Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Souto de Moura

20.07.21

Eduardo Souto de Moura ganhou (quase) todos os prémios que havia para ganhar. O mais prestigiado de todos é uma espécie de Nobel e chama-se Pritzker. Foi em 2011. É um arquitecto muito culto e engraçado que pensa a desenhar. Tem atelier num bairro popular no Porto. Nesta entrevista fala-se de Siza, de Távora, do SAAL, da Michelle Obama que é bem simpática, do tempo em que era tudo materialismo dialéctico e conversa de café, do “Livro do Desassossego” que é a sua bíblia. Nasceu em 1952.

 

O que é que estava a fazer antes de eu chegar?

Estava a dar instruções para um concurso em que estou a trabalhar. É um teatro em Clermont Ferrand. Estou um bocado cansado de fazer concursos. Mas nunca fiz um teatro. Somos quatro [finalistas]. É um trabalho de equipa que envolve cenógrafos, acústicos, arquitectos. Não é fácil conciliar isto tudo. Um teatro é uma máquina, não é propriamente um exercício de composição.

 

Estranho a enfâse que deu à palavra máquina, e que contrasta com a ideia de narrativa, vida inventada que se passa no palco do teatro. A sua evocação é concreta.

É. Não tem a ver com os teatros, tem a ver com a evolução da arquitectura. Há um destino da arquitectura, por motivos sociológicos, políticos, económicos, comum a outras disciplinas, em que tudo, cada vez mais, está especializado. Dou um exemplo. Estive nos Estados Unidos a semana passada. No meio da reunião: “É legal fazer aqui uma rampa de garagem?”. Passados dez minutos vem uma advogada com uma pasta, e explica. Depois disse: “Gostava que o sentido da rua fosse aquele...”. Passada meia hora chega um especialista em trânsito.

 

Isso que conta não tem um sentido figurado?

É real. O mundo está a especializar-se. Obrigam-nos a ter uma capacidade de resposta muito directa e técnica. É evidente que tem de ser bonito, aprazível, barato (ou quase na miséria, porque hoje não há dinheiro para nada). Há um inventário de questões técnicas (onde está a contradição entre o orçamento e o que se pretende) a que temos de dar resposta.

 

Como é que ficámos reféns dessa vida segmentada? Essa sua queixa/constatação ouve-se em todo o lado.

Não sei. Sempre gostei de trabalhos colectivos. Trabalhei 13 anos no metro do Porto. Quando entrei fui motivo de chacota porque os engenheiros alemães e franceses perguntavam: “Um arquitecto para quê?” Numa primeira fase, trabalhei para conseguir ter um estatuto dentro da equipa. Estatuto: era provar que eu era conveniente.

 

Estamos a falar de um período posterior à sua licenciatura.

Sim. Confirmou-se aquela frase do Siza: “O arquitecto é um técnico que não sabe nada de nada, mas sabe um bocado de tudo”. Esse tipo de trabalho [em equipa] deu-me amparo. Não existia o conceito de “arquitectura artística” – acho que a arquitectura não é arte – em que as musas chegam, inspiram, e depois de tanta transpiração, consegue-se chegar lá. Não é nada disso. É à custa de trabalho e, hoje em dia, de muita informação.

 

Portanto em equipa sente-se amparado.

Sim, e trabalhar em equipa retira-me dúvidas metafísicas. O que é que hei-de fazer? Vou pintar de cor de rosa? Vou fazer janelas grandes? As dúvidas que há na chamada angústia do papel branco. Na equipa, acelera-se o processo. Dão informação. E por fim, preciso de entregar na próxima quarta-feira.

 

Contra a metafísica, impõe-se a realidade?

Isso mesmo.

 

Em suma, temos uma especialização crescente, uma necessidade de condensar muita informação e essa tal de musa (que algures deve aparecer para dar uma forma).

