Escrever: para quem e porquê - o problema dos filhos e o legado da nossa miséria em Machado de Assis
Recentemente, reli Dom Casmurro num velho exemplar onde identifiquei as anotações e sublinhados da minha segunda leitura do romance, em 2013. O exercício permite-me replicar as palavras do narrador e afirmar: se o rosto era igual, a fisionomia era diferente. Surpreendeu-me que há quase dez anos a fisionomia do livro já identificava o tema dos filhos, que veio a interessar-me e se tornou o núcleo do meu doutoramento.
Nessa leitura, esbocei um triângulo importante para compreender o livro: aquele em que Bentinho é parte de uma Santíssima Trindade, com a Mãe e Deus nos outros vértices; a hipótese que coloquei, na margem, foi: um Menino-Jesus que não procria nem se emancipa da mãe. Falarei deste e de outros triângulos.
O que quero dizer é isto: o problema dos filhos, e a relação entre filhos e autoria, as questões da fecundidade e infecundidade que trabalho na minha tese já as tinha isolado como relevantes. Mas foram precisos anos para me deslocar do tema do ciúme em Dom Casmurro ou da melancolia de Brás Cubas e me concentrar num assunto a que não prestei especial atenção. A gestação é por vezes longa, longuíssima, como os superlativos de José Dias, o agregado do Casmurro. Na minha pesquisa, que vou partilhar convosco, procuro esclarecer a importância dos filhos e aquilo que podemos pintar como aura de infecundidade no universo machadiano. Vou centrar-me em três palavras nesta partilha: filhos, legado e escrever.
Outras palavras que agora importam e que estão contidas no título da minha intervenção: procriação, esterilidade, autoria, imortalidade, genealogia, hereditariedade, morte e nascimento, gerar e criar, libido.
Perguntas: os filhos são essência da vida humana, são manifestação da vontade da espécie, são prolongamento da vida e legado da família? O que significa a sua ausência numa época em que era natural, tão natural ter filhos? E quem são estes filhos, como recebem e transmitem um quadro social? O que representa ter filhos para Brás Cubas e Bentinho, e porque é que estes homens ou o Casal Aguiar desejam ter filhos?
Deriva deste problema um outro que se prende com a narração das memórias ou com a escrita de um diário, uma vez que o problema da autoria é também um problema de paternidade. Quem assina?, quem dá origem? Isto está expresso na primeira página do Casmurro: “E com pequeno esforço, sendo o título seu [do poeta do trem], poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto”.
Questiono o que leva Brás Cubas e Bentinho a escreverem memórias, a sua necessidade de contar e perdurar sob esta forma de registo, a constituição de um legado dirigido a uma audiência vindoura, a perpetuação de um nome.
Uma hipótese é a de que o fazem por desconfiarem que, na felicidade do presente, há sempre uma gota da baba de Caim, como resume Brás Cubas. Uma gota que fala da caducidade, de um quadro temporal onde não vamos estar, do absurdo de ser para morrer.
Os narradores Brás Cubas, Dom Casmurro e Aires (e são todos homens) não têm descendência (ou rejeitam-na, no caso de Bentinho, segundo a minha interpretação). No entanto, as menções ao desejo de ter filhos, filhos de sexo masculino, e a frustração de os não ter, pontuam de maneira decisiva os seus relatos.
Um livro — a escrita — mitiga o fantasma do desaparecimento, ocupa um espaço vazio, metaforicamente torna-se o filho do autor.
A partir de Memórias póstumas começa a desenvolver-se um assunto que percorre os romances da maturidade e que não estava nos quatro primeiros, dominados por aspectos de ordem social e cariz romântico: a importância oculta dos filhos, pela sua ausência, e o fantasma da esterilidade.
