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Anabela Mota Ribeiro

Emmanuel Nunes

17.02.15

«Dizem ser o herdeiro de Boulez e Stockhausen. Também poderia ser incluído numa família mais ampla, que compreendesse Mahler, Bach, Varèse. Mas todos estes parentescos não esclarecem a personalidade de Emmanuel Nunes, a singular miscelânea da sua música, entre o sensual e o espiritual, a acuidade de um pensamento analítico sempre aberto ao sentimento trágico».

É assim que começa um artigo do Le Monde, datado de 92, no qual se fala de um compositor em busca da intemporalidade.

Num outro tempo, numa outra dimensão, (que é uma palavra que ele emprega frequentemente), o compositor vivia ainda em Portugal.

Nasceu no dia 31 de Agosto de 1941. Uma doença neuro-motora entrava-lhe os movimentos, dificulta-lhe a dicção. A doença. Poderia tê-lo marcado. E marcou, de certo modo. Mas esquecemo-nos dela ao cabo de instantes.

Contam que tinha cinco anos e insistia com a criada para que lhe desse tachos e panelas com os quais se entretinha. Que comprou o primeiro disco, com peças de compositores célebres, com 13 anos. Que tinha 15 quando entrou pela primeira vez no S. Carlos. (Não havia na família qualquer tradição musical).

Em 64 parte de Portugal. Quer estudar música, viver para a música. Ou melhor: não pode ser de outra maneira. Divide-se entre França e Alemanha, estuda com Pierre Boulez e Stockhausen. As encomendas tornaram-se regulares a partir dos anos 70; a consagração viria no final da década.

O reencontro com Portugal irrompeu inadvertidamente pelos anos. Como da vez em que tomou um taxi numa rua de Paris e ouviu o taxista dizer-lhe como ele, Emamanuel, lhe lembrava um menino que conhecera em tempos em Lisboa. Um menino que se fazia acompanhar de uma máquina de escrever para mais facilmente se exprimir nas provas escolares. Um menino que ele, taxista, conduzia ao destino. (A história abre a biografia do compositor, escrita por Hélène Borel, a sua companheira, e por Alain Bioteau e Éric Daubresse).

O nosso encontro aconteceu em dois dias, (um tempo contíguo). Numa segunda e numa terça, numa sala de espera da Gulbenkian. A chuva era a única ameaça, a chuva. Mas havia também reuniões. E entre elas, a sua disponibilidade imensa. O meu prazer imenso.

Emmanuel Nunes nasceu em Lisboa há 61 anos. Vive em Paris. É o mais aplaudido dos compositores portugueses, um dos nomes mais importantes da música europeia contemporânea. É professor no Conservatório de Paris, pesquisador do IRCAM.  Há dois anos foi distinguido com o Prémio Pessoa. No ano anterior, com o Prémio de Composição da Unesco. Em Fevereiro deste ano, o CCB recebeu as suas obras mais emblemáticas, numa comemoração dos seus 60 anos.

Parece-me que o seu verbo é escutar, e o seu prazer, escutar a música do mundo.

Ouve música numa atitude contemplativa. É fácil imaginá-lo a assistir à cadência das notas, ao desenho que fazem no ar.

 

 

No início da década de 60, quando foi estudar para a Alemanha, interessou-se pela fonética e pela filosofia. Porquê esta combinação?

Não é uma combinação. É mais um paralelismo. O interesse pela fonética tinha a ver, e tem ainda, com o aspecto sonoro, com a melodia escondida na linguagem. A entoação de uma língua tem um significado próprio que vai além do que está no dicionário. Em cada língua, a maneira como diz uma palavra, muda o aspecto semântico latente. Como utilizo várias línguas regularmente, (falo seis), esta é para mim uma questão importante.

 

Imagino que duas das línguas que fale melhor sejam o alemão e o francês, por ter vivido muitos anos num país e noutro.

E português.

 

Evidentemente. A sonoridade do alemão e a do francês são quase antagónicas. A crispação que parece existir na acentuação do alemão...

Que não existe.

 

Não existe na sonoridade da língua ou no povo alemão?

Estamos a falar da língua. Não estamos a falar de um povo. Convém não amalgamar os dois aspectos.

 

Mas não acha que há uma relação entre a língua e o povo que a fala?