Isto é como na gastronomia: dá-se a receita e faz-se. Há uns de quem se diz: “Está muito bom”. E outros de quem se diz: “Está uma porcaria, deita fora”. É preciso sempre um clique. Qualquer coisa que não está codificada. Senão, consegue-se fazer uma construção, não se consegue fazer arquitectura. O que é a arquitectura? É a construção com uma mais valia.

 

É pomposo e foleiro dizer que essa mais valia se chama “alma”? Dizemos de um espaço que ele tem alma. Mas estou a vê-lo a banir a palavra...

Não, eu tenho alma! Fui educado da religião cristã e percebo o que quer dizer. É uma palavra bonita, por acaso. Nunca tinha pensado nisso, mas sim, é mais do que a parte física da casa.

 

É uma certa atmosfera que ela exala?

Gosto mais de atmosfera. É menos metafísico. [riso]

 

O que é que alimenta a sua musa? Artes plásticas, literatura?

Primeiro, há várias arquitecturas. A minha actividade principal é a arquitectura e procuro actualizar-se ou confirmar dúvidas minhas. Estou sempre a oscilar. Não quero usar a palavra “desassossego”, já não se pode com a palavra “desassossego”! Gosto de ler e viajar para ver outras arquitecturas. Há sempre uma polarização de dois factores, uns mais objectivos, outros mais afectivos. Os racionalistas e os expressivos. Os platónicos e os aristotélicos. Os atomistas e os epicuristas. Há sempre dois conjuntos que se reflectem numa concepção do universo – o que também acontece na arquitectura.

Fundamentalmente, para além da arquitectura, gosto de literatura.

 

Porquê?

É mais fácil. Pego num livro e pronto. Há um conjunto de escritores e temas que leio ou releio. Vou andando por ali.

É evidente que a pintura me interessa, que a escultura me interessa. Do cinema, gosto, mas vou ser directo: chego a casa tão cansado que não me apetece ir ao cinema. Resta o vídeo, e mais a rever. De vez em quando falam-me de um filme e vou. Há uns meses fui ver “A Grande Beleza”, do [Paolo] Sorrentino.

E gosto de fotografia.

 

Quais são os seus autores preferidos?

Do Pessoa, toda a gente gosta. Não estou nada de acordo com o Cesariny que dizia que tanto Pessoa já enjoa. Acho que era dor de corno. Tentaram dizer que o poeta de Amarante, o Teixeira de Pascoaes, era melhor do que o Pessoa. Aquelas coisas que se dizem. Também dizem que não sei quem é melhor do que o Siza. Que a mulher do Alvar Aalto é que fazia os projectos. É de rir. O marketing precisa de uns escândalos.

 

Leu o Pascoaes?

Li a “Arte de Ser Português”: não gostei nada. Gostei imenso do prefácio do Miguel Esteves Cardoso; é melhor do que o livro. Pessoa é um dado adquirido. Nos hotéis há bíblias. Eu vou para fora e nos hotéis leio “O Livro do Desassossego”. Tenho várias edições.

 

Aqui fica uma ideia para o próximo hotel que desenhar: que em cada quarto haja “O Livro do Desassossego”, como se fosse uma bíblia.

[riso] E porque não? Está tudo traduzido. Chego às livrarias dos sítios mais estranhos e está o Pessoa. O Herberto Helder foi uma descoberta que fiz quando era novo. Gosto e não percebo bem. Mas acho que percebo alguma coisa. Leio outra vez e acho que é por ali. Não sei porque é por ali...

 

Gostava que falasse mais da incompreensão. Não se compreende completamente, mas não se abandona. Oferece resistência, mas fica a perturbar, a germinar... Claro que isto não é válido só para o Herberto Helder.

Tenho isso no [Álvaro] Lapa, como pintor. Dizem-me: “Porque é que gostas? É um bocado infantil.” Respondi: “É essa inocência que não entendo bem que me faz gostar. Essa inocência que está num homem tão maduro e tão gasto.” Essa suspeição de que [a compreensão] é por ali, mas não tenho caminho, dá-me um incentivo.

