre bem dispostas e na praia. Não era de todo assim. Eram muitas vezes vidas modestas. Muito medo do desconhecido.
Não mencionou uma coisa que fazia parte dessa mitificação: grandes casas com um rancho de empregados. Pretos, como se dizia.
Talvez no interior fosse assim, talvez nas fazendas tivesse de ser assim. Em Luanda, na minha realidade, não era assim. Se for para o Restelo, ficará com a ideia de que os portugueses vivem todos em vivenda com jardim e jardineiros. Portanto, havia, não era a maioria, nem podia ser. A vida maravilhosa que era contada, e muito pelos retornados, não é verdadeira. Mas as pessoas, tendo perdido tudo, tinham que dizer que perderam uma coisa maravilhosa.
Também se mitificava a metrópole? No seu livro escreve: “Então a metrópole afinal é isto”.
Essa frase, levou meses a ser escrita. Escrevi exaustivamente, folhas e folhas e folhas, a dizer como é que era a metrópole.
Como era de facto ou como imaginava que era?
Como era quando cheguei. O que vi. Embelezei tudo. Só agora, a escrever “O Retorno”, é que tirei os pormenores de decoração e passei à memória pura e dura. Foi muito doloroso. De repente percebi que a desilusão é o branco. É o vazio. Não há nada. Surgiu-me esta frase: “Então a metrópole afinal é isto”. “Isto” é a desilusão, é a minha desilusão.
Como era a metrópole mitificada?
Havia cerejas, o fruto mais apetecido. Não havia doenças. Roupas fantásticas. Em Angola fazíamos o calendário pela metrópole. Ou seja, no tempo mais quente estávamos em aulas, no tempo mais fresco estávamos em casa. Tínhamos casas com alcatifa e lareira! As fatias douradas azedavam da consoada para o dia de Natal, mas era assim que na metrópole se fazia.
E as cerejas?
Não havia. Tudo se dava, que era uma terra abençoada (como toda a gente dizia). Caía um caroço e nascia uma árvore. Cerejas e maçãs, não havia. Uma vez, num casamento muito rico, disseram que havia cerejas. E havia, numa cestinha, umas coisas mirradas, feias, que me pareciam pitangas. Provei, achei terrível. Disse que era maravilhoso e passei eu também a alimentar o mito das cerejas. É assim que se faz. Deve ser por isto que não há nada que eu escreva que não tenha cerejas. [riso]
Mitificavam-se as cerejas, a vida cá, a vida lá...
E a verdade está, como tudo, mais ou menos ao meio. Claro que havia coisas maravilhosas em Angola. A vida era mais fácil, havia mais dinheiro, mais oportunidades. Havia coisas terríveis. Medo. Nós éramos uma minoria. Quando digo nós, digo brancos.
Havia medo palpável antes do ano de guerra civil?
Claro que havia. Tinha havido 61, “para Angola, rapidamente em força! [frase de Salazar]”. Tinha amigos que não tinham pai – tinha sido decapitado na década de 60. Usavam-se aquelas braçadeiras de luto: era muito frequente vê-las. Sabíamos que estávamos em território hostil, que não pertencíamos lá.
Sabiam como? Estava nas conversas?
Para já, era uma questão de quantidade.
Na sua turma, na escola, havia meninos negros?
Não. Eu andava no colégio João de Deus, que era privado. Na escola pública, havia. Os negros misturavam-se muito com os brancos. Não havia em Angola o racismo que havia na África do Sul ou mesmo em Moçambique. Mas havia racismo em Angola. Há pessoas que se indignam quando digo que havia racismo em Angola. Mas, nesta esplanada, quantos negros vê? Na Assembleia da República, quantos negros vê? Na televisão, a dar notícias, quantos negros vê? Agora vá para bairros desfavorecidos, e veja quantos negros encontra. Se há racismo em Lisboa em 2015, como é que se quer que em Angola em 1975, numa situação de domínio, de colónia, não houvesse racismo? Como? Só se tivéssemos caído num buraco e nos tornássemos todos infinitamente bons.