Não na dimensão que estava a dizer. Pode haver um francês muito mais crispado que um alemão e um alemão muito menos crispado que um francês. A verdade é que tenho uma relação profunda com a língua alemã; tanto mais que com a minha filha falo alemão.

 

A sério?

A sério e a brincar! [riso]

 

A força da língua materna...

A mãe não é portuguesa.

 

Está bem. Designemos por língua materna a primeira aproximação linguística ao exterior.

Às seis da tarde, quando estava com a minha filha, às seis da tarde falava em alemão como falo em português consigo. Mas falávamos da acentuação e da semântica subjacentes a qualquer língua. Em qualquer língua, pode dizer uma palavra extremamente polida e insultar a pessoa só com a acentuação – e a palavra é a mesma.

 

Ainda em Portugal, na faculdade de Letras, chegou a estudar filosofia.

Um pouco, um pouco. Mas não foi por aí que nasceu o meu interesse pela filosofia. Nasceu mais por mim próprio.

 

O interesse em paralelo pela filosofia e pela fonética chamou-me a atenção porque uma implica uma distanciação em relação ao mundo e a outra pode ser a tradução da música do mundo.

De uma maneira mais modesta, digamos que é. Você formulou o problema de uma maneira demasiada construída em relação ao que ele é em mim.

 

Mas estas são algumas das suas premissas: a filosofia, a fonética, a música.

E a literatura e a pintura.

 

Sócrates teve um sonho nos dias que antecederam a sua morte. No sonho era-lhe dito que devia compor música. Praticar a arte das musas. Há uma raíz etimológica comum a música e musas [mousike]. Como se tudo partisse do mesmo ponto.

Há uma palavra que serviu de nome a uma obra minha, há poucos anos, que é «Musivus». Tem a ver com o que acabou de dizer: algo feito em musaico.

 

Musaico?

Tem a ver com as musas, e com museu, e com a música, por interposição.

 

Penso que escutar é o seu verbo fundamental. Refiro-me à capacidade de ouvir a música do mundo, sentir a harmonia do mundo.

Não há comparação com o Sócrates.

 

Mutatis, mutandis, trata-se do mesmo, não? Ouvir a música do mundo para melhor se entregar à arte das musas.

A comparação é demasiado perigosa. A não ser que eu não conhecesse Sócrates, aí era mais fácil. O que teve importância na minha maneira de pensar, (pensar a música, pensar a filosofia, o que for), teve sempre a ver com uma coincidência entre o que se lê e o que se sente. Uma espécie de empatia interior. Não é que tal filósofo seja mais importante que outro; mas há algo que faz que tal filósofo seja para mim mais próximo que outro. Quando comecei a estudar em Paris, um filósofo foi fundamemental: Husserl. (Por razões ocasionais, vou fazer em Novembro e Dezembro no IRCAM [Instituto de Pesquisa Musical associado ao Centre Pompidou] duas pequenas conferências sobre Husserl).

 

E porquê? Husserl tem a ver com a consciência íntima do tempo.

Em todos os trabalhos que fez sobre a consciência íntima do tempo, a realidade que tomou como exemplo foi o som. Som de uma melodia, som do tic-tac de um relógio. Para ele, a percepção de um som servia de paradigma da consciência íntima do tempo.

 

Ouvir o que seja, requer tempo. Se não tivéssemos tempo, tempo que se estende, não poderíamos ouvir. Sei que aprecia Kandinski. Os quadros de Kandinski, para serem assimilados na sua plenitude, requerem tempo.

Mas isso, qualquer quadro. Na obra do Kandinski essa dimensão está sempre presente. Há dois escritos meus, que não estão publicados; um é sobre os escritos do Kandinski, e não sobre os quadros; e o outro é sobre aspectos da consciência íntima do tempo em Husserl.

 

O que lhe interessa não é o tempo cronológico, de que precisamos absolutamente e ao qual estamos presos, mas o tempo psicológico. Ou seja, o tempo como ele é vivido intimamente. E não têm de coincidir, claro.

É o que Husserl chama Tempo Subjectivo. Embora, para ele, Subjectivo não tenha a mesma acepção que normalmente tem na psicologia. Tem a ver com a formação e a reconstituição da continuidade temporal. O escoar do tempo..., pode dizer-se escoar, não pode?

