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Anabela Mota Ribeiro

Dürer

30.01.14

Um gentilhuomo fita a posteridade com assertividade e mistério. É um artista reputado, que regressa a Nuremberga depois de uma (fundante) viagem a Itália, e se revê ao espelho do seguinte modo: olhar compenetrado, cosmopolita, enamorado de si. Albrecht Dürer retrata-se em 1498 e escreve: «Pintei-o segundo a minha figura. Tinha 26 anos». Naquele ano aconteciam coisas tão extraordinárias quanto a chegada à Índia pela armada de Vasco da Gama ou uma majestosa Virgem nos Rochedos pintada por Leonardo da Vinci. O artista alemão publicara já Apocalipsis, viajara por uma Europa em ebulição, bebera do espírito do seu tempo. Quando posa, sabe da eternidade que lhe é reservada, mercê da modernidade e experimentação, e sabe, sobretudo, que deixou de ser um ourives filho de um ourives.

No famoso auto-retrato de 1498, Dürer usa uma indumentária sofisticada. A escolha denuncia as suas viagens («A minha capa francesa saúda-o e a minha roupa italiana também!», escreve numa carta) e uma promoção social que o destaca dos artesãos do seu tempo. Em lugar de mostrar as mãos com que materializa o seu trabalho, opta por escondê-las numas luvas de pelica, reservadas aos homens de estatuto social superior. É um artista consciente de si mesmo, que se projecta como quer ser recordado. Tem a noção de que o trabalho oficinal fora elevado a uma nova condição. Aquilo que faz, é arte.

A janela que rasga para o exterior, ainda no auto-retrato de 1498, confirma a presença da Renascença. Há um mundo que se desvenda, em perspectiva, e que contempla campos cultivados ou o degelo nas montanhas. Na Europa opera-se uma mudança absoluta de paradigma a partir de um núcleo de cidades italianas. Um quadro de florescimento económico possibilita, e coincide, com um desenvolvimento das vias da cultura. Carlos V é eleito imperador com a preciosa ajuda do banqueiro Fugger, (de quem tomou de empréstimo 850,000 florins), e aglutina o sacro império romano, os Países Baixos e o império espanhol. Gutenberg imprime a primeira Bíblia em 1460 e levanta pela primeira vez questões relacionadas com a reprodução mecânica. A pulverização da riqueza e a afirmação do homem como medida de todas as coisas, (denominador de todos os Renascimentos), permitem a abolição de uma noção teocrática da existência. Anos mais tarde, cerca de 1517, Nuremberga é tocada pelo espírito da Reforma e devora os escritos de Lutero. Erasmo de Roterdão protagoniza o pensamento humanista e revela-se uma celebridade. Era um mundo estilhaçado, em reinvenção, e Dürer quis tomar parte dessa espantosa mudança.

Foi o terceiro filho de um total de 18 que o casal Barbara e Albrecht tiveram. Procediam, ambos, bem como o padrinho de Dürer, de famílias de ourives. Quinze das crianças morreram. Escrevem estudiosos da sua obra que o contacto com a obscuridade da morte e a resplandecência do ouro foram seminais na sua infância. Mas é verdade que os sentidos metafóricos oferecem sempre leituras poéticas da realidade. Frequentou a escola e estudou aritmética e latim, iniciou a sua aprendizagem no atelier do pai e compôs um primeiro auto-retrato com apenas 13 anos. Um desenho singelo que ficará como um dos primeiros auto-retratos da história da arte europeia. Suspeita-se que tenha tido, nesta empresa, o auxílio do pai...; todavia, é notável a precocidade do talento que aqui revela.

Para converter-se num artista completo, como pretendia, era forçoso dominar a forma, experimentar as matérias, traduzir as suas ideias em desenhos. A formação foi prosseguida, na adolescência, em oficinas de artesãos que admirava. Aprendeu a integrar a pintura e a ouriversaria, a fazer pigmentos, gravar na madeira ou dourar. Mas num momento de ruptura como aquele que se vivia, a viagem até ao coração do mundo, o diálogo com o seu tempo, o contacto com a obra de artistas como Mantegna, foram igualmente determinantes na sua formação.

Dürer destacou-se por ser um artista poliédrico, que acompanha a modernidade e frequenta os círculos humanistas. Dotado de uma curiosidade meticulosa, foi um observador infatigável da realidade, que retratou recorrendo a vários suportes. Muitos dos desenhos, (anotações de viagem feitas no correr dos dias), foram posteriormente integradas nas suas pinturas e gravuras. A minúcia e o virtuosismo técnico do seu trabalho permitem-nos, hoje, contactar com um período fervilhante da história da Europa, e destacam-no como o mais importante artista renascentista a norte dos Alpes.

Quando pintou A Lebre, a sua obra mais famosa, gozava já de uma reputação sólida. A publicação do livro Apocalipsis consagrou o seu trabalho como gravador e legitimou este suporte. A par das encomendas, especialmente centradas em motivos canónicos, o artista alemão aderiu a um território de pura experimentação. A realidade que se desenrolava ante os seus olhos exercia um claro fascínio sobre si. Os cadernos de desenho de Dürer compreendem interesses que vão da zoologia à botânica, da anatomia à mitologia. São páginas que condensam influências várias _ tradição e modernidade, religião e natureza, gótico e Renascimento. Tudo tende para uma harmonia artística, para uma reprodução exacta da natureza _ aí se encontra a justa medida.   

