Elisa Ferreira
Jantámos no Pabe, em Lisboa. Ela estava a chegar de Bruxelas. Se não me falha a memória, tínhamo-nos encontrado uma vez apenas, no casamento de um amigo comum. E isso parecia dar à relação uma intimidade que ela não tinha, e não tem.
É uma mulher amável, que eu não conhecia. A Elisa Ferreira era a Elisa, amiga do meu amigo, que em tempos foi ministra e que agora está no Parlamento Europeu. Antes de me preparar para a entrevista, eu não sabia da sua ligação ao programa QREN – que é uma coisa importantíssima. Mas não falámos disso durante o jantar.
Meus caros, duas mulheres, se não tiverem uma agenda que as obrigue a tal, não falam do QREN ao jantar. Falam da educação das filhas (dela). Dos quilos que sempre estão a mais. Da logística das casas e das empregadas. Das viagens entre duas cidades e dois países. Affaires de femmes. Mas intuí, e bem, que a Vogue não era um tema predilecto. Porquê? Porque nasceu numa família onde a austeridade era um valor. Porque cresceu num tempo em que as mulheres, quando falhavam profissionalmente, eram menos iguais do que os homens… Agora imaginem essas mulheres de saia curta e sapatos Jimmy Shoo.
Ela vestia uma camisola confortável e insistiu em pagar o jantar. Gentil. Mais que tudo, foi bem educada quando me informou que no dia seguinte daria uma entrevista a um outro jornal e a uma rádio. (Nem toda a gente o faz, e não tinha que o fazer). É provável que dê muitas entrevistas. Desde há uma semana que é público que será a candidata do PS à Câmara do Porto.
Esta é a primeira que faz o retrato da mulher. Estava um pouco nervosa… Sabe-se lá o que sai de uma entrevista comigo – dizia.
Nasceu em 55, licenciou-se em Economia. Fez o mestrado e o doutoramento em Inglaterra. Foi ministra do Ambiente e do Planeamento. Notas curriculares. Quer fazer um auto-retrato?
Posso dar-lhe notas biográficas, mas tem de me ajudar a seleccionar o que lhe poderá interessar. Posso dizer onde nasci, quem são os meus pais, em que escola andei…
Se achar que isso tem peso e relevância na sua vida.
Tem. Sou uma filha única tardia. Esse facto marcou a minha vida. Sempre tive a noção de que tinha de ser resistente.
Resistente a quê?
Resistente à vida. Que podia ficar sozinha. Fui treinada para isso. A minha mãe tinha 39 anos e o meu pai 40 quando nasci.
Teve a noção de ter sido muito desejada e esperada?
Isso sim. Estavam casados há 14 anos e tinham um desgosto grande por não terem filhos. Fui muito querida. Prepararam-me para um mundo que não era fácil. Foi uma opção inteligente, agradeço isso aos meus pais.
Viviam essa pressão e passavam-na a si? Como é que lhe era incutida a ideia de que tinha de ser resistente, brava?
O quadro tradicional de educação das raparigas era para o casamento. Eu sempre me preocupei com a profissão, com assuntos que eram de homens, com gerar o meu próprio rendimento. O casamento seria qualquer coisa que surgiria ou não. Estar municiada de uma capacidade profissional foi uma tónica do meu processo educativo, muito mais do que saber bordar ou fazer malha.
E isso aprendeu?
Aprendi. A minha mãe era a mulher ideal nesse sentido, apesar de ter a sua vida profissional: era técnica de contas. O meu pai também começou por ser e acabou revisor oficial de contas. Havia uma combinação entre a responsabilidade, o decidir pela minha cabeça, e códigos educativos estritos, que não eram de grande liberdade.
Pensar pela própria cabeça exige segurança e auto-estima. Ou seja, para não aderir a pontos de vista de outros é preciso ter confiança naqueles que apresenta.
Não sei se foi desse processo educativo, ou se uma coisa resulta na outra, mas sinto que tenho muito disso. Naturalmente prefiro que digam bem de mim ou que achem que estou a fazer coisas certas (mais do que digam bem de mim); mas o grande referencial da minha vida é fazer coisas coerentes com o que acho que é certo. Aprecio que façam contributos, críticas, que dêem sugestões. Mas tenho dificuldade em não seguir aquilo que intimamente acho que devo fazer. Portanto, não faço muitas cedências.
