Fátima Lopes
Fátima Lopes é uma mulher como as outras. Arrisco dizer que se fosse mais sexy, ou se investisse mais nesse lado, teria menos aceitação junto das mulheres. Elas olhariam para ela como uma concorrente, uma ameaça. Ela têm uma imagem cuidada, mas não excessivamente cuidada, e facilmente se transforma na amiga ideal, na filha ideal.
Fátima não quer ser ideal. Quer manter os pés assentes na terra. Acredita vivamente que a humildade é a chave do seu sucesso. Tem 37 anos e é a mais popular apresentadora da televisão portuguesa. Parece muito forte, determinada, positiva. E é.
Numa conversa no seu camarim, ao início da tarde, fala de não querer ofuscar a vida dos que ama, de querer ser apresentadora até ser velhinha, da compra de detergentes no supermercado, das aventuras que tem vontade de experimentar depois do livro «Amar depois de amar-te», de quando achava que não tinha carisma para estar no ecrã, de acreditar nos seus sonhos e de persegui-los. Conta tudo isto exactamente com a mesma voz que lhe conhecemos da televisão. Porque é a mesma.
As pessoas olham para si como um membro da família. Existe um desfasamento entre a imagem que os outros têm de si e aquela que tem de si própria?
Acho que existe uma coincidência muito grande. É óptimo não precisar de criar uma personagem para fazer o meu trabalho. Não conseguiria ser feliz se tivesse que ser uma quando as câmaras se ligam e outra dentro das portas da minha casa. Preciso de sentir que me movimento com liberdade, que sou com liberdade.
O público refere-se a si como uma “pessoa muito genuína”. Helena Sacadura Cabral, a propósito do seu livro, diz que “escreve como fala e fala como é”. Ainda que não haja uma distância entre aquela que é em público e aquela que é em privado, há uma linha intransponível. O que é que delimita a esfera da intimidade?
Apesar de ser muito transparente na minha forma de ser_ ou seja, tenho um convidado e gosto de exteriorizar os sentimentos, de dar as minhas opiniões – , quando entro em casa faço por deixar o trabalho lá fora. Não tenho que expor a minha família e os que me são próximos às consequências de ser uma figura pública. Não é que isso fosse necessariamente negativo nas suas vidas, mas fui eu que escolhi ser figura pública. A minha filha nunca apareceu numa revista – excepto, numa fotografia paparazzi.
Não quer que ela seja “a filha da Fátima Lopes”... Imagino que os seus pais sejam “os pais da Fátima Lopes”…
O meu marido é “o marido da Fátima Lopes”, a minha irmã é “a irmã da Fátima Lopes”.
É como se não tivessem individualidade. Em algum momento pensou que as pessoas se aproximavam de si por ser uma figura pública?
Não. Sou muito selectiva com os meus afectos. Dou-me bem com toda a gente, mas não gosto de toda a gente. Tenho uma intuição muito apurada, gosto de a ouvir. Mas percebo a sua pergunta... Tendo-me divorciado, e refeito a minha vida, poderia pensar que um homem se aproximava de mim por causa do meu estatuto. Estive muito tempo sozinha exactamente porque não é fácil cativar-me.
O que é que as pessoas têm de ter para passar essa barreira e merecerem a sua atenção?
A transparência. Uma pessoa que não mente a si própria e não mente aos outros, está a criar transparência na sua vida. A verdade é um óptimo fio condutor.
Corresponde ao que se espera da “filha perfeita”, encaixa numa imagem muito familiar.
Não sou uma filha perfeita porque não deve haver filhos perfeitos. Mas tenho uma relação muita boa com os meus pais e sei que não lhes causo problemas. Sou muito cuidadosa, falo com eles todos os dias. A minha mãe dizia-me [no momento de transição do anonimato para a popularidade]: “Não te deslumbres, nunca tires os pés da terra. Lembra-te sempre de quem tu és, só vais ter sucesso quando continuares a ser quem tu és”.
O que é que ela queria dizer com cada uma destas coisas? Com que tipo de coisas se podia deslumbrar?
Com fama, sucesso, ganhar mais dinheiro, ser conhecida, achar que era mais do que as outras pessoas. No meu caso, o que houve foi estranheza ao andar na rua e as pessoas apontarem o dedo, ou cochicharem ou virem ter comigo. Foi mais difícil gerir isso do que o facto de se abrirem portas porque eu era uma pessoa conhecida.
“Assustou-se” com o sucesso, com aquilo que pudessem dizer de si?
Fui lançada de pára-quedas e evoluindo à medida que me fui empenhando e corrigindo as coisas que fazia. Tive a sorte de trabalhar em equipas que criaram uma ligação afectiva forte comigo. Mas há um factor que é a chave do sucesso: a humildade. Sou extremamente humilde. É importantíssimo reconhecer que não é por sermos apresentadores que somos o supra-sumo. Somos uma peça da engrenagem televisiva, igual a todas as outras.
Falou da importância que tem para si a segurança. Aprendeu a reconhecer o mundo num quadro de estabilidade ou de instabilidade? Que memórias é que guarda da sua família?