Em Brás Cubas anuncia-se que a paternidade é um desígnio, que qualquer coisa de essencial à vida humana é substanciada na figura de um filho: ele dá sentido, exprime a vontade da espécie, transmite um legado. Tematizado de diferentes modos, há uma insistência no tema da reprodução e uma pergunta que subjaz: como nos salvamos da morte? Os filhos são uma omnipresença em Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. E são, de certa maneira, uma omnipresença negada, ou omissa, porque a sua resolução é incapaz, incompleta, silenciosa. Quem são aqueles que ficam para dizer o nome, o nome que identifica uma pertença e um património? Para continuar e ilustrar ainda mais o nosso nome, como apela o pai de Brás Cubas.
Brás Cubas acaba em si, sem descendência, e esse é paradoxalmente o pequeno saldo de uma vida falhada. “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Em Quincas Borba ninguém tem filhos; o que mais se parece com linha hereditária faz-se por via de um cão, que tem o nome do dono, como, tantas vezes, os filhos têm os nomes dos pais; e a preservação da herança está vinculada ao cuidado com a vida do animal.
Em Dom Casmurro a deflagração da tragédia acontece na figura de Ezequiel, filho espúrio ou legítimo de Bentinho, que amputa, na recusa desta paternidade, a possibilidade de uma linhagem.
Em Esaú e Jacó, os protagonistas Aires e Flora não têm filhos. Flora morre virgem, não chega a dar fruto, tem um carácter distinto dos pais, como se proviesse de outro solo. O antigo diplomata tem por ela um interesse filial, diferente daquele que dedica aos gémeos; a preocupação do abastado casal Santos com Pedro e Paulo tem que ver sobretudo com a glória futura, com a esfera social e o renome da família. O romance esteve para se chamar Ab ovo, depois de Último. Ab ovo, expressão latina que significa “desde o ovo, desde a origem”, está também em Dom Casmurro: a vida de Bentinho foi dedicada Ab ovo, no dia em que foi gerado, a Deus, pela mãe.
No Memorial, Fidélia e Tristão são filhos postiços de um casal que tem a grande ferida de não ter tido filhos biológicos e, de certo modo, também de Aires, apesar do desejo pela viúva que o Conselheiro revela no diário. O casal Aguiar tivera um terceiro filho, um cão, o que nos reporta a Quincas Borba, e vive uma situação de orfandade às avessas, com a partida dos filhos postiços para Portugal. Aires escreve no diário: “Parece que a gente Aguiar me vai pegando o gosto dos filhos, ou a saudade deles...”, exprimindo, neste capítulo, o desejo de ter filhos, ou o desejo de ser moço ainda capaz de gerar filhos, ou a nostalgia da infância.
Constato, após uma investigação preliminar, que na tradição crítica a figura do filho não se estabeleceu como vertente significativa. O que me leva a interrogar porque é que tem sido ignorada (ou insuficientemente elaborada) se o tema dos filhos está no centro de tudo aquilo que escrevem os narradores machadianos. Voltando atrás: porque é que, tendo identificado em 2013 o tema dos filhos na minha leitura de Dom Casmurro, fui encapsulada pela leitura dominante, e não encarei a fertilidade e a infertilidade como célula original?
Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires revelam-se, para esta discussão, os mais fecundos. Mas opto por fazer uma análise sumária de Dom Casmurro, dado que o romance permite apresentar alguns argumentos-chave. Mais tarde, irei ao Brás Cubas.
A interpretação que proponho funda-se num primeiro triângulo no qual Bento e D. Glória são vértices constantes.
Mãe—Irmão Morto—Bentinho. A mãe é idealizada. Bentinho talvez sinta uma culpa originária por ter sido escolhido por Deus. Porque é ele, e não o irmão primogénito, aquele que sobrevive. Pode-se arriscar que supôs ser um filho-Messias, concebido sem pecado, de uma mãe que é espírito sem corpo. Isto faz dele um filho devolvido ao pai-Deus, preservado na Trindade originária, quando prometido ao seminário. Nesse caso, no outro vértice apareceria Deus. O segundo triângulo seria então: Mãe—Deus—Bentinho.