Explique melhor qual foi o contributo e a marca do seu pai e da sua mãe no seu crescimento, para fazer de si quem é hoje.
Eram complementares. Do lado da minha mãe foi a sensibilidade, o gosto pela literatura, pela arte, o requinte na organização de uma casa, o cuidado com que se serve uma refeição. Do lado do meu pai, havia uma rigidez excessiva, na defesa de valores e convicções; e uma coisa que é nortenha: a nossa palavra. Muito cedo dizia: “Tens de ter uma profissão, não duramos sempre”. Era dito taxativamente – e havia nisso uma certa frieza.
Foi tratada como uma adulta.
Sempre. Nunca tive protecções excessivas nem nunca me macaquearam o mundo. Isso deu-me um realismo muito grande.
É como se não ousasse iludir-se para não perder de vista a realidade, o pragmatismo.
É verdade, ainda que reconheça a utilidade da utopia. O sonho, o desejo de qualquer coisa que nos ultrapassa é muito importante. O que não consigo é confundir isso com a realidade. Dificilmente tiro os pés do chão, ainda que seja capaz de sonhar e goste de sonhar.
Nunca tirou?
Há momentos em que toda a gente tira um pouco, há momentos de paixão – sobretudo na vida emocional. Sou bastante emotiva.
Sentiu na sua infância que o seu pai preferia que tivesse sido um rapaz?
Acho que deve ter tido algum desgosto… Os homens passavam para os homens o mandato que tinham. Uma rapariga? Talvez o meu pai tivesse um realismo semelhante ao meu: há que trabalhar com o que existe. Faleceram muito cedo, aos 70 anos, ambos.
Que criança era?
Era muito sociável. Ainda mantenho amigas da infância. Sei quem é a minha melhor amiga da escola primária, depois a dos 11 anos, depois a dos 13 anos. Os colégios eram femininos e as amizades eram dentro do mesmo género. As pessoas lembram-se de mim como alguém que tinha muita facilidade de contacto. Era boa aluna, não era convencida. Descrita assim, talvez pareça uma menina direitinha, mas ao mesmo tempo tinha os mecanismos da revolta. Na adolescência tive grandes conflitos com o meu pai. A propósito de tudo. Ele era uma personalidade dominante.
Como é que eles expressavam amor?
A relação com o meu pai era mais extremada. Com a minha mãe era um contínuo. O meu pai tinha um grande orgulho em mim, quase uma vaidade, que procurava esconder. O orgulho expressava-se do seguinte modo: depositava em mim uma enorme confiança e sabia do que eu era capaz. Essa confiança absoluta era para mim uma grande fonte de auto-estima.
Por exemplo.
O meu pai mandava-me às finanças pagar impostos e tratar assuntos burocráticos. Mediam bem o que eu era capaz de fazer e mandavam-me fazer recados complicados. Eu ficava toda vaidosa quando a seguir dava conta do recado! Aos 12 anos tinha que vir ter a Lisboa para embarcar para um campo de férias; o meu pai sofria de um problema de costas e não pôde trazer-me; disse-me: “Vais com a tua malinha”. Vim de comboio, fui ter ao Cais do Sodré e lá me desenrasquei! Lembro-me de estar parada na Avenida da Liberdade, com o livro d’Os Cinco, à espera que as horas passassem [risos], e de ter ido levar a mala a um hotel que conhecia em Lisboa.
Essa organização – “vou pôr a mala ali enquanto espero” – era sua ou do seu pai?
Vou andar com uma mala pesada atrás de mim, todo o tempo? Não vou! Estes senhores, se não roubam as coisas aos hóspedes, não vão roubar a minha mala! De maneira que fui pô-la num hotel – na altura também não havia bombas! Era muito prática.
Vivia isso como uma aventura romântica?