Era banal encontrar um branco a maltratar um negro, a falar torto a um negro?
Claro que era. Mas isso até se podia resolver, porque esse branco podia ser punido ou ensinado. O problema do preconceito é anterior: é na não-oportunidade. Se um negro se conseguisse impor e vivesse ao pé dos brancos, e tivesse dinheiro, tirando um ou outro branco, ninguém o expulsava. O problema era ele não chegar lá.
Não havia nenhum negro proprietário de uma empresa com brancos a trabalhar na construção civil?
Não. Como cá não há, quase. E nem nos apercebemos disso, de um fundo lodoso, pantanoso. Em Angola, não me lembro de cenas violentas. Não mais do que aqui quando vou a um bairro menos privilegiado.
A questão é a estratificação social.
A questão é a falta de oportunidades. Quantos negros existiam na escola, quantos viviam em bairros com água canalizada? Acho muito interessante que se estude o que aconteceu se se fizer a ponte para o que está a acontecer. É anestesiante esta ideia de que o colonialismo foi terrível, “como é que nós fomos capazes?”, não percebendo que o que está a acontecer é tão grave como o que aconteceu.
Tão grave, como?
O colonialismo deixou de ser territorial. A não ser que escavemos até ao centro da terra e encontremos algo semelhante a índios ou negros, já não podemos colonizar nada. O mundo tornou-se finito. Só que há outras formas de colonialismo. O económico. O colonialismo económico põe milhões no desemprego, leva a uma desigualdade social enorme – é uma coisa gravíssima. Tornou-se invisível. Não temos consciência dele. “Isso é mesmo assim.”
Diz, no fundo, que temos uma lente treinada para ver a discriminação racial, e que banalizamos a discriminação de classe ou económica?
Ou estética. De alguma forma, a revolução tem de partir das elites. São as elites que têm poder, tempo e dinheiro. Os explorados, os discriminados em geral não têm nada disso.
Estão ocupados a sobreviver.
Estão muito ocupados a sobreviver. Não têm voz. O esforço tem de ser sempre dos que estão numa situação de privilégio. Normalmente, quando estamos numa situação de privilégio tornamo-nos indiferentes. Somos muito rápidos no gatilho, a acusar, mas não estou a falar dos outros, estou a falar de mim. Enquanto não nos toca a nós, o sofrimento do outro pode esperar. Uma das coisas que mais me agradam n’”O Retorno” foi ter falado da Pirata, uma cadelinha que fica lá. Várias pessoas me disseram que perceberam que não podiam abandonar animais por causa da Pirata. Fez-lhes muita impressão aquela cadela que não parava de correr. As vítimas não param de correr. Nós é que paramos de olhar para elas. Há sempre uma altura em que paramos de olhar – torna-se insuportável.
Há dois dias comemorámos os 41 anos de uma revolução, sabemos que fizemos um enorme caminho (é bom que se diga que isto era terrível em termos de pobreza, atraso, etc.), e estamos tão longe, tão longe dos ideais de Abril...
Celebrou o 25 de Abril?
Celebro sempre. Celebrarei qualquer revolução que vise a igualdade de oportunidades.
A maneira como o colonialismo era visto, na metrópole, foi uma das razões pelas quais os retornados foram mal recebidos? Havia a acusação de que eram racistas, que tratavam mal os negros, que estavam a ter o que mereciam.
Acho que sim. Nós fomos os despojos de uma realidade que ninguém queria ver. É simples acusar aqueles que, por desespero, por falta de alternativa, por espírito mais aventureiro, o que for, saíram. Depois esse meio milhão voltou a competir por casas, empregos, namoros. A condição faz [com que sejam olhados assim]: “Vocês são os que exploraram”. Sendo que cá se explorava a criadita da aldeia, que vivia no bairro social de Alvalade num quarto exíguo, que o patrão engravidava.