Gosto de reler. Às vezes estou em Lisboa, não tenho nada para ler. Vou comprar um livro que já li dez vezes. “O Náufrago” do Thomas Bernhard.

 

Como é que se interessou pelo Thomas Bernhard?

Ganhei um concurso em Salzburgo. O projecto foi falsificado. Fui para tribunal e arranjaram-me uma tradutora portuguesa. Ela era namorada ou amiga do secretário do Thomas Bernhard. Um dia disse-lhe: “Isto é tudo uma vigarice. Pensei que a Áustria fosse um país... Wittgenstein, e afinal são piores do que nós!”.

 

Fizeram outro projecto a partir da sua obra?

Isso. Ela respondeu: “Tem de ler o Thomas Bernhard. Vai perceber o que é a Áustria.”. Sou um bocado obstinado ou obsessivo. Comprei logo dez livros.

Já falei do Herberto, do Thomas Bernhard, do Pessoa. Acerca do Pessoa, não há nada a dizer. Ainda agora me pediram para fazer uma instalação no Martinho da Arcada. Vou fazer um candeeiro e mudar os quartos de banho, que são horríveis. Não tenho que instalar mais nada. Instalar o quê, no Pessoa? É auto-suficiente. No Martinho da Arcada está ele próprio, a mesa, a fotografia. Eu pensei ser fotógrafo.

 

Isso já responde a uma pergunta que eu trazia: se não fosse arquitecto, teria sido o quê?

Se calhar, fotógrafo. Gostava de escrever, mas é muito difícil. Nunca pensei ir para arquitectura. Era miúdo. Estudava e dava explicações. Gostava de Filosofia, Física, Desenho. Os pais diziam: “Vais para isto...”. Aquelas coisas. Foi o meu irmão, que é um grande artista, pinta e tal (os meus pais, muito conservadores, nunca o deixaram ir para as Belas Artes), que me disse: “Porque é que não vais para arquitectura?”. Alínea H. Era um aluno médio e fiquei um bom aluno: exactamente porque acertei nas disciplinas.

Achei as Belas Artes, no 25 de Abril, a coisa mais divertida do mundo! Estava nas minhas sete quintas.

 

Como era?

Professores maravilhosos. Ambiente maravilhoso. Depois fechou tudo. Havia só, praticamente, uns comícios. Divertidos. Tive a sorte de trabalhar no SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local]. Não sabíamos fazer projectos. Era só materialismo dialéctico e conversa de café. Quando chegou a altura de desenhar casas, os meus colegas e eu tivemos a consciência de que não sabíamos fazer nada.

 

Estamos a falar de que ano?

  1. “Se vamos buscar um arquitecto, vamos buscar o melhor, o Siza.” Desde aí, tenho trabalhado com ele.

 

Que frase boa!, resume um tempo: “Era só materialismo dialéctico e conversa de café.”

No outro dia estava na feira de Paraty (FLIP), perguntaram-me porque é que era um arquitecto pragmático, que falava pouco do significado da minha obra. Respondi: “Realmente interessa-me fazer casas sob um ponto de vista físico. Ninguém faz amor debaixo da semiologia.” O título do jornal: “Ninguém faz amor debaixo da semiologia”.

 

Isso revela o seu sentido de humor. E cultura. E como é desprendido a falar das coisas.

Sim. Isto é mais fácil do que o que se pensa. Complicamos e sofremos. Tive um grande professor, o [Fernando] Távora. (Estou a misturar tudo. Não se importa?) Já falei do Siza, falo do Távora. Tínhamos uma formação muito teórica. A ideia, nos anos 70 (nos 60 lá fora, chega cá sempre tarde, é a história de Portugal), é que era preciso mudar o mundo para poder fazer arquitectura. Toda a gente queria fazer um homem novo para fazer uma nova arquitectura. Para fazer um homem novo era preciso mudar a sociedade. Daí o materialismo dialéctico.