Vivi numa família bastante estável, e sei valorizar isso. Tenho uma irmã, três anos mais velha, e temos uma relação de muita cumplicidade, apesar de vivermos longe. Ela formou-se em Engenharia Agrícola em Vila Real, depois foi estagiar para Braga e acabou por fazer lá a vida dela. Neste momento, produz e vende flores. Por acaso, quando éramos miúdas andávamos sempre às turras uma com a outra.
Por que é que competiam?
Não era isso. A minha irmã era mais vivaça e eu era bem comportadinha, muito bonequinha, casinhas, fazer de mãe. A distância aproximou-nos de uma maneira impressionante, e passámos a ser grandes confidentes. Para nós, a família é um núcleo, um pilar. Numa família bem estruturada, quando há boa comunicação, as pessoas conseguem ser felizes. A instabilidade é uma coisa estranha na minha vida.
Cresceu a pensar que a sua vida ia ser o quê?
Cresci a pensar que ia ser professora de inglês, porque sempre gostei imenso de ensinar e de inglês. A minha brincadeira era espalhar os livros, o material [escolar], fazia os trabalhos no quadro, ensinava os meus alunos fictícios. É uma professora de jornalismo que me dá completamente a volta à cabeça. O jornalismo era uma paixão que eu não sabia que existia [em mim].
Em todas essas possibilidades, há sempre um desejo de comunicação e de estar com outros.
Sempre. Eu dava-me lindamente com as crianças todas. Eu vivia no Barreiro. No meu prédio havia imensas, quase todas da minha idade. E juntávamo-nos bastante, na casa de uma, de outra, brincávamos na rua. Havia sempre regras. Os meus pais não me deram uma educação castradora, mas deram-me regras. À minha filha faço questão de passar regras. Quando se estica um bocadinho a dar uma resposta leva logo um ralhete de todo o tamanho! A educação nunca fez mal a ninguém e as regras existem para balizar a criança.
Portanto, dava-se com os meninos do prédio.
Sim. Mas se a minha mãe dizia: “A estas horas não vais porque as pessoas estão a fazer o jantar”, eu entretinha-me bem sozinha. Já adulta não vivi bem o facto de estar sozinha. Houve uma fase, entre os 22 e os 25, em que lidava mal com a minha companhia. Precisava de estar acompanhada, senão sentia-me só.
Coincidiu com a entrada no mercado de trabalho e definição de um quadro de vida?
Um bocadinho. Hoje em dia, quando tenho que ficar sozinha, tenho prazer em desfrutar a minha casa. É quando me dá para arrumar, mudar coisas, comprar o que falta.
Ainda gosta de ir ao supermercado, escolher os detergentes, comprar mercearia? Imagino que por vezes tenha saudades das minudências de uma vida simples...
Sou sempre eu que faço essas coisas. Ou o meu marido. É bem provável que daqui a pouco nos cruzássemos no supermercado porque vou comprar as coisas que me faltam para o jantar. Tenho uma empregada que vai três dias a minha casa e me trata das roupas e da limpeza. De resto, faço eu. Eu é que levanto a minha filha às sete da manhã, despacho-a e deixo-a na escola, às oito, vou buscá-la, levo-a à natação. Sou eu que faço o jantar.
Sentir-se-ia um pouco perdida e incompleta se não tivesse essa dimensão? Se deixasse de ser uma mulher igual às outras…
Não me imagino a viver numa redoma em que estou afastada do que faz parte da vida das pessoas. Preciso de ter uma vida normal. Isso faz com que os pés não saiam da terra e seja mais fácil receber aqui as pessoas. Eu sei do que é que elas estão a falar.
O seu percurso distinguiu-se do dos meninos com quem brincava. Que elementos faziam então prever que o seu destino podia transcender uma “vida normal”?
Não acredito em acasos nem em coincidências. Tudo o que acontece tem um significado. O que é que me pôde distinguir das outras meninas que viviam no mesmo prédio? Continuei os estudos, empenhei-me nos estudos. Temos contacto frequente, ainda no outro dia estivemos juntas. Por outro lado, não me imagino a andar cá por andar, a fazer desta maneira porque é o normal, a sonhar até dez porque toda a gente sonha até dez. Quero é saber o que é que eu sonho, até onde é que posso ir. E acredito que posso chegar lá.
A história que se conta é que trabalhava na SIC numa empresa de audiotexto e um dia Emídio Rangel pensou em si para apresentar um programa. Essa possibilidade não lhe tinha ocorrido antes?
Quando estava no curso de comunicação social não escolhi televisão. Pensava que teria piada estar à frente do ecrã, mas que não tinha cara para isso, nem imagem. E que era preciso ter um certo carisma. Uma pessoa que chegasse ao ecrã tinha que ter presença. Não era só chegar ali e ter dois palmos de cara.
No fundo, ainda não tinha descoberto que o seu carisma passa por ser quem é, por ser genuína.
