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Anabela Mota Ribeiro

Luiz Felipe Scolari

07.07.14

Gostava de saber o que foi a sua vida antes dos quarenta anos...

Não fiz quarenta ainda... [risos]

 

O que se conhece de si, deriva do seu sucesso. Gostava de perceber onde radica a sua convicção, a sua determinação e o seu estilo.

Nasci no interior, no estado do Rio Grande do Sul, numa localidade pequena. Fiz os primeiros quatro anos numa fazenda – uma quinta, como vocês dizem aqui –, meu pai tinha lá criação de gado leiteiro. Depois fui morar na cidade de Passefundo, comecei a estudar e fui fazendo tudo o que criança do interior faz: jogava futebol, subia em árvore, nadava no rio, apanhava fruta nos vizinhos.

 

Tem irmãos?

Tenho duas irmãs. Uma mais velha, quatro anos, e uma abaixo de mim, quatro anos. No interior predominam certos preconceitos, certas coisas que são mantidas e que dão uma estabilidade e estrutura ao mundo. Se todas as cidades fossem capitais e não houvesse interior, muito da nossa moralidade ia por água abaixo.

 

A figura determinante do seu universo familiar era o seu pai?

O meu pai era um dos. A minha mãe era muito exigente e trabalhava idêntico ao meu pai. A gente teve uma estação rodoviária onde os ónibus paravam para receber os passageiros e seguir para o interior, mais interior ainda. Tínhamos lá snooker, bolão, sorveteria. O meu pai cuidava disto e daquilo, a minha mãe junto, nós ajudávamos no que havia a fazer.

 

Tem recordações da vida na fazenda?

Quase nada. Tínhamos duas famílias: a do meu pai e a do irmão do meu pai, com a esposa, uma menina e um pequenininho que nem eu. Com 60 vacas de leite, fazíamos leite e queijo, tínhamos alguma criação de animais. Onde hoje vou, principalmente fazenda ou locais em que tem bicho, me sinto bem, parece que tenho alguma identificação.

 

Foi para Porto Alegre estudar contabilidade. O futebol estava já definido como projecto?

Eu gostava de jogar futebol, mas obedeci aos meus pais. Fiz o curso de contabilidade, trabalhei na empresa [da família], sempre jogando futebol amador em clubes pequenos. Até que me decidi a jogar futebol, aos 18 anos. E aí meus pais autorizaram.

 

Foi preciso mostrar o quê?

Que fazia o que tinham determinado para mim, mas que também podia fazer o que gostava. Trabalhava de manhã na empresa, de tarde treinava, de noite ia à aula. O meu pai disse: «É isso que tu quer, então vai atrás». Os ganhos com o futebol eram bem superiores aos ganhos que tinha dentro da empresa.

 

Tinha uma vida de dinheiro contado?

Tinha.

 

E isso determinou escolhas e percursos?

Determinou muito. Eu buscava uma alternativa para ter alguma coisa mais. Continuei estudando e fiz a Faculdade de Educação Física.

 

O que era para si jogar futebol? Era a libertação?

Era satisfação. Eu adorava aquilo, gostava mesmo. E como ia progredindo, tudo aquilo era como uma bola de neve: estou sonhando, mudando de clube, recebendo um pouco mais, ganhando algum prestígio, da cidade média para uma cidade um pouco maior. Fui professor de Educação Física do Estado durante 13 anos, leccionava para jovens de 14 aos 18 anos.

 

Tudo isso com a consciência de que era muito talentoso?

Não, não, não. Eu não era talentoso. Eu era um jogador útil, de grupo. Tinha uma liderança, um comando sobre os outros companheiros, porque era meu isso.  

 

Era seu porquê?

Era meu porque já veio de berço. Ou porque em muitas coisas tive que tomar decisões.

 

Que mundo lhe era ensinado na escola? Que sonhos, então, alimentava?

Na escola te deixam sonhar porque te dão a oportunidade de jogar no team da escola e o team da escola vai jogar 20 quilómetros mais à frente. Esse era o sonho, esse era o mundo, não tinha outra coisa. Quando vim para Porto Alegre, com quinze anos, de ónibus, foi uma revolução.

 

Nunca foi desregrado?

Nunca. Fiz coisas, andei, saí, mas nunca, nunca, tive um probleminha qualquer. Nunca fumei...

 

Um cigarro sequer?

Nenhum. Em toda a minha vida.

 

Porquê?

Porque não gosto. Só depois, com o tempo, com 21, 22, 23 é que fui soltando um pouco. Ainda mantenho os mesmos métodos, continuo criando os meus filhos assim, dentro de um conceito bem reservado, bem fechado.

 

Tinha medo do seu pai?