 

Isso tudo foi dar onde?

Como nada é um processo linear, rapidamente apareceu uma grande desilusão. Transformei-me numa pessoa pragmática, menos ligada às ideologias. O Távora foi um professor excepcional. Na altura não o percebi bem, mas quase todos os dias, hoje, penso nele. O Távora resumia: “A arquitectura é a vida. A boa arquitectura é aquela onde as pessoas se sentem bem, dormem bem, comem bem, gostam de estar umas com as outras, fazem amor”. É descobrir a alma numa casa, como você disse.

Ao longo do tempo fui percebendo que isto é um conjunto de relações com os sítios, os materiais, as culturas, as pessoas, as técnicas de construção. É a empatia que existe entre estes factores todos que faz com que a arquitectura nasça, exista. Pronto, caiu a semiologia. Fiquei com o pragmatismo. Quando tenho de fazer um projecto sou como uma leoa.

 

Que quer dizer com isso?

Vê-se nos filmes da National Geographic as leoas no meio do capim a tentar estabelecer a estratégia. Eu tenho de fazer uma casa. Não descanso enquanto não conseguir chegar lá.

 

Procura o diálogo entre essas várias exigências e elementos. Não descansa enquanto não encontra o tom. É isso?

Gosto da palavra tom. Tenho um texto sobre a arquitectura e os croquis. Vemos uma orquestra, com o pano fechado, a ser afinada, antes de chegar o maestro. Os croquis são os sons atrás do pano. A ver que tom vamos dar. Vamos fazer mais tectónico, mais gravítico?, mais leve, mais transparente?

 

Trabalhou e estudou ao mesmo tempo. Já disse que trabalhou no SAAL, com o Siza. Que importância teve isto?

Para ser honesto, o estudar era pouco. Era mais trabalhar com o Siza. Mas aprendi muito. As aulas do Távora: íamos de carro a Ponte de Lima ver um solar, para falar do Barroco. Tive essa boa pedagogia saltando muito a parte técnica (era considerada reaccionária e tecnocrata). Suprimi essa falta trabalhando no Siza.

Olhando para trás, tive muita sorte. Um ambiente que nunca mais acontece em Portugal e na Europa. De transição. Sem ser violento.

 

Trabalhava no terreno, com as pessoas de todos os dias.

A nova pedagogia passava por abrir a escola ao exterior. E isto tudo acompanhado pelo [Joseph] Beuys: todo o homem é um artista. À noite havia seminários com as populações das ilhas, bairros operários. O povo é quem mais ordena? O Siza dizia: “Eu não sou a mão do povo.” Havia correntes que defendiam que devíamos fazer as casas como os moradores queriam. Os moradores queriam um conceito pequeno-burguês. Com toda a justiça! “Como é que vamos fazer as casas?” “Como a sua. Você não vive bem? Queremos igual.”

 

Nesse contacto com pessoas de bairros como as Fontainhas, era um menino bem.

Não há que esconder. Como toda a gente de esquerda. Ninguém vinha das populações proletárias: o Lenine, o Trotsky, o Fidel Castro, o Che Guevara. O Salazar, o Mussolini: esses vieram do povo.

 

O que é que aprendeu da vida no contacto com essas pessoas, de um meio social diferente do seu?

O meu pai era um médico conservador, monárquico. Muita religião. Tias. Asfixiante. Mas fumávamos à mesa aos 10 anos. “Vão fumar no liceu às escondidas, não é? Então comecem aqui. Fumam dois cigarros por dia.” A minha mãe saía, escandalizada. O que é certo é que comecei a fumar aos 20.

Na quinta da família, em Braga, vivi uma realidade feudal, nos anos 60. Ia nas férias. Os empregados não usavam sapatos. A missa ao domingo: tudo sentado no chão, com os pés gretados. Só havia dois bancos, para a família Moura e a família Zenha (do Salgado Zenha). Depois ficavam velhos, doentes, iam viver para debaixo de uma escada em casa do filho. E era assim a vida.