É verdade que lá exploraram tanto quanto cá, tanto como agora quem tem poder. A questão é: o que é que faz uma pessoa que está numa situação de poder prescindir de explorar o outro? O que nos faz não ceder aos nossos piores instintos?
Civilização, educação?
Mesmo assim. É da condição humana, querer sempre mais, querer sempre o melhor, de sermos pouco empáticos com o sofrimento do outro quando o nosso está de permeio. O que é que faz [com que não seja assim]? Para mim, é a ideia de Deus.
É uma ideia de Bem?
É uma ideia de Bem que me é exterior, que não reconheço em mim nem nos meus semelhantes, e que me impede de ser a maior bandida do mundo. O que é que impede um país ou uma pessoa com poder de subjugar a outra? Se soubéssemos, podíamos prevenir o Mal. Mas o Mal é impossível de expurgar. Há uma parte muito cinzenta – a da ética – em que não se fala de Mal nem de Bem. Fala-se de territórios, mistos, em que vamos sendo bons e maus à vez. É assim que nós somos. O maior idiota tem razão duas vezes ao dia, o ser mais malvado tem uma ou duas qualidades (toda a gente fala de o Hitler ser vegetariano e de gostar de cães).
(Quando falo de Bem e de Deus, não é de religião que estou a falar.)
No espaço de um ano chegou mais de meio milhão de pessoas. A sua inserção não provocou grandes convulsões ou fracturas. A que é que acha que se deveu isso?
Por um lado, temos de definir o que é correr bem. Não há relatos das pessoas que se suicidaram. Não há relatos dos que enlouqueceram. Não há relatos dos que ainda hoje envelhecem amargos e pobres. É verdade que não houve um [faz som de deflagração]! Não foi pelo esforço de integração dos de cá – compreensivelmente. O que aconteceu foi que os retornados decidiram integrar-se.
Decidiram?
Decidiram [integrar-se] porque estavam cansados. Já sabiam o que era uma guerra civil (ao contrário dos de cá). Tinham perdido tudo, estavam muito concentrados em sobreviver. Perceberam que estavam em minoria, mais uma vez. E abriram um café, abriram lojas diferentes. Foi muito através do negócio [que se instalaram].
Muitos funcionários públicos, também.
Mas esses tinham a vida assegurada. Detesto pensar que Marx tinha muito mais razão do que julgamos, mas a questão é sempre económica. Havia retornados que tinham muito dinheiro. Conheci uma família, em Cascais. Tinham uma casa enorme, faziam uma festa todos os sábados. Eram os heróis do bairro. O estigma maior é a pobreza, seja retornado ou não. Os retornados que vieram com dinheiro ou emprego, sim, houve uma perda afectiva, sim, uma saudade, sim, viram coisas terríveis...
A questão é se vieram com uma mão à frente e outra atrás ou se vieram com um punhado de diamantes no bolso.
Exactamente. Tudo o que estamos aqui a falar: vamos bater aí, à pobreza.
Frequentemente diz-se que a descolonização correu mal. Mas podia ter corrido bem, tendo começado com tantos anos de atraso?
Tendemos a ver e a pensar a descolonização só pelo nosso lado. Deixámos povos em guerra, o que por si só demonstraria que a descolonização correu mal. Claro que a independência era fundamental, mas talvez pudesse ter acontecido de outra maneira. Passados 40 anos, atrevo-me a dizer que se passou com o império e as colónias o que em geral se passa nas nossas vidas com a maior parte das pessoas e dos acontecimentos. Avistamos mas não conhecemos, e muitas vezes nem sequer vemos. Avistámos vários continentes, vários povos e várias culturas, mas não conseguimos ver, não conseguimos conhecer, não conseguimos ficar próximos como provam as relações que temos actualmente com esses Estados. Basta olhar para as políticas de imigração e de emigração.
Que memórias tem do ano de guerra civil? Era uma criança de nove, dez anos.