Não, o meu pai era muito bom. A minha mãe é que era mais brava, mais exigente. O meu pai era quieto, falava muito pouco, era uma pessoa que ficava te olhando, de vez em quando falava. A minha mãe falava muito, andava muito atrás, cuidava, isso e aquilo, como é normal. Não tinha medo não, mas respeitava. Nunca chamei o meu pai, nem a minha mãe de tu.

 

Tinha medo de apanhar, de desiludir?

Apanhei algumas vezes, fiz algumas peraltices, mas medo não tinha. Naquela época tinha mais ou menos uma via só. Depois que comecei a jogar futebol, alarguei essa estrada, depois que fui para a escola, ainda mais. Fiz diversas coisas na minha vida que as pessoas nem imaginam. Fui director de um cursão, um pré-vestibular, com mil alunos. Tinha 27, 28 anos. Isso eu fazia à noite.

 

Quando é que aparecem as mulheres na sua vida?

Comecei a namorar a minha esposa aos 18 anos.

 

Do que é que gostou nela?

Gosto até hoje: de tudo. Tenho sete anos de namoro e 31 de casamento. Era também muito tradicional, muito cuidada pelos pais. Tive que andar atrás e depois fazer os pais dela acreditarem que eu era boa pessoa. Na primeira vez que vim a Porto Alegre, morei no Hotel dos pais dela, morei lá seis meses. O problema é que o jogador de futebol em 1967, era visto como um vagabundo, preguiçoso, aquele que ia jogar futebol porque não gostava de trabalhar, porque gostava da noite...

 

Ela também é uma mulher dominadora, como era a sua mãe?

Ela é forte, sim, é exigente. Ainda hoje tem um controlo sobre os meninos muito bom. Muito bom mesmo, estou sempre fora de casa e estou tranquilo. Ela fez biologia, depois fez uma pós-graduação. Abandonou a carreira quando me tornei técnico. «Vamos ter que enfrentar a vida agora assim: vamo’bora?», «Vamo’bora». Não podia sair do Brasil para leccionar no Kuwait ou na Arábia... O meu filho tem 20 anos e já morou em 22 ou 23 locais diferentes. A minha mulher está sempre com a mala pronta, não reclama. Mais uns quatro ou cinco anos e depois vamos pensar diferente.

 

Quando saiu do país pela primeira vez?

Deve ter sido aos 19, 20 anos. Do Brasil para o Urugai... Para nós é muito pouco, é perto, é divisa, quase. A primeira vez que eu atravessei a divisa do Brasil foi para jogar no Uruguai. Vim à Europa a primeira vez em 87, dirigindo o team do Grémio. Em 84 fui para a Arábia.

 

Como é que foi parar à Arábia?

Foi uma viagem épica. Eu estou queimando caminho... 81, Tuckson. 82, fui como treinador de juventude para a Coreia, Emiratos Árabes, Bareihn, Arábia Saudita. Essa foi a primeira grande viagem. Fizemos sete jogos e ganhámos sete jogos. Foi lá que conheci a pessoa que me levou para fora do Brasil, meu empresário, que ficou muito contente com a equipa e com a forma como eu trabalhava.

 

Quanto é que foi ganhar, posso saber?

Eu era um técnico começando...

 

Tinha 30 e tal anos.

Tinha. Fiz mais um ano no Brasil e depois ele me ligou: «Tem um clube assim, assim, assim, o salário é tanto, vai receber em adiantamento tanto. Daqui a 15 dias embarca e tem que trazer o preparador físico». (É o que está comigo até hoje, o Flávio Teixeira). «Fala inglês?», «Falo». Não sabia falar nada!


Como é que resolveu o assunto?

Estudei. Peguei os livros e passava duas, três horas olhando o «good morning», «how are you». Pelo menos ia saber qualquer coisinha. Era o primeiro grande contrato.  

 

A família foi consigo?

Não podia. Fui eu e o Murtosa. Fizemos as contas: um ano de Arábia Saudita dava sete anos de Brasil. Nós nem conhecidos éramos! Era maravilhoso.Os nossos colegas que estavam lá trabalhando, conhecidos, para eles um salário de um ano na Arábia dava 15, 18 anos de Brasil. A gente começou a trabalhar no início do campeonato. A equipa tinha sido décima colocada. Nos primeiros três meses ficámos em primeiro lugar. E o príncipe, contente, já fez um novo contrato!, aumentou o salário do primeiro ano, dobrou o salário do segundo ano. Três meses depois, chegaram as famílias.

 

Como é feita toda essa organização? Os filhos vão para uma escola inglesa, francesa?

O Leonardo, que é o mais velho, fez toda a alfabetização e o curso normal na escola americana.  Logo nas primeiras semanas já se tem a noção exacta de como é o grupo. Eles, naquela oportunidade, eram semi-profissionais. Trabalhavam e jogavam. Não eram obrigados a treinar. A gente tinha que ter