 

Tinha noção nítida das diferenças de classe, é o que está a dizer.

Tinha noção de uma grande injustiça. Isto não pode ser! Nas Belas Artes tive contacto com a miséria urbana. Aqui, num quarto 3 por 3 vivia uma família. Casos de incesto. Miséria. Um cheiro insuportável. (Não falei já muito?)

 

Estamos no seu período de formação, estudando e trabalhando ao mesmo tempo. Com pessoas como o Távora e o Siza.

Tive outros professores muito bons. O Alberto Carneiro, o escultor, foi meu professor de desenho. Coisa única! A aula era representar as emoções que tínhamos [a propósito] de ruídos e sabores. Por exemplo, tínhamos estes materiais: madeira, pedra, metal. “Lambam isso. Façam um desenho. Agora o som dos materiais.” Os cacifos, ping. Madeira seca: pof. “Desenhem”. Eu chegava a casa e contava ao meu pai. “Vai morrer de fome. Só lambe pedras.” [riso] O Alberto Carneiro era um maluco, interessante, com graça. Supostamente isto não serviu para nada.

 

E depois, serviu?

Sim. Há muitos momentos na obra, ou quando estou a desenhar, em que tenho de decidir se continuo com a pedra ou se faço em vidro... Lembro-me constantemente do Carneiro.

O Távora não nos deixava desenhar com rectas, só com curvas. Eu chegava com uma casa muito direitinha, toda a noite a desenhar – ele riscava tudo.

 

O que descreve, e desenha no papel que agora temos sobre a mesa, tem que ver com elegância, equilíbrio.

E com aproximação. Continuo a riscar os desenhos.

 

Os seus arquitectos dão-lhe os desenhos direitinhos, com rectas e risca por cima.

Tudo.

 

Curioso, há pouco, quando falou de outras disciplinas artísticas, não ter referido a dança. A sua descrição é de um certo movimento.

Ia muito ao ballet, no Rivoli. Ficava deleitado.

 

Já que fala de aproximação, deixe-me perceber o modo de trabalhar. Enquanto arquitecto, a sua prática faz-se no olhar, no pensar, na construção ou na soma destas três?

A resposta mais fácil é a soma das três. Mas a mais importante é o construir. Porque de boas intenções está o mundo cheio. E em Portugal há 20 mil arquitectos. Interessa-me o que fazem, não o que dizem.

 

E o olhar e o pensar?

São a condição necessária mas não suficiente. O que interessa é o que fica. Eu penso desenhando. Foi um hábito que adquiri com o Siza. Nós, como colaboradores, não podíamos fazer uma pergunta, uma dúvida, se não desenhássemos. Quando fazemos uma pergunta ao Siza, ele quer o grafismo. “Não estou a perceber nada. Desenhe, desenhe, para eu perceber.” Eu desenhava e ficava horrível. O facto de desenhar dá consciência da dificuldade do problema.

A arquitectura é uma actividade gráfica. Desenhamos os códigos para que a forma possa acontecer. Um projecto é um código. A arquitectura é a resposta a um problema. A resposta é mecanicista (2+2=4). Se for só 4, é construção. Se for arquitectura é 4 mais qualquer coisa (como falámos).

 

Esse algo mais, está decidido à partida?, encontra-se?

A arquitectura não é só física. Mas tudo o que acontece para além da física, não é voluntário. Não há arquitectura narrativa. Há à posteriori. Às vezes vou às casas dos clientes (quando não me zango). “Sentimo-nos bem aqui. Já reparou nisto?” Contam histórias. Eu, quando faço os riscos, não faço a transposição para aquele acontecimento. Eu faço quatro paredes. As pessoas apropriam-se [do espaço]. Põem tapetes persa, compram cómodas D. João V, convidam o Saramago e há um jantar muito agradável: isto não tem nada a ver com arquitectura! Eu tenho é de proporcionar que isto aconteça.