Por incrível que pareça, tenho memórias divertidas. Apesar de terem morrido pessoas. O meu Rui d’ “O Retorno” chama-se assim por homenagem ao meu amigo Rui, cujos dois irmãos foram assassinados.
Não tínhamos televisão. Tínhamos rádio, e os mais velhos adoravam o “Simplesmente Maria”. Antes e depois, havia uma lista interminável de desaparecidos. Basicamente, queria dizer que estavam mortos. A indiferença era tão grande que a minha mãe e as vizinhas diziam: “Esta lista está cada vez maior! Nunca mais chega a novela.” Não eram monstros. Era só porque não lhes dizia respeito.
Quando é que passou a dizer respeito?
Quando ouvi o nome do Hélder e do Zé Abreu na lista. Foram os primeiros dois conhecidos. Irmãos desse amigo, com quem dancei pela primeira vez. E de repente já não era uma lista. Aquelas pessoas tinham cara. O Rui é um adolescente e um homem por causa disto. O Rui foi sempre a minha medida da guerra e a medida do meu conforto. Porque quando cheguei cá e tinha uma vida desesperada, pensava: “Mas o Rui, esteja onde estiver, tem isto tudo e não tem dois irmãos.” Reencontrei-o por causa d’ “O Retorno”, disse-lhe o quanto me sentia culpada por me ter confortado com a ideia de que eu, ao menos, tinha a família completa...
A meio do livro percebi que Rui é o imperativo do verbo “ruir”.
Eram vidas em ruína.
Rui estava certo, porque eu tinha assistido ao monstro a ruir.
Houve isto, houve uma mulher barbaramente violada, houve uma mulher grávida a quem abriram a barriga. Isto tudo entre os vizinhos.
E como é que pode ter memórias divertidas?
Habituamo-nos a tudo. Era lindo ver as balas luminosas, da sede do MPLA para a FNLA. Não sei o nome técnico, parecia fogo de artifício. Assistíamos da varanda, como assistíamos a muitos outros confrontos, que nos tiravam, a nós crianças, ou a adultos inconscientes, do tédio. O recolher obrigatório fazia com que não se voltasse a horas para casa. As festas prolongavam-se pela noite. Fazia com quem os professores faltassem às aulas. Fazia com que tudo fosse extremado, urgente. Muitas coisas deixaram de ter importância. Eu podia andar com umas botas de salto alto da minha irmã, cinco anos mais velha, e a minha mãe não me dizia nada. Havia tanta coisa a tratar... Habituamo-nos a tudo. E até, se tivermos talento para isso, habituamo-nos a ser felizes nestes contextos.
Estou sempre a falar do ponto de vista de uma criança. Acredito que a disposição do meu pai, preocupado com o regresso ou o nosso sustento, fosse diferente da minha. As recordações piores já são na metrópole.
São dos pais e dos amigos dos pais a falar do que perderam? É a sensação de desamparo, aqui?
Não. Como eu dizia, não há nada como a pobreza. Era ponto assente para os meus pais que nem eu nem a minha irmã podíamos parar de estudar. Por isso, tivéssemos roupa ou não, comida ou não, passe ou não, íamos. Repare, as crianças são muito cruéis. É complicado ir para uma escola onde não se conhece ninguém, onde se é diferente... Se tivesse o dinheiro dos retornados da casa grande e pudesse impor o meu exotismo... Tinha de andar com o pijama debaixo da roupa, uma gabardine e umas galochas que deram na Cáritas, sem cadernos, livros emprestados, uma professora que disse: “Um dos retornados que responda”. Quem é que quer um colega destes? O poder que tive foi tornar-me muito boa aluna. Mas percebi que isso também não chegava. Continuava a não ser convidada para as festas. A maior parte das pessoas sucumbe. E assim cessa qualquer possibilidade de ascensão.
Conversas políticas, ódios políticos inflamados: o que é que apanhou disto?