 

Sim. É até muito visual, faz pensar numa ampulheta.

O escoar. É isso que me faz caminhar para a morte. É irredutível. O escoamento e a memória.

 

Memória como nosso suporte, como sustentação.

Memória não só como “memória tradicional”. Se estou a falar consigo e digo uma palavra de três sílabas, se você não tiver a memória da primeira e da segunda, não percebe a palavra. Porque só ouve na altura em que está a ouvir. Portanto, não cria contacto. Se eu disse Memória e ouvir Me, esqueceu, Mó, esqueceu, Ri, esqueceu, não sabe o que eu disse. Há aí uma concentração, uma integração imediata da memória.

 

A primeira associação que faço a partir de memória, é identidade.

No sentido de reconhecimento, sim.

 

Num texto do Le Monde escrevia-se sobre si o seguinte: «Um compositor em busca da intemporalidade».

É outro problema.

 

Revê-se nisto, nesta busca?

Oiça, nós agora não estamos a falar de música. Mais uma vez convém não transpôr um domínio para outro. É importante a autonomia dos domínios.

 

E a precisão com que são demarcados.

Uma coisa é o contacto. Aquilo que chamo de colonialismo cultural, em que cada disciplina coloniza a outra, dá como resultado o seguinte: aquela que é colonizada, só foi saqueada, e a que colonizou no fundo não ganhou nada com isso. Não ganhou ela própria, ganhou a nível oficial, para o exterior. Mas não é incomunicação. É um problema quase deontológico e ético, é não deitar poeira aos olhos de quem se chama público.

 

As coisas estiveram sempre tão esclarecidas na sua cabeça?

A esse nível, sim. Outros, não.

 

Podemos voltar atrás? No fim da adolescência ainda pensou em estudar farmácia, depois medicina, depois entrou em letras, e só depois decidiu estudar música a sério.

Acabei o liceu, a minha família disse-me, «Vais para farmácia»; não tinha autonomia e fui. Não consegui entrar no primeiro ano, no segundo também não. Penso que se tornou uma recusa inconsciente. Teria feito farmácia, ou não, não é isso. Simplesmente, nessa altura já aprendia música, digamos que foi nessa altura que a música ganhou peso. Depois entrei para a Faculdade de Letras. Mas a música já estava assente.

 

O que representou a música nesses três anos em que não conseguiu entrar para a faculdade?

Deveria haver em mim um interesse latente por certo tipo de conhecimento e sensibilidade que se canalizou completamente para a música. A seguir houve um pequeno parentesis com a actividade política e académica. A partir do fim de 62, a música passou a ser o vector principal da minha existência.

 

Quando procurou Lopes Graça, para ter aulas com ele, tinha 18 anos...

O Lopes Graça perguntou-me: «O que é que sabe?», «Não sei nada». Ah!, fez ele, «Então, o melhor é ir para a academia estudar com Francine Benoit». Durante quatro anos e meio estudei harmonia, contraponto, fuga com Francine Benoit. E a seguir, em 62 e 63, é que fui aluno particular do Graça. Depois, fui-me embora.

 

Ainda que tenha dito ao Lopes Graça que não sabia nada, sabia com precisão o que queria aprender. Sabia identificar o que lhe interessava.

Isso sim.

 

Numa entrevista foi-lhe perguntado o que podia ensinar aos seus alunos. Respondeu que cada um só pode aprender aquilo que já sabe, mesmo que disso não tenha consciência.

É preciso relativizar essa frase... Se calhar, já não a dizia sem a explicar. Essa frase, com a qual estou inteiramente de acordo até ao fim dos meus dias, inteiramente de acordo!...

 

O que é que significa?

Uma pessoa pode ser extremamente culta, extremamente lida, conhecer bem milhares de livros, autenticamente tê-los lido, etc; mas isso não implica uma identificação profunda com os livros, com a matéria. É o que chamo de reconhecimento. Se não consegue encontrar em si mesma o conteúdo do livro que está a ler, é muito menos frutífero que no caso de saber automaticamente o que está lá. Isso passa-se em todos os domínios. Tanto em matemática, como em música, como em literatura.

 

Até no amor, que vive da identificação e do reconhecimento.