Nessa vinda a Lisboa, por tudo aquilo ser muito improvisado e inesperado, senti uma certa heroicidade. As páginas do livro d’Os Cinco não passavam assim tão rápido, eu não estava concentrada a ler. Estava um bocadinho assustada, os senhores do café podiam achar que eu estava ali há tempo demais, só com um Sumol e uma sandes de fiambre... Fiquei muito aliviada quando tudo bateu certo. Mas no meu quotidiano não tinha nenhuma noção de heroicidade, não.
Essa heroicidade, o romance, a aventura parecem alimentar um quotidiano controlado, sem momentos climáxicos. Se fosse um filme, não encontraríamos nele a angústia do protagonista, a bifurcação essencial e a escolha de um caminho…
Houve alguns momentos de conflito mais aberto, sobretudo com o meu pai. E houve momentos de risco, de quase ruptura da relação, na adolescência.
E depois, como é que isso se resolveu? Que é uma maneira de lhe perguntar como é que resolve conflitos.
Não resolvo conflitos como resolvi os conflitos com o meu pai. Porque aí era uma luta pela afirmação pessoal, pelo meu próprio espaço.
E também porque os afectos estavam imiscuídos?
É diferente, completamente diferente. Como é que eu resolvo conflitos? Acho que sou bastante conciliadora até um determinado momento. E sou capaz de grandes rupturas. Não quero uma conciliação a todo o custo.
Não teme a ruptura?
Não. Há um momento a partir do qual o compromisso é uma adulteração do sentido da negociação; a conciliação é impossível. Há diferenças que temos que assumir, e é preciso pagar esse preço.
Quando é que percebeu que ia estudar Economia e que queria ter esta vida?
Eu nunca achei que queria ter “esta” vida. As coisas foram surgindo, fui andando. Fui para Economia pela curiosidade de perceber como é que há empregos, como é que há riqueza, como é que há desemprego, como é que as empresas surgem. Tenho curiosidade em saber como tudo funciona.
O curso de Economia estava mais próximo do que os seus pais faziam do que outros cursos.
Talvez eu estivesse familiarizada com esse tipo de conversas, menos por causa do trabalho dos meus pais, e mais por influência do meu avô materno, um homem da indústria têxtil. Morreu quando eu era miúda, 13 ou 14 anos, mas lembro-me muito bem das conversas: “Investiu ou não investiu? Faliu ou não faliu? Há importações de algodão ou não há?”. Eram conversas da vida real, que se contrapunham ao lado feminino, sobre empregadas e limpezas domésticas.
E o mundo das paixões? Refiro-me ao que é do domínio do relacional. Nas conversas sobre as limpezas e as empregadas aprende-se muito sobre fidelidade e infidelidade, paixão e ciúme, possessividade e separação. Conversas de adultos.
Nesse tempo em que era criança e ouvia conversas de adultos, quase não havia divórcios, camuflavam-se tensões familiares. Estávamos no tempo de Salazar, Caetano. Não era só na política: a sociedade era muito monocolor. Eu tinha um bocadinho a ilusão, talvez para contrariar o meu pai, de casar, estabilizar, ter filhos, ter um emprego certo.
Que idade é que tinha no 25 de Abril? Como é que a revolução mudou a sua vida?
Tinha 18 anos. Misturou a nossa vida toda, foi um período de questionamento. Tive metade do curso com teoria marginalista, do mais clássico possível, e outra metade com teoria marxista. Comecei a ler e a investigar em todos os sentidos, para reencontrar o meu rumo, a minha leitura do mundo. Estava tudo em causa.
Queria pensar pela sua cabeça…
[risos] Queria conseguir pensar pela minha cabeça! De maneira que, ao contrário de muita gente, li os livros todos. Li O Capital mesmo! Li o Marx, li o Engels, à procura da verdade. Tinha um grande drama interior.
Foi um questionamento de tudo, e foi transversal? Ou circunscreveu-se à universidade?
Questionar os padrões já tinha começado antes, mas a revolução foi a explicitação dessas tensões. Aquilo que para mim foi mais importante no 25 de Abril foi a revelação do carácter das pessoas. Quem eram as pessoas corajosas, as pessoas fiéis a si próprias, os sobreviventes que um dia estavam de um lado e no outro dia estavam do outro, o que era a dignidade.
E sobre si mesma, o que descobriu na revolução?