Eu não sabia. E escolhi outra área dentro do curso, de que ainda hoje gosto muito: marketing e publicidade. As minhas primeiras experiências profissionais foram nessa área. É engraçado as voltas que a vida dá... Tive aquele sonho que tive, que dobrei, dizendo “não, não é para ti”; não quer dizer que deixasse de me fascinar.
Explique-me melhor essa insegurança que a fez pensar que não tinha carisma ou presença para aparecer no ecrã.
Se pensava em mulheres que apareciam na televisão, pensava em grandes figuras – Maria Elisa e por aí adiante. Era gente com uma bagagem, uma presença forte. Eu era uma miúda: o que é que eu tinha para transmitir às pessoas? Nada. Mas não achava que era uma incapaz.
Ainda não perceber que relação é que tem com o seu corpo. Fez muito desporto, aprendeu a conhecê-lo, a senti-lo. Parece bastante cuidada e consciente do impacto que isso tem nos outros.
É curiosa a sua pergunta, nunca reflecti sobre isto... Todo o sucesso que tenho, passa também pela parte exterior, mas eu atribuo-o sempre mais ao meu desempenho como profissional e à minha postura como pessoa. O cabelo e tudo o resto são apêndices das primeiras. Numa campanha como a do cancro da mama [FL participou numa campanha sensibilizando as mulheres para o rastreio], nunca isso me pareceria importante.
Escrevia-se nas revistas, quando apareceu, que era “a bomba” da SIC e de Rangel. E escrevia-se também que era uma bomba sexy.
Isso não quer dizer que não tenha uma má relação com o meu corpo, contrariamente ao que pensa. Quando surgiu a primeira capa, jamais me esquecerei, a dizer “a bomba da SIC”, foi uma leitura feita a partir de uma declaração do Dr. Rangel. Ele não me chamou bomba; disse: “Vai aparecer aí uma pessoa que vai surpreender”. Leitura destas palavras: a bomba da SIC. Aquilo incomodou-me profundamente. Eu nunca me senti bomba! Não tenho o culto do físico, e às vezes peco por falta. Sou tão negligée nas minhas coisas, gosto tanto de andar com os meus ténis e as minhas calças de ganga...
Das fotografias e objectos que estão no camarim, o que podemos saber de si? Comecemos pelo rosário. É religiosa?
Sou, tenho muita fé. As pessoas associam espiritualidade a Igreja ou a Deus. É isso, mas não é só isso. Há doze anos cruzei-me pela primeira vez com pessoas que falavam em técnicas de desenvolvimento pessoal. Hoje vou a seminários com uma pessoa me ensina muito. Posso testemunhar com a minha vivência o quanto a nossa cabeça nos pode fazer viver experiências boas se bem orientada, o quanto podemos ser destrutivos se mal orientados.
A questão da confiança em si mesma é fundamental.
Mas isso também se aprende. Não fui sempre tão confiante como sou hoje. Tenho as minhas dúvidas e medos, como qualquer ser humano. Mas já me é mais fácil parar e reflectir sobre eles. O que vou viver amanhã, depende muito daquilo que fizer hoje. Ou invisto num trabalho interior para ser uma pessoa que fortalece a sua confiança e segurança, ou amanhã, se calhar, estou muito pior.
Amanhã, ou seja, no futuro, que coisas se imagina a fazer?
Para já, quero ser apresentadora até ser velhinha. Não tenho nada aquela ideia de que expirou o tempo da juventude física, logo já não interessa. Os Estados Unidos dão-nos belíssimos exemplos de que não é assim.
A Oprah…
É a minha referência. Realmente é uma máquina comunicadora. Eu quero ser uma mulher madura, e, se tiver qualidade e capacidade para isso, continuar a fazer aquilo de que mais gosto, que é falar com as pessoas. E agora a história do livro… Deu-me tanto gozo escrever o livro! Fiquei com vontade de escrever mais. Tenho a certeza que vou experimentar muitas outras coisas. São os meus sonhos, faz-me bem pensar neles, alimentá-los, deslocar a minha energia para as coisas que quero que me acontecem. Não me apetece desperdiçá-la. É uma questão de opção.
A sua vida está nas suas mãos, é isso?
A vida de cada um de nós está nas nossas mãos. Não é só a minha, não sou uma privilegiada. As minhas amigas gostam muito de conversar comigo, pedir conselhos, porque recuso-me a entrar numa visão desgraçada das coisas.
Tem um grande ascendente sobre muitas pessoas. Quem é que tem ascendente sobre si?
A minha irmã. E a minha mãe. É engraçado, com o meu marido não acontece isso... É muito fácil eu comunicar com ele e ele entender-me. E respeitar-me na minha maneira de ver as coisas, porque as pessoas podem achar que sou fantasiosa.
Fantasiosa?
Porque quando toda a gente está à espera das desgraças e só vê os cacos, eu já estou a ver é o pedacinho que sobrou inteiro.
E a partir daí volta a construir o vaso.
Aquele bocadinho que ali está pode dar uma coisa a seguir. Então, deixem-me andar com o bocadinho...
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2006