 

As casas são uma constante na sua obra. Como é que se desenha um espaço que propicia a intimidade?

Respondo assim: faço as casas para mim. O cliente é um heterónimo.

 

A casa do Cristiano Ronaldo é uma casa para si?

É. Imagino que sou um craque em futebol.

 

Empatia. Põe-se no lugar do outro.

Sim. O Pessoa faz a descrição [biográfica] dos seus heterónimos. Eu penso que nasci na Madeira. Faço isto porque preciso de um mediador.

O Donald Judd disse-me que não aguentava a angústia de estar a olhar para uma barra de alumínio e dizer: “Vou fazer esta peça com 1,17 ou 1,16.3?. Esta solidão em que não há nenhum motivo para decidir (em que depende só de mim), leva à exaustão.” Ele é artista plástico e queria ser arquitecto – e foi. Eu disse-lhe que queria ser fotógrafo e estava farto de ser arquitecto. Os grandes arquitectos do século XX: Corbusier, Mies van der Rohe, Gropius, Barragán: nenhum é arquitecto. É estranho, não é?

Na arquitectura tenho um sítio, regras para construir, um cliente, dinheiro, imensos limites. Muitas vezes, estes limites servem de desculpa para o que não fica bem. “Se fosse como eu queria, se houvesse mais dinheiro...” Más desculpas. No fundo, não há nenhuma actividade olímpica.

 

Voltemos ao Siza. É dificílimo o que fez: formar-se com ele, emancipar-se em relação a ele...

E continuarmos a trabalhar juntos. Parece o milagre das rosas! [riso]

 

Só a circunstância de viverem e trabalharem dois Pritzker no mesmo prédio...

Ele vive por baixo de mim, e aqui trabalha por cima.

 

Acha que ele é o melhor?

Acho que é o arquitecto mais completo. Naquele sentido de que há pouco falámos, de que é preciso ver, produzir. Tenho ideia que é o arquitecto que ganhou mais prémios no mundo. Ganhou tudo, só lhe falta o prémio Carlsberg da Dinamarca. Não ganhou esse porque ganhou o do Imperador do Japão na mesma semana.

O Siza vem sempre à baila nas entrevistas, claro. Tenho uma grande distância em relação à obra dele. Interessa-me sacar o percurso, os atalhos, a maneira como ataca os problemas, os instrumentos que escolhe, a tenacidade. Ele é que realmente é a leoa na savana. Os nossos resultados são diferentes. Temos 20 anos, duas gerações de diferença. Ele faz parte de uma geração de resistência. Eu já faço parte de uma geração e construção.

 

Pode explicar?

Os arquitectos [preferidos] da geração do Siza são os do pós-guerra. Os da minha geração são os arquitectos que me interessam para poder construir meio milhão de casas. Para reconstruir este país que estava na miséria. Por isso são arquitectos expeditos e pragmáticos, a tentar resolver os problemas do futuro.

Assisti a tudo o que o Siza fez. Às vezes dá-me a tentação de lhe roubar as fórmulas para os problemas. Ele tem um catálogo visual invejável! Janelas num segundo andar debaixo de um telhado [faz o gesto de procurar numa enciclopédia e encontrar]. Mas tenho muito pudor em ser parecido com ele. Sentir-me-ia ridículo a tentar competir com ele. Primeiro, entro em perda. Segundo, posso gostar dos resultados e não estar de acordo com os pressupostos. Terceiro, respeito-o muito. Como tal, temos vidas diferentes. E não temos nada a provar um ao outro.

 

Nem no seu caso, 20 anos mais novo?

Não, não. Eu nunca quis ser o Siza 2. No outro dia saiu um artigo sobre mim, “Domesticar as Vanguardas”. Isto é, gosto de usar as vanguardas e transformá-las em coisas ligadas ao quotidiano. Não me interessa alterar a História. Está a perceber? Eu quero usar o que a História me deu e fazer de uma maneira diferente.