Uma reinterpretação do mundo que me rodeava, uma mudança completa de referenciais. Estarmos bem connosco, estarmos abertos para nos questionarmos, e ao mesmo tempo sermos fiéis a nós próprios, é um ponto central. E descobri que a vida é muito mais arriscada do que por vezes se pensa. A nossa percepção de nós próprios ganha outra força e solidez. Aconteça o que acontecer, eu sou isto.
Foi um marco para a sua geração. “E agora, o que é que se faz com isto”?
É passar do diagnóstico à concretização de um sonho.
Foi aí que teve vontade, ou que percebeu, que podia ser política?
Eu nunca percebi que podia ser política. Sempre achei que tinha que fazer coisas pela minha sociedade. Se pudesse ser útil, interessava-me.
Era um apelo cívico e não político?
A política é uma das maneiras possíveis. Pode ser através da solidariedade social, pode ser através do empreendedorismo… A política aconteceu-me.
Empenhou-se politicamente na faculdade?
Envolvi-me em vários movimentos, em debates. Andava à procura do modelo certo para o curso de Economia, o modelo certo para a sociedade. Mas havia uma dificuldade em fazer a transição da utopia política para o concreto. Uma sociedade sem classes seria concretizável?, como? Considero-me de esquerda, mas nunca me filiei, nunca fui presa, não tenho esse tipo de militância. As pessoas transportavam nesse projecto uma grande dose de generosidade pessoal e misturavam isso com aquilo que todos os jovens querem: mudar o mundo. Eu tinha o maior respeito, mas não conseguia embarcar num processo em que não percebia como é que os objectivos se materializavam.
Pertence a uma geração profundamente utópica e sonhadora. Ainda que não prescinda do sonho, não consegue prescindir do vínculo à realidade.
Mas isso é muito feminino. Os homens são mais utópicos do que as mulheres. Talvez as mulheres sejam mais utópicas ao nível dos sentimentos.
São mais românticas.
Sim. Era importante haver mais mulheres na actividade política, porque trazem uma componente completamente diferente. Na gestão do tempo – têm mais coisas para fazer e controlam muito melhor o tempo. Na conciliação de interesses – percebem mais rapidamente quais são os interesses que estão em causa. Então, como é que se faz? Por onde vamos? Quem faz o quê? Para quê? E no fim, como é? Onde vivemos? O que comemos? São coisas que vêm do quotidiano, do mais essencial da vida. Este sentido está mais presente nas mulheres.
Essas são as suas perguntas cruciais? As que faz sempre? Para que é que isto serve? Como se faz? O que é que resulta disto?
Eu sou muito assim. Não queria cair num somatório de quotidianos, sem rumo, mas uma condicionante importante é o lado prático, a concretização. Sou muito relutante em fazer uma crítica se achar que não sou capaz de fazer melhor. De algum modo, foi isso que me levou para política: porque eu era muito crítica.
Conte como é que foi parar à política.
Eu escrevia nos jornais. Em 94/95, no último governo do Primeiro Ministro Cavaco Silva, era extraordinariamente crítica; a determinada altura, na sequência disso, o Eng. Guterres diz-me: “Então venha dizer como é que se faz! Venha fazer!”. Aquilo desafiou-me.
Porquê o Partido Socialista?
Não sou filiada. É a minha área ideológica, cruza um certo idealismo com um certo realismo.
Como começou a sua vida profissional?
Comecei a dar aulas na faculdade quando ainda era aluna. Optei por dar matemática e métodos quantitativos. Mas estar na faculdade, fechada, não era suficientemente interessante. Havia dois centros de investigação aplicada que eram pólos de saber e reflexão: a Comissão de Coordenação da Região Norte, liderada pelo Prof. Valente de Oliveira, e o Gabinete de Estudos do Banco Português do Atlântico, que estava nas mãos do Dr. [Miguel] Cadilhe. Acabei por trabalhar na CCRN. Foi uma escola para mim, uma grande escola de administração pública (que é uma coisa que faz falta em Portugal). Conciliei isso com as aulas. A determinada altura pediram-me para fazer uma análise…, eu nem quero dizer isto [risos], que diz muito sobre a minha idade..., uma análise sobre: “O que é que irá acontecer à região do Norte se um dia Portugal aderir à CEE”.