Esse é outro domínio... Se vamos por aí, já não é amor, é tudo o resto que vem com isso. Pode chamar-lhe amor. Esse reconhecimento, tanto pode ser positivo como negativo. Quando lê num jornal que um criminoso fez um acto horrível, diz: «Ah, o homem é horrível». Ou lê e diz: «Como é que isto aconteceu?». Torna minimamente a fazer o percurso que o levou a fazer aquilo... Não é perdoá-lo. É saber de uma maneira mais profunda que num homem tal coisa se lhe impõe.  

 

Seguir o caminho interior?

É. Não é dizer, «Sou muito melhor». Isso não me serve de nada. Eu não faço, mas aquilo, na humanidade, existe. E voltamos ao problema: se o homem não conhece essa dimensão em potência, não a tinha feito. É um aspecto profundo da natureza humana. É em relação a isso que digo que não pode aprender o que não sabe. Não pode aprender o que não reconhece instintivamente.

 

A sua música é a sua leitura harmónica do mundo?

Mas isso não é só comigo, ou é?

 

A minha é a das palavras.

Aquilo com que a pessoa vive, é com isso que se faz. Automaticamente está tudo lá. Integro, como toda a gente, tudo o que vivo. O problema é como essa integração se transforma em algum fenómeno. Não é em nenhum momento querida _ no sentido de querer. É querida mas não é querida.

 

Quer dizer que não pode ser de outra maneira?

Não, não pode.

 

Passa a ser uma extensão de si, uma manifestação de si.

Ou uma materialização do que sou e do que penso e do que sinto. É nessa medida que vem a ideia de organismo. Se tiver um filho, você é que o criou dentro de si. Ele não é uma expressão do que você pensa. Pode morrer logo, pode viver cem anos, pode ser um génio, pode ser um bandido. Uma vez que nasceu...

 

Tem existência autónoma.

Para mim, uma peça é isso.

 

Mas a peça não é anterior a este processo? Depois de escrita, depois do nascimento, fica entregue a outros.

Acho que não. Por exemplo, a peça que vai ser tocada amanhã à noite, seja boa ou má, a partir do dia em que a acabei, ela vive ou morre, tem uma existência que lhe pertence a ela. Tem a marca da origem, como um filho também tem. Uma obra é um organismo a que dou vida. Depois é com ele.

 

Se fizer um paralelo com os bebés, o tempo de maturação e escrita da peça corresponde a um tempo intra-uterino?

Aí é.

 

A partir do momento em que está acabada, dá-se o parto, e passa a ser de outros: é executada por outros, é ouvida por outros.

É ela própria. Já não posso remediar, não posso emendar.

 

Quer dizer que há um ciclo de vida definido?

Sim.

 

Por isso é que são organismos?

Como uma flor é um organismo. Uma pedra, tem uma existência totalmente diferente de uma flor. Tem uma constituição definida, é aquela pedra.

 

Nos organismos que cria, nasce e morre várias vezes? Costuma pensar na morte?

E você?

 

Não muito. Mas às vezes sim.

Mal ou bem?

 

Se chegasse agora, teria a sensação de a coisa estar ainda inacabada.

Há um parâmetro, a idade.Diria que não penso mais do que pensava há vinte anos. Simplesmente, penso de maneira mais consciente, se se pode dizer isso. Há uma presença dela.

 

Como uma nuvem a pairar?

Não, não, não. Como a outra face da vida. Mas não é uma nuvem, ah não. Há uma iminência permanente. Tanto há aos sete anos, como há aos vinte, como há agora. Essa iminência pode ser recorrente.

 

Em situações de maior vulnerabilidade, de crise?

Não só. Liga-se também à idade.

 

Quando fiz a pergunta não estava a pensar na sua idade.

Mas estava eu!

 

O caminho faz-se fazendo.

É verdade.

 

O que fazemos, as peças, são coisas que nos agarram e justificam o fazer do caminho.

Nunca posso citar textualmente nada, mas há um lied de Schubert que diz que «Há o caminho e que... ganhou morte???. Não tem regresso». É inevitável.

 

Porque é que comia tantos chocolates e escrevia nos papéis que os embrulhavam?

Não escrevia, fazia desenhos. Porque gosto de chocolate e porque tinha de me alimentar. Como não ia fazer refeições durante o dia, comia chocolates e continuava. Tomava o pequeno-almoço e depois jantava. Hoje em dia como muito menos. Era mais novo...