A Lebre: a plumagem é de uma macieza que apetece tocar. Mas o que mais impressiona é o momento em que Dürer enclausura o animal. Um instante decisivo entre «a quietude sossegada e a predisposição para saltar e fugir, sinalizada pelos olhos alerta e pelas orelhas erguidas», (como se escreve no catálogo da exposição do Museu do Prado). Muito se discute acerca das condições em que o quadro terá sido pintado. Os especialistas inclinam-se para a possibilidade de o estudo ter sido feito a partir de um exemplar de caça morta. Ou seja, de o pêlo, as orelhas, as patas e outros detalhes serem copiados de um coelho doméstico e depois devidamente adaptados à lebre que Dürer pretendia incluir na sua “Arca de Noé” desenhada. Considera-se que «dada a natureza medrosa de uma lebre, domesticável com dificuldade, é improvável que o animal se deixe pintar numa posição tão tranquila». A Lebre, datada de 1502, inaugura um novo tipo de quadro: o retrato animalista. Do mesmo período, constam amostras de micro-cosmos vegetais, detalhes da asa de uma ave_ pintados como se se tratassem de naturezas mortas_, aguarelas de carácter narrativo com a Virgem e uma multitude de animais.

A produção de Dürer é abundantíssima e diversificada. Mas será na gravura que ela encontra o seu ponto de maior maturação. Prova disso são, por exemplo, S.Jerónimo em casa e Melancolia. O primeiro recupera uma fixação do artista na figura do visionário e ardente autor da Vulgata (tradução das Sagradas Escrituras do hebraico para latim). É uma circunstância singular esta que aqui é retratada. O doutor da Igreja aparece em casa, e não no deserto, como era habitual, e irradia uma serenidade que contrasta com o temperamento irascível que lhe era atribuído. No gravura ganham destaque os veios da madeira, a luz que escorre da janela, o enchimento das almofadas, o halo do santo _ além de todos os objectos simbólicos que rodeiam a figura de S. Jerónimo: a ampulheta, a caveira, os livros, e, claro, o fiel leão.

Mas é Melancolia a gravura mais analisada e interpretada por especialistas de diversas disciplinas (médicos, matemáticos, astrónomos, historiadores de arte). É uma obra enigmática, que tem, ao centro, uma mulher circunspecta e, ao canto, um quadrado mágico _ as várias leituras resultam sempre no número 34. Quem é esta mulher de rosto escurecido, de compasso na mão e livro fechado no regaço? Que significado têm as plantas enredadas numa coroa que lhe sustem o cabelo? Muitos julgam ver aqui um auto-retrato de Dürer perturbado pela morte recente da mãe. Ou um Dürer pesaroso e triste, acometido de um ataque de bilis _ daí a cara enegrecida_, como são um pouco todos os artistas. (Ao contrário da tendência medieval, que atribuía a este temperamento características negativas, os filósofos neo-platónicos do Renascimento, consideram que da melancolia resulta genialidade e máxima criatividade.)  

Este humanista, por muitos apelidado de «O Leonardo do Norte» (tal o paralelismo que é possível estabelecer com o mestre renascentista), legou um retrato escrupuloso da sociedade da sua época. Pintou assuntos religiosos e profanos, santos, amigos, animais, a natureza, o corpo humano. Cantou a glória imperial de Maximiliano I, que o nomeou pintor da corte e lhe concedeu uma tença vitalícia; contudo, esta foi interrompida com a morte inesperada do imperador. Na sequência do episódio, amargo e desiludido, Dürer empreendeu uma longa viagem com a intenção de pedir ao sucessor do trono a restituição da renda_ o que lhe foi concedido. Morreu em 1528, depois de anos antes ter contraído a malária. Não deixou descendência. Agnes, a sua mulher e testamentária, não merecia a simpatia dos contemporâneos, mas cuidou da sua obra e fortuna. Não é certo que amigos seus tenham exumado o cadáver e feito moldes de gesso do rosto e das mãos, mas a história, rocambolesca, corre.

A exposição que o Museu do Prado, em Madrid, lhe dedica, e que decorre até fim de Maio, recorre quase exclusivamente ao espólio da Albertina de Viena, o museu onde se encontra grossa parte da produção do artista. «Dürer, obras mestras da Albertina» desdobra-se por uma área relativamente pequena do imenso Prado e amontoa toda a sorte de trabalhos. Os fins de semana são desaconselháveis e há filas de entrada garantidas_ comprar os bilhetes pela internet pode ser uma boa alternativa. A iluminação e a montagem são deficientes e o resultado final é, no mínimo, fatigante! Decorridas as cerca de duas horas e meia que a exposição consome, persiste uma baralhação que só cessa quando o olhar repousa, novamente, e desta vez sem atropelos, nas imagens do artista alemão.  

 

 

Publicado originalmente na revista Grande Reportagem do Diário de Notícias