 

Não parece nada ansioso ou inseguro. Foi sempre assim?

Ansioso, sou. Até chegar ao que eu quero. Sou muito egoísta. E sou ambicioso. Senão, não seria arquitecto. Se vierem prémios e tal, tudo bem. Não sou um homem dos 100 metros. Sou da maratona. (Tenho enfisema. Fumei demais.)

 

Quando é que percebeu que era um grande arquitecto?

Quando me deram o Pritzker [2011]. A sério. Eu estava ao telefone e não acreditava. Primeiro fui lá cima. “Ó Siza, ganhei o Pritzker.” Ao jantar, disse à minha mulher e às filhas. Na cerimónia, estive a falar com o Obama. Nunca pensei ver o Obama na minha vida! A Michelle é simpática. Tive como padrinhos o [Frank] Gehry e o [Richard] Rogers. É como ser escritor e ter como padrinhos o Hemingway e o Proust. De Espanha, telefonaram-me. A frase era: “Ganamos!” Não era: “Ganhaste!”.

 

Ganhou prémios importantes. No ano a seguir a se ter formado, ganhou um prémio pelo projecto da Casa das Artes - SEC no Porto. Formou-se em 80, ganhou em 81. Tinha 20 e tal anos.

Ganhei aos professores. Isso gostei. Fiz o projecto na tropa. Desenhava e a minha mulher (que era minha namorada) fazia as maquetes em corticite, com alfinetes. “Isto está horroroso!” “Não faço mais nada.”

Eu sabia que fazia coisas bem feitas. Tinha ganho prémios. Mas sou muito exigente. Sofro tanto, tanto, tanto... Vou às obras. “Isto não está bem.” Pago do meu bolso rectificações. Nunca está como eu quero.

 

A sua vida acelerou ainda mais, depois do Pritzker. Esta entrevista foi marcada com mais de um mês de antecedência. Pelo meio deu meia volta ao mundo.

Não! Estive em Washington. Em Bruxelas. Ganhei um concurso para um crematório. Tema lindíssimo. É uma máquina, mas não pode ser só queimar frangos. Tem de ter mais espiritualidade.

 

É professor. Deu aulas em algumas das universidades mais prestigiadas do mundo. Neste momento, dá aulas em Itália.

Dou aulas em Mântua. Tenho de dizer que gosto. E dá-me um certo conforto (não vou disfarçar).

 

Imaginamos que um arquitecto com o seu estatuto já não está preocupado com o dinheiro.

Não estou a dizer que sou pobre ou tenho dificuldades económicas. Lá fora pagam-me muito bem, é verdade. Se fosse só cá... Passei muitos períodos em que chegava ao fim do mês [sem dinheiro]. Agora, não.

É preciso refundar a disciplina. O que aprendi do ser arquitecto, acabou. Não dá para hoje. É um sacrifício adaptar-me. Gosto imenso de falar com gente nova. Faz calamidades, mas é muito fresca. A minha turma deste ano era constituída por 25 alunos de 15 nacionalidades. São mundos tão diferentes.

 

Como eram os seus desenhos de criança?

Andei numa escola italiana. Foi mau porque não aprendi inglês. Vejo-me aflito. Nessa escola, havia um apuro gráfico. Não se podia fazer um texto sem um desenho. A redacção “Ir a Lisboa”: era preciso fazer um desenho sobre a ida a Lisboa. Os números pares: era preciso desenhar dois patinhos. Na escola e no Siza, fui obrigada a desenhar.

 

Qual é o compartimento de que mais gosta em sua casa?

É o canto do sofá. É um canto de onde faço um círculo. Tenho uma mesa atrás, onde tenho livros, os óculos, as canetas. Um candeeiro para ler. Faço assim e tenho uns discos. À frente, a televisão. A minha mulher, ali. Tudo se passa num metro e meio. E quando vem o Siza, está a dois metros.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015