Mas nós já sabemos a sua idade: vem na Wikipedia que nasceu em 1955.
Eu sei, eu sei. Mas aqueles que dão a União Europeia como adquirida, os jovens que lerem isto, ficarão estarrecidos! Nunca me tinham ensinado assuntos de integração económica, eu era autodidacta. Fiz uma investigação pessoal, e daí resultou o meu primeiro livro sobre as questões da Comunidade Económica Europeia. A seguir fui para Inglaterra precisamente estudar assuntos do desenvolvimento regional e da integração europeia.
Voltemos à idade: quando vai para Inglaterra, quantos anos tinha?
Tinha 26 ou 25. Acabei o curso com 21. Fui em 1980, vim em 84, defendi a tese em 85. Fui fazer um mestrado. Eu estava sem orientador, havia meia dúzia de livros publicados sobre o assunto em Portugal. Fui para Redding, perto de Londres, a uns 60km, na zona sudeste de Inglaterra.
Inglaterra foi outra revolução no seu mundo?
Foi uma oportunidade fantástica! Há aquele primeiro contacto: “Estou aqui no meio do nada..., e se não consigo?”. Abriu-me horizontes. Aprendi sobretudo uma coisa: eu estava a estudar um artigo num dos livros recomendados, e não achei que aquilo estivesse bem. Mas, para mim, o livro tinha que estar certo! Formatei o meu pensamento de maneira a perceber o que estava no livro. Até que fui perguntar ao orientador. “What if the book is wrong?” [E se o livro estiver errado?]. “O livro está errado???!!”
Isso sim, foi uma revolução!
Uma ruptura! Eu estava habituada a ver várias teses, mas cada uma consistente; não tinha a ousadia de questionar de raiz. A seguir, a Universidade [do Porto] propôs que me patrocinassem o doutoramento; concorri à bolsa, consegui, fiz o doutoramento. Regressei e vim trabalhar para a Comissão de Coordenação da Região Norte, onde o doutoramento não tinha nenhum reflexo em termos de progressão na carreira. Mas voltei com muito mais capacidade de intervir e de perceber. Ficarei sempre grata aos dirigentes da Comissão, ao Prof. Valente de Oliveira e à Faculdade de Economia também: porque tiveram uma postura que não era vulgar na altura e permitiram-me esse salto.
Quando politicamente tem um percurso não é na área da Economia, mas na do Ambiente. A relação começa onde?
Na Comissão de Coordenação havia um projecto muito interessante, Science For Stability [Ciência Para a Estabilidade], em que se analisava o modo como um rio se auto-depurava a partir de várias fontes de poluição. O rio escolhido para o teste foi o rio Ave. Pediram-me para trabalhar essa questão em termos económicos, fiz um trabalho com os industriais, inquiria. Aprendi imenso sobre esgotos, tratamentos de água, etc. Mais tarde, fizeram-se duas experiências, uma na área de Setúbal, outra na área do Ave, e fui encarregada de ser responsável pela operação integrada de desenvolvimento do Vale do Ave.
Foi, então, convidada para Ministra pela sua valência técnica? Foi uma surpresa para si?
Foi, completamente, uma surpresa! Trabalhei dois anos na Associação Industrial Portuense, (que era como se chamava a Associação Empresarial de Portugal), como Vice-Presidente, e era muito crítica relativamente ao que estava a acontecer em Portugal – o nível como estava a ser preparada a taxa de equivalência, a taxa de câmbio do Escudo para o Euro, a pressão sobre a indústria… Escrevia no jornal, juntamente com uma série de colegas, uma coluna que se chamava “Da Outra Margem”. E participei nos Estados Gerais como independente, porque achei que estava chegado o momento da mudança. Fiquei muito surpreendida quando o Eng. Guterres me disse: “Quero contar consigo para Ministra do Ambiente”.
Porque é que aceitou?
Por brio. “Tenho que mostrar o que valho.” Aparentemente, ele conhecia-me, tinha-me notado, quando eu era responsável pela operação integrada do desenvolvimento do Ave.