 

O esquema do pequeno-almoço e do jantar com chocolates pelo meio, era para não interromper o ritmo de trabalho?

Era porque não queria sair de casa.

 

Os desenhos que fazia no papel das tabletes eram porquê? E porquê no papel das tabletes?

O chocolate na altura tinha um cartão rijo. Cada tablete tinha um cartão cinzento, com uma forma rectangular. E sem saber porquê, fazia sobretudo desenhos geométricos, 98% de geométricos, sobre esse cartão. A razão metafísica do chocolate! [riso]

 

Claro que quando lhe perguntei pelos chocolates, estava a pensar no «Tabacaria» do Pessoa. [«Come chocolates, pequena / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates»]. Como se os chocolates fossem a inocência.

Não acredito.

 

De que é que se lembra do tempo em que era inocente?

O que é ser inocente?

 

É não ter medo. É um tempo anterior ao medo.

Oh, oh, então já não me lembro. Posso ter momentos em que não tenho medo. Agora, não ter medo? Isso, desconheço.

 

Não se lembra de si sem medo?

Não. Só por momentos. Isso, é demasiado luxo para a minha vida. Esse tempo anterior ao medo que eu conheço, que eu reconheço, para voltar à nossa conversa de há bocado, não lhe chamaria forçosamente inocência. Pode haver uma ausência total de medo e não ser de modo nenhum inocência.

 

Então é o quê?

Não sei. Não tenho resposta.

 

Falar de tempo, faz-me pensar em cápsulas de tempo. Cápsulas com paredes definidas, fechadas sobre si. O tempo em que está com a música dissocia-o de tudo o resto? É um tempo de retorno a essa inocência?

É. Eu não perfilho a ideia de que há cápsulas de tempo. Não as sinto. Não quer dizer que não haja.

 

Os seus sonhos são povoados por imagens, fragmentos de conversas, música?

Depende das épocas.

 

Nunca fez psicanálise?

Não. Tive vários contactos. Pensei fazer duas vezes. Uma com 22 anos e outra com 34. A primeira corresponde ao ano de 63, um ano e meio antes de ir para Paris. E segunda corresponde à composição de «Ruf».

 

Que é apontada como a peça da sua consagração internacional, em 77.

Não tem a ver directamente. Foram fases particularmente depressivas, em que eu próprio agarrei em mim, agarrei-me, e fui lá. Não houve qualquer estado exterior que me tivesse conduzido a isso. Aqui em Portugal, vi a pessoa duas vezes; simplesmente, a seguir suicidou-se. Não tem nada a ver comigo! Mas pareceu-me ser a pessoa certa. Depois em Paris, em 75, vi a pessoa, cinco, seis vezes. Também era extremamente competente.

 

Quando se faz psicanálise, ou quando se tem essa intenção, pretende-se viver de forma mais apaziguada.

Depende das pessoas. Em contrapartida, numa fase boa da minha vida, em que estudei em Colónia, li toda uma série de obras de Freud - que não tem nada a ver, julgo, com a psicanálise que se faz hoje.

 

Numa determinada fase da sua vida lia bastante Proust, Kafka, Freud. Mas eu dizia que as pessoas que fazem psicanálise, fazem-no para viverem melhor consigo. A música tem sobre si esta capacidade? Salvou-se pela música?

Não é possível fazer uma resposta em retrospectiva, sem dizer sim e mentir, ou dizer não e mentir à mesma. Não sei. Vivi.

 

Lembra-se de quando era menino e brincava?

Perfeitamente. Brincava como qualquer criança. Salvo que, devido a certo tipo de dificuldades motoras, a minha relação com o brinquedo físico, cubos, automóveis, etc, tudo isso mudava, sem eu saber... Tinha consciência de que a adaptação entre o gesto e a intenção era condicionada por este tipo de impossibilidades.

 

Isso obrigava-o a brincar mais consigo, limitava as brincadeiras com os outros meninos?

De maneira nenhuma. Tive uma pequena fase de quatro anos, (deve ter lido), em que estive numa escola especial. Voltei a uma escola normal com 12 anos. Quando penso nisso, é especial que nunca tenha sentido qualquer segregação ou problema de contacto. Hoje em dia é moda dizer que um tem um problema, que não se adapta, que tem de ir ao psicólogo escolar. Esse tipo de problemática, nunca a conheci. Nunca tive um colega que não falasse comigo normalmente, o que é espantoso. 