Havia dois grupos. Um de pessoas mais velhas, mais de direita, mais reaccionários, que achavam que a esquerda lhes tinha estragado a vida; raramente eram apoiantes da ditadura; havia a ideia de que Angola devia ser independente e ter um governo misto.
Essa direita polarizava o seu ódio em Mário Soares e no PS?
No PS e em tudo à esquerda do PS. No Rosa Coutinho. Outro grupo: o dos mais novos, que tinham um fascínio pela esquerda. A esquerda de Cuba! Cresci com os revolucionários, no liceu. Todos sonhávamos ir para a União Soviética, para os países de Leste e, não sei porquê, para os kibutz de Israel.
“Tu és fascista, tu és comunista.” Durante anos não havia nada no meio. Era dos comunistas?
Era uma comunista especial com um sonho imperialista [riso]. Eu queria era ir para a América!, adorava filmes e coca-cola.
Cresci. Evidentemente sou de esquerda?
Evidentemente?
Pelo que acabei de dizer: porque acho que somos todos iguais e que merecemos as mesmas oportunidades.
Isso é a base do ser de esquerda?
Para mim, é. Tudo o que retire essa possibilidade, está eticamente errado, é imoral.
Não tive filhos, voluntariamente. Como é que poderei contribuir para deixar aos que vêm um mundo melhor? Por exemplo, acho que maltratamos muito os outros animais. Não uso nada de origem animal, e acho que isso faz a diferença. Sou tão minoritária neste momento a dizer isto como há um século foi minoritário quem disse que o império não devia existir.
Quando é que a ferida começou a sarar? Para tantos, a ferida continua aberta.
Muito cedo tomei uma série de decisões. Por causa deste percurso e por causa de outras coisas que me aconteceram, e que foram mais gravosas do que isto... Aos 15 anos tive um acidente enorme e fiquei muitos meses no hospital. Tive muito medo de não tornar a andar, de ficar desfigurada. Foi outro um antes e um depois. Mas diferente. Em 75 fazia parte de um grupo. É como estar doente numa epidemia. Em 1980 estava sozinha naquele problema. Tive tempo para decidir que não queria pautar a minha vida pelo ódio, pela amargura, pela raiva. Não abdico de lutar pelo que acho que está certo. Sou optimista da condição humana. “O Retorno” ter corrido tão bem, ter tantos leitores, tem a ver com o facto de eu não querer ajustar contas.
Porque é que o livro não pode ser lido como uma forma de ajustar contas com o seu passado, com o país?
O livro é uma radiografia da perda. E é, acima de tudo, uma ideia de recomeço. Perder um país é estranho; é como se parte de nós desaparecesse num fenómeno histórico. Há muitos retornados com um ódio enorme à metrópole, aos de cá, aos de lá... Não sou desses.
Estão a passar 40 anos sobre a Independência das ex-colónias...
O que talvez interesse é pensar, perceber a natureza das relações entre Portugal e Angola. Agora [a situação] inverteu-se. São eles que nos estão a colonizar em termos económicos, e um grupo, alguns de nós, estão a lucrar muito. Talvez fosse interessante perceber de onde é que vem esse dinheiro, como é que a elite angolana obtém esse dinheiro, o que nos torna, como país, receber esse dinheiro.
Já ouvi artistas dizer: “Ainda bem que há o dinheiro angolano, ainda bem que há o dinheiro chinês”. Quando dizemos isto, ignorando o atropelo dos direitos fundamentais, na verdade merecemos o que vamos tendo. Se o nosso privilégio vem à custa da exploração de outros, isso não nos torna só testemunhas, torna-nos cúmplices. As linhas são muito ténues, e passamos de uma para outra sem nos darmos conta.
As relações pantanosas entre Angola e Portugal, neste momento, incomodam-me muito mais do que o colonialismo. O colonialismo foi errado, o império nunca devia ter existido, mas está acabado. Mas isto [o presente] não. E vivendo numa democracia pode-se votar ou não em quem permite estes negócios. Acredito que cada cidadão tem imenso poder e que abrimos mão disso.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015