Gostou de ser Ministra?
Gostei muito. Foi um trabalho fascinante. Não é uma coisa que se possa fazer durante muito tempo, porque é muito desgastante, mas a democracia garante que isso não aconteça, felizmente!
O que é que mais desgastante? Tem que ver com a pressão a que se está sujeito? Eu lembro-me, toda a gente se lembra, daquelas imagens…
Da co-incineração?
Parecia simultaneamente uma mulher de um enorme estoicismo e emocional. Como tem uns olhos muito expressivos e grandes...
Só se via olhos!
Era como se tudo afluísse aos olhos.
Custou-me muito sentir que as pessoas estavam, na minha opinião, a ser utilizadas, e mal utilizadas. Aquilo era um não-assunto. Eu estava convencida de que estava certa, e ainda estou convencida de que estava certa – aliás, as coisas estão a ser feitas, aquilo não tinha perigos para a saúde pública. Revolta-me a injustiça, a demagogia.
Essa emoção que se lhe percebia derivava mais da raiva?
Sim, e de as pessoas não estarem disponíveis para analisar, para ouvir, para discutir. Os meios de comunicação social empolavam e impediam, de algum modo, o diálogo. Foi um assunto em que todos gastámos mais energias do que era adequado e necessário. Nunca senti nenhum medo físico, nada, nada. As pessoas estavam a manifestar-se e uma senhora de idade segurou-me na gola do casaco; foi nessa imagem que ficaram convencidos que me iam bater. Mas não. A senhora estava a olhar-me nos olhos e a dizer: “A minha filha está grávida e eu tenho a certeza que o meu neto já vai nascer doente...”. Se ainda não havia co-incineração… Mas a senhora estava convencida disto. Percebo que as pessoas desconfiem, o que acho grave é que, por outros motivos, nomeadamente partidários ou de protagonismo, se estimule o receio e a desconfiança. Uma sociedade não pode funcionar assim. Tirando esse desconforto e o cansaço físico, nunca deixei de dormir por causa disto.
Depois disso, foi Ministra do Planeamento. Para quem caiu na política de pára-quedas acabou por integrar-se muito bem. Vê-se como uma política?
Não, vejo-me como um cidadão activo. Como uma pessoa que percebe que o país precisa que trabalhem para ele. Gosto muito do serviço público.
A juntar à experiência ministerial, há os dois anos em que foi deputada e a experiência do Parlamento Europeu. Tudo somado, compreende um bloco significativo da sua vida.
Claro que sim, não recuso isso. Um colega sueco dizia-me recentemente: “Há uma carreira política. Primeiro é-se Presidente da Câmara, depois é-se Secretário de Estado, depois é-se Ministro”.
No seu caso é ao contrário: começou por ser Ministra!
Pois, Ministra já fui!
E agora, é candidata à Câmara do Porto.
Voltar ao Porto, e intervir no Porto, é uma coisa que claramente me seduz.
Porquê esta opção? Gostaria de ser Presidente da Câmara do Porto para fazer o quê?
Para fazer. Para relançar. Penso ter condições pessoais, políticas e institucionais para mudar a minha cidade, para tornar a pô-la a cidade afirmada e orgulhosa que o Porto é. Isto também é uma coisa que herdei do meu pai: ele era um portuense faccioso! [risos] Eu procuro não ser facciosa! Este amor pela cidade foi uma coisa que o meu pai me incutiu. O orgulho do espírito liberal do Porto… Eu era miúda e era pelo D. Pedro e contra o D. Miguel – o D. Pedro era da cidade. Se puder ser útil à minha cidade depois desta trajectória toda, é algo que me mexe cá dentro.
O pessoal sempre se imiscui… Esta opção, de modo longínquo, tem que ver com o seu pai. Pelo menos, fá-la falar dele novamente. Ele não assistiu à sua trajectória pública…
Nada.
Sentiria especialmente orgulho?
Acho que sim, mas isto nunca lhe teria passado pela cabeça.
O que é que a fez avançar com a candidatura?