 

Posso então perguntar-lhe como viveu o período de aprendizagem com Stockhausen, em que basicamente se limitava a ouvir? Por uma questão de preconceito, ele recusava uma relação normal consigo.

Não era preconceito, era puramente ideológico. Prefiro não ir além disto. Mas é ideológico. Sabe porquê, ou não?

 

Tem a ver com a pureza da raça ariana e com o nazismo?

Tem a ver com isso.

 

Mas surpreende-me que, apesar disso, consiga ouvir uma peça de Stockhausen e retirar disso prazer.

Ah, porque é música.

 

Dissocia em absoluto o que é o homem, o que foi o seu contacto com ele, e o que é a música desse homem. Como consegue fazer essa operação, foi o que me perguntei.

Em mim, há a autonomia da obra musical. Seja de quem for. Se é boa, é boa, se é má, é má. Não estou a ligar ao homem, estou a ligar-lhe enquanto músico. Strauss, Richard Strauss, é possível, e é verdade, que o homem ideologicamente não fosse um anjo... Aliás, ninguém é anjo. Mas não me vou privar das óperas do Strauss devido a esse tipo de problema. Pode haver uma pessoa perfeitamente digna de admiração e um péssimo compositor.

 

Podemos fazer um paralelismo na literatura com Céline, acusado de ser colaboracionista?

É. O Karajan, quando era novo, sonhava que lhe dessem o cartão do partido nazi. E não era sequer para fazer carreira, era por convicção – é pior ainda.

 

Voltando ao homem e ao autor, de que é que se orgulha mais em si? O que ficará de si?

O homem não tem interesse, quando morrer acabou.

 

Persiste na memória das pessoas que consigo privam.

É possível. Mas não tenho nada a ver com isso, não me compete a mim.

 

O que é em si mais digno de admiração?

Desconheço completamente.

 

Então, pergunto de outro modo: o que é para si mais admirável no homem?

Num homem qualquer? Ah, isso é um problema muito complicado.Se é um grande artista, vai ser a obra e não o homem. Na humanidade há homens de uma qualidade extrema que ninguém conhece. Tanto pode ser um camponês do Alentejo, como um empregado de um banco, ou um actor de teatro.

 

Insisto, quais são essas qualidades? A bondade, a generosidade, a honestidade? Normalmente apontam-se estas.

A bondade é mais difícil de definir. A honestidade é em certa medida a menos difícil; não é mais fácil, mas é talvez menos difícil de delimitar, de agarrar na mão. Se me falar de política, aí tenho um problema gravíssimo: é que é cada vez mais paradoxal juntar as duas palavras, tanto na Esquerda como na Direita.

 

É uma tristeza que assim seja.

Mas é assim.

 

Não tenho o seu contorno enquanto homem.

Não acha normal?

 

Sim, mas esperava ter uma cintilação, uma ressonância.

E porque é que acha que não tem?

 

Porque se resguarda, porque não quer que a apanhe.

Não. Tanto quanto pode saber, a razão não é essa. Ou tem uma ideia errada, (que eu dou ou não dou, mas não é de propósito), ou não tem.

 

É naturalmente difícil para si?

É. Há pessoas, mesmo próximas, que tudo o que recebem de bom de mim, ou que gostam, ou que acham bem, dá ideia que é automático. Tudo o que não gostam de receber de mim, ou porque é mau, ou porque é duro, ou porque é crítico, dá ideia que toma uma dimensão enorme.

 

Porquê?

Não tenho resposta. Há uma mudança de escala. E nessa medida, é normal que desiluda muita gente.

 

Falaram-me de si como um homem de extremo rigor.

Quem?

 

Por exemplo, o António Jorge Pacheco, [Casa da Música]. É assim que se vê?

Esse rigor, em certas alturas, pode desaparecer. Não em situações de trabalho, mas humanamente. Se desaparece, é sempre tomado como algo normal. E quando o rigor reaparece, é tomado como profundamente autoritário ou severo ou justiceiro.

 

Em relação a que coisas é complacente?

Não são coisas, são situações.

 

Aquela pessoa, aquela situação, aquele tempo, e tudo isso conjugado?

É, é profundamente contextual. E isso torna a questão desorientadora para o outro.

 

A intransigência e rigor acontecem porque se encouraçou pela vida fora, face a tudo o que teve de enfrentar e superar?

Acho que não. É em mim uma questão mais natural.

 

Sempre foi assim?

Acho que sim.

 

Disse-me que se lembrava bem dos tempos da infância. Diga-me uma coisa de que se lembre bem e de que goste de se lembrar.

Numa primeira fase, com quatro, cinco, seis, sete anos, passava férias perto de Sintra, numa propriedade que não era nossa. Sei que passava horas a andar de triciclo. A propriedade tinha imensos caminhos possíveis e podia passar uma hora, duas, mais, a percorrer, para trás e para a frente. Eu tinha uma atitude de permanência.

 

De permanência consigo próprio, a sós consigo, para começar.

Sim. Um dos problemas nas minhas relações é que passo de uma situação à contrária sem evolução necessária. Não é instabilidade. Como passava horas só, também brincava acompanhado horas a fio. Era uma mudança de estado.

 

E a sua mãe? Era o anjo da sua infância?

Não. Um anjo, não. Do ponto de vista feminino, não vivia só com a minha mãe, embora a minha mãe estivesse sempre presente. O que ela tinha era uma profunda intuição da minha existência.

 

Adivinhava-o?

Sim, mas isso é mais normal. O que quero dizer é que o meu estado de alma em geral, relativamente também à minha doença, podia subir mais à consciência ou menos, (porque isso não é permanente). Todo esse movimento interior, e de aceitação ou não aceitação desse tipo de destino, aí, ela, que nunca o poderia ter formulado, sei que tinha uma intuição total do meu estado de alma. Teve-a até aos 16 anos. Depois eu cortei completamente. Tinha uma vida interior separada, tanto do meu pai como da minha mãe.

 

Quando improvisava horas e horas ao piano, tratava-se de um reencontro íntimo?

Sim. Embora houvesse uma enorme ignorância teórica, havia o que você disse.

 

O reencontro consigo.

Sem dúvida nenhuma.

 

E o pingue-pongue?

É um desporto! [riso] Você provoca-me e eu provoco-a!

 

Como é que se entusiasmou pelo pingue-pongue? Jogou à séria.

Tinha dois colegas que jogavam de maneira bastante profissional. Eu ia com eles, e jogava. Joguei muito e joguei relativamente bem. A próxima doença, que intelectualmente ficou muito mais enraizada, foi o bilhar.

 

Quer um, quer outro são jogos de precisão.

São. O bilhar é muito mais intelectualizado no gesto. A relação era muito intensa. Também acabou assim de repente.

 

Acabou porquê?

Porque mudei de vida.

 

O facto de serem esses desportos, que exigem precisão, tem a ver com a sua doença e uma necessidade de se superar?

Não sei. Tanto no pingue-pongue como no bilhar, vivia todos os dias com pessoas que o praticavam. Além de que, no bilhar, havia o fascínio não da precisão, mas da física. Da física das bolas. Todo o fenómeno da física, de dinâmica, é extremanente complexo.

 

No mesmo artigo do Le Monde a que já me referi, dizia-se que a sua música vive da tensão entre a sensualidade e a espiritualidade. Acha que é uma boa definição?

De certa maneira. Mas como lhe disse ontem, para falar de espiritualidade exijo muita moderação. Há quem comece por falar de espiritualidade e acabe a falar de mística.

 

Como coabitam em si o espiritual e o sensual que há na sua música?

Não penso que tenha de haver uma contradição ou tensão negativa entre os dois domínios. Não é preto e branco. São dois domínios da mesma totalidade. Por exemplo, no compor também não vejo em mim qual é a contradição entre o lado racional e o lado intuitivo. Não é por usar uma estrutura de raíz muito racional que a sensualidade vai ser menor. Não vejo qualquer incompatibilidade.

 

E não há gradação? Passa-se de um a outro naturalmente?

Ou não passa: só há um tempo.

 

Em concomitância?

Se possível.

 

Uma fusão?

Sim.

 

Gostava de saber em que pensa. Hoje, que coisas lhe ocorreram?

A chuva. Hoje é um factor essencial: se chove, não há concerto.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

Emmanuel Nunes morreu em 2012