Outra variação desta geometria permite pensar no homem falecido precocemente, cujo lugar o filho toma, não tendo de disputar o coração da mãe. Mãe—Pai—Bentinho. Contudo, castrado, porque feito padre, o que tem como consequência a interrupção da linhagem.
Formemos um novo triângulo com os filhos dos dois casais e na incestuosidade desta configuração. Ezequiel e Capituzinha—Capitu e Sancha—Bento e Escobar. Todos como irmãos.
A dinâmica triangular mais evidente em Dom Casmurro tem por protagonistas Capitu—Bento—Escobar, o ciúme como motor da acção, Othelo como presença intertextual mais óbvia. Mas a leitura que proponho faz remissão para Macbeth, peça onde se exprime a ambição desmedida e o desejo de poder, e que tem no seu nervo o problema da linhagem. Antes de Macbeth, ainda dos proponho outro triângulo: Capitu—Bento—Sant Iago.
À semelhança da peça de Shakespeare, também há, em Dom Casmurro, uma visitação de criaturas mágicas e uma predição.
Citação no capítulo “Tu serás feliz, Bentinho”: “Esta [fada], por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há-de ser prima das feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!” — “Tu serás feliz, Bentinho!” Ao cabo é a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna”.
Os dois homens omitem a parte restante da profecia, relativa à extinção da linhagem — deles não nascerão reis, deles não haverá descendência. Na tragédia do dramaturgo inglês, os elementos da profecia são indissociáveis, o que se manifesta no facto de Macbeth matar o seu mais querido amigo, Banquo: porque, segundo vaticinado, deste nascerão os futuros reis. Voltando ao Casmurro: porque é que a fada-feiticeira, que auspicia a felicidade conjugal, não sussurra no ouvido de Bentinho a possibilidade de ele não gerar filhos, de a estirpe se desenvolver a partir do seu mais querido amigo, Escobar? Dito de outra maneira, porque é que Bentinho teme não fundar uma dinastia, teme não ser capaz de continuar uma dinastia?
O não-dito desse capítulo, talvez mesmo do romance, é o temor de que o casamento com Capitu seja um reinado estéril.
Penso que a (putativa) traição de Capitu é lida por ele como um castigo de Deus pelo abandono do seminário, uma punição para a desobediência. A troca com o mocinho órfão (solução não por acaso proposta por Escobar) representa um desafio a uma ordem pré-estabelecida. Considero a possibilidade de Bento, de um ponto de vista inconsciente, se achar estéril e de esse ser o (auto-infligido) castigo pelo incumprimento da promessa. Uma promessa da mãe, corporizada nele, na existência dele. Neste sentido, um problema essencial em Dom Casmurro é o fantasma da esterilidade, que impede Bento de acreditar que Ezequiel é seu filho, que ele possa ter gerado esse ser, um ser.
Também em Brás Cubas podemos sentir uma aura de esterilidade, e é sintomático da importância dos filhos neste romance que a frase de encerramento fale deles. Quando o personagem diz: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, está a falar de uma degeneração, de um elo da cadeia que é quebrado. Nesta frase estão implicadas as noções de continuidade e de herança, mas parece estar também um juízo, uma proposição valorativa sobre o vazio e o absurdo da vida de cada sujeito.
Brás Cubas sentiu cócegas de ser pai, manteve um diálogo com um embrião de obscura paternidade, falou do amor da glória, da paixão do arruído. Uma e outra podem ser entendidas como recusa da morte, expressão do desejo de ser imortal, pura pulsão de vida.
Schopenhauer identifica a procriação e a conservação como núcleos fundamentais da vida humana e caracteriza a vontade como força contínua, insusceptível de ser saciada ou interrompida. N’ O Banquete de Platão, Diotima sentencia que há na fecundidade, de que todos os seres humanos são dotados no corpo e no espírito, e no impulso da procriação algo de divino, algo que possibilita iludir a asfixia do presente, do tempo já morto. Diz Diotima, “a geração é, para o ser mortal, como que a possibilidade de se perpetuar e imortalizar”.
Gerar é um verbo dominante na obra de Machado de Assis.
Resultam daqui algumas perguntas: num horizonte de desamparo, sem Deus — portanto, num quadro de orfandade —, os filhos são uma consolação? São um modo de combater a vulnerabilidade, a contingência, a falta de sentido? São uma forma de, projectando o futuro, nos projectarmos a nós mesmos no futuro? Um filho é um modo de um sujeito se continuar e repetir?
Mesmo omitido o pronome possessivo, dizer “filho” equivale a dizer “meu filho”, e contém dois mistérios: o da origem e o da descendência.
Nos romances da maturidade de Machado, o problema já não é o da sobrevivência, mas o da transmissão do legado. Os protagonistas masculinos, como Brás e Bento, são uma representação do herdeiro, proprietário, ocupado com a manutenção das prerrogativas da sua classe. As minhas perguntas são feitas a partir do lugar dos filhos na composição da família, a família como célula do tecido social.
Estes filhos-narradores têm, no exercício da escrita, o uso da palavra, uma certa versão dos factos que legam às gerações vindouras. Apesar disso, demitem-se, fica qualquer coisa por cumprir. Identifico neles um traço melancólico, e falando de melancolia, junto o Conselheiro Aires ao grupo. Uma hipótese sobre a qual tenho trabalhado: existe uma relação entre a ausência de filhos nos romances posteriores a Brás Cubas e o facto de estes (excepto Quincas Borba) assumirem um tom memorialista ou diarístico? Porque é que Brás, Bento ou Aires escrevem memórias e diário? A escrita, como os filhos, tem como fundamento a perpetuação de um nome, de uma narrativa: os livros podem chegar a ser, ou transformam-se, nos filhos que não vêm.
Machado de Assis e Carolina não tiveram filhos. Lúcia Miguel Pereira escreve acerca dessa grande dor. “Lúcidos como eram, Carolina e Machado não podiam realmente ter desejado um filho, um herdeiro do mal deste. Mas lamentavam, isso sim, essa impossibilidade.” O subentendido desta frase: herdar a epilepsia de Machado. Convém sublinhar que o entendimento e conhecimento que então havia da doença não era o que temos hoje.
Embora o foco não seja a biografia do escritor, é pertinente questionar até que ponto as opções e contingências da sua vida influíram na construção da obra, determinaram, por exemplo, que o tema dos filhos estivesse presente desde Brás Cubas, quando Machado tinha 40 anos e Carolina 45, e conhecesse uma expressão sem disfarce no Memorial de Aires.
Acabei de plantar uma questão: o facto de Machado e Carolina terem esta idade, a certeza de que não teriam filhos terá contribuído para a fractura operada na obra de Machado em 1880, com as Memórias póstumas? Mais uma pergunta para ficarem a pensar.
Há muitas perguntas sem resposta no universo machadiano. A ambiguidade, a equivocidade, o não-dito percorrem, em particular, os romances maduros. Outra marca: a estranheza. Quando lemos Brás Cubas, ainda hoje, o sentimento que nos domina é o da estranheza. Que livro é aquele?
Estranheza é para mim parente próximo do espanto. As duas palavras têm, não na raiz, mas nos seus estilhaços, um abrir de olhos de quem está perante o novo e uma certa incompreensão. Confio muito no valor da incompreensão. Claro que, após sucessivas leituras, há hipóteses interpretativas, caminhos onde, como num carreiro de formigas, o passo é mais seguro. Mas subjaz a estranheza e a incompreensão. O livro parece-me, cada vez mais, uma metáfora do que é a vida, com os seus nascimentos e mortes, a esperança e a ruína, a melancolia que nos corrói, o ímpeto que nos faz avançar, o seu enigma.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma maneira de inquirir o que Caetano Veloso canta em Cajuína: “Existirmos, a que será que se destina?”. Interroga o que é o humano, nas suas misérias e grandezas, na falha. Brás Cubas é aquele que falha, é, portanto, o humano.
Ele e o livro são também uma pergunta. Uma pergunta pela memória que legamos, pelo modo como os vindouros dirão o nosso nome.
Foi num movimento, que Brás Cubas descreveria como atoado – ou seja, sem direcção precisa, um borboleteio – que cheguei às minhas âncoras: a flor da melancolia e o ímpeto cesariano, noções que reflectem um confronto com a temática schopenhauriana e nietzschiana da negação e afirmação da vida.
A partir delas, procurei identificar o que no romance corresponde a um substrato metafísico, a uma procura pelo sentido e a uma tentativa de lidar com o sofrimento – feitas por um homem para quem Deus morreu, e que encontra numa dimensão temporal tudo o que há para encontrar. Considero que, a despeito do pessimismo que atravessa o livro, há nele uma vitalidade que decorre grandemente do ponto de vista do narrador, do facto de as Memórias serem póstumas. É no acto criador da escrita que Brás Cubas, e com ele Machado de Assis, firma o estandarte de César e abotoa a flor da melancolia, o sofrimento de que padece a Humanidade. A melancolia desponta depois da morte da mãe, no período de luto em que, pela primeira vez, há um questionamento acerca de si próprio e do seu lugar no mundo. Diz Brás: “Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e subtil.” A melancolia é uma água pantanosa onde mergulha e de onde sai com dificuldade, quando sai. Ficou encapsulado o seu “ímpeto cesariano” – que lhe permitiria afirmar a vida, ter um desígnio, ser feliz.
Podemos interrogar-nos: onde começa e onde acaba o mundo de Brás Cubas, que nos fala a partir do mundo dos mortos como se fosse possível falar a partir do mundo dos mortos? A delimitação imprecisa e constantemente sabotada do fio do horizonte, da ideia de princípio e de fim, de vida e de morte, é um dos aspectos mais desafiadores do livro. Brás Cubas vai-se da lei da morte libertando a partir do seu lugar de defunto autor, da narração retrospectiva do seu percurso.
O personagem está sentado com o leitor na plateia, observando-se do lugar dos mortos; e está representando a peça, sendo nesse exercício autor e protagonista. Está na eternidade e no instante. O dispositivo permite um feito extraordinário: o de ver a vida de fora, do avesso, exterior ao mundo e a si mesmo.
Segundo um crítico, contemporâneo do livro, Brás Cubas “é um sujeito nulo, que escreve para os jornais, escapa de casar e morre”. Não casou, não teve filhos, não teve carreira política, não conheceu a glória pública. Tudo nele é fora de horas, sucumbe à força do acaso e à ausência de querer.
Porque é que esta vida é contada, se fica dela uma ideia de vazio? Esta questão não é relevante se considerarmos que há um impulso vital na criação. No princípio era o verbo. No fim era a necessidade de narrar, usando o verbo e assim voltando ao princípio, fazendo da palavra o elemento de união dos dois polos, e gerando vida nesse movimento. Escrever é uma forma de estar vivo.
Esta ideia poderosa está também no começo do Casmurro quando o narrador afirma: “Vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi...”.
A vida de Brás Cubas foi uma vida impregnada de mortes. Mortes efectivas e metafóricas, outros tantos recomeços. Procurei ler os sintomas de Brás Cubas à luz do ensaio de Freud “Luto e Melancolia”, tive a impressão de o personagem de Machado ser um enlutado que vive na volúpia do aborrecimento. A libido nunca, e de forma completa, é deslocada da Tijuca, para onde Brás se retira a seguir à morte da mãe, para um outro objecto e lugar. Qualquer coisa fica sempre por cumprir. E então, não é apenas o mundo exterior que fica mais pobre (pela perda da mãe); é o seu próprio ego que fica empobrecido.
Brás Cubas morreu menos de uma pneumonia e mais de uma ideia grandiosa e útil. A ideia grandiosa e útil era a invenção de um emplastro anti-hipocondríaco que curasse a Humanidade da melancolia. O emplastro sintetiza um problema nuclear da vida de Brás Cubas: a melancolia e a sede de nomeada, que permite fugir do ínfimo e da obscuridade, para usar expressões do pai de Brás Cubas. É um problema com duas ramificações no sentido em que um é resposta ao outro. Isto é, a sede de nomeada é a resposta à melancolia. A sede de nomeada é uma forma de lutar contra o esquecimento, lustrar o nome. Escrever é uma forma de satisfazer a sede de nomeada.
Na verdade, foi da ruína do projecto de ser grandioso e útil que Brás morreu, da melancolia que isso lhe causou, da melancolia que minou, justamente, o ímpeto de fazer qualquer coisa grandiosa e útil. Porém, ele sabe que tudo esbarra na roda que tritura. Tritura porque justamente põe na roda. O homem é insignificante em relação a uma ordem universal. Atrás de Cubas, outro Cubas virá. Não ele, não um prolongamento dele, mas um homem como ele. Somos mortais, sabemo-nos mortais. Nada podemos fazer em relação a essa “nossa miséria”.
Brás sabia desde a morte da mãe da da fragilidade das afeições, do sofrimento que resulta do desaparecimento daqueles por quem temos afeição. O medo da morte é uma forma figurada de falar deste medo do abandono, do desamparo. Ficaremos absolutamente a sós com a existência? Uma carreira, por mais bem sucedida que seja, os grandes projectos que o pai lhe estende, esbarram na fragilidade da vida, na certeza de que todos tombam. Que ganhou Lobo Neves, verdadeiramente, ao arrebatar Virgília e a candidatura, tendo um filho? Não tombou ele também?
Mas o poder de criar um enredo, o conteúdo existencial, é a ele, sujeito mortal, que cumpre. E então podemos perguntar pela peça que Brás escreveu para ser representada, em vida. Uma peça frouxa, volúvel, objecto manipulado.
Brás Cubas tem como fio uma indagação pelo sentido da existência e uma preocupação com a sobrevivência do nome, com a descendência. Radica em si uma vontade que o faz sonhar com um baby. Esta vontade exprime uma compreensão animal da vida. Uma compreensão instintiva do que é próprio da espécie. Segundo Schopenhauer, aquilo que move, caracteriza e domina os animais é a vontade de viver. Uma primeira tradução disso: a vontade de se alimentarem e de se reproduzirem.
É à luz de Schopenhauer e Nietzsche que olho para Brás Cubas como um animal metafísico. Aquele que sofre e tem consciência do seu sofrimento. Aquele que sofre, tem consciência do seu sofrimento e tem consciência da sua finitude.
Contudo, há qualquer coisa no livro que é uma afirmação da vida, qualquer coisa do que Nietzsche chamou “pessimismo dionisíaco”.
É uma noção paradoxal que se decompõe nestes dois movimentos: o mundo é visto como pessimista e, no entanto, é afirmado. Afirmam-se as coisas em vez de se concluir, simplesmente, que o mundo não faz sentido.
Esta afirmação incorpora o que é negado. E acontece, a meu ver, por via da escrita.
Vive-se apesar da dor e da falta de sentido para a dor. Vive-se escrevendo, e retirando desse gesto uma vitalidade, um gozo narcísico, tendo assim um ímpeto verdadeiramente cesariano.
A vida de Brás Cubas, sem esta narração post mortem, na sua essência justificaria um juízo pessimista. Todavia, na medida em que é possível narrá-la, adquire um propósito: que é o prazer da narração.
Em suma, o ímpeto cesariano de Brás Cubas exprime-se na escrita.
Naturalmente, o ímpeto cesariano de Machado de Assis exprime-se na escrita publicada. Trata-se, no caso do escritor brasileiro, de deixar uma memória em vida. Uma memória que perdura, sobre a qual hoje reflectimos e celebramos.
Conferência PUC São Paulo, intervenção por zoom, Verão de 2022.