São sobretudo condições que me permitem propor um contrato sério com os portuenses. Condições de convergência em cima de um programa credível, concreto, de relançamento da cidade. Ter apoios institucionais e políticos que me permitam concretizar esse programa. Encontrar, a partir da confiança que o partido depositou em mim, os protagonistas competentes, dentro e fora do Partido Socialista, que possam garantir a sua boa execução. O apoio de um partido que tem sido completamente aberto e interessado. Depois de inúmeros encontros que mantive, estou convencida de que a cidade quer mudar e não está conformada.
Ainda não falámos do facto de ser uma mulher que ocupa desde sempre uma área tradicionalmente masculina. Primeiro na Economia, depois na Política.
Habituei-me a essa situação e não estranho. Agora há muito mais mulheres em todas estas áreas, e é muito bom, muito gratificante.
Na faculdade, olhavam para si com estranheza?
Fui a primeira mulher doutorada da Faculdade de Economia do Porto, e lembro-me de me dizerem com um ar consternado: “Mas que pena, que não há modelo de vestes académicas para mulher, como é que vai ser?” [risos] Ficou um bocadinho mais caro, mas comprei vestes inglesas, que eram unissexo! E cheguei a arguir teses de doutoramento com uma capa de estudante, porque nunca tive capa!, (pedi emprestada).
Antes de ligarmos o gravador, durante o jantar, falámos informalmente de roupa. O que se veste, a maneira como se está – quando se está entre homens – é uma coisa que a preocupa, em relação à qual tem um especial cuidado?
Francamente não. Foi muito importante não ter falhas profissionais, porque somos todos iguais, mas quando uma mulher falha profissionalmente, deixamos de ser tão iguais... É muito fácil dizer “Ah, a senhora...” ou “Aquela menina...”. Há logo um tom depreciativo. A Simone de Beauvoir dizia: “Só haverá igualdade quando houver tantas mulheres incompetentes em lugares de responsabilidade como há homens”. Já não é assim, mas quando se é uma entre homens, até adquirir credibilidade, até ter o nome consolidado, há mais atenção sobre nós. Nunca interpretei isso pelo lado do físico. Dentro da educação que tive a austeridade era o código.
Quanto mais discreta, melhor.
Era o combate ao exibicionismo, ao consumismo, ao desperdício, que eram coisas muito mal vistas lá em casa.
Baton vermelho, nunca pôs?
Eu não ponho! Não me fica bem. Se tenho os olhos como tenho, se ponho a boca vermelha, fica um bocadinho demais! [risos]
Esses olhos, herdou-os de quem?
Não sei. Os meus pais tinham os olhos castanhinhos. O meu avô materno tinha uns olhos azuis, porcelana, um ar meio holandês…, talvez tenha herdado dele. Às vezes, em miúda, pensava que tinha sido adoptada, porque não sou parecida com ninguém!
Hoje parecem mais pequenos do que na televisão ou nas caricaturas.
Estou sem maquilhagem. As minhas primas diziam-me sempre que eu devia vestir melhor, pintar-me mais, arranjar-me mais.
A sua forma de afirmação nunca foi por aí?
Não. Nunca foi um ponto forte. Não me interessava, nunca pensei muito em mim dessa maneira. O meu marido, o Zé, ajudou-me bastante a puxar pelo meu lado mais feminino. “Veste isto...põe aquilo...porque é que não pões?”.
Nas conversas que tem com as suas filhas, estes temas entram?
Entram necessariamente, elas puxam-nos. E eu gosto de ouvir as opiniões delas! “Isso fica mal... Voltaste a usar uma coisa... Tens de te desfazer dessa roupa... ”. A minha filha [que tem 26 anos] é sensível a isso. A mais pequenina tem 14.
Elas têm muito orgulho em si?
Não sei, tem de lhes perguntar. Acho que, no fundo, têm.
Por outro lado, a figura pública rouba espaço à mãe… Incomoda-as?
Talvez seja um misto. Acho que têm orgulho e são muito solidárias comigo. Embora não se queiram meter em nada daquilo que tem a ver comigo, “Economia não, Política não.” Têm essa rejeição, sentem que é um mundo que absorve muito. São muito boas pessoas, e isso é o que é importante na vida: têm princípios. Eu é que tenho muito orgulho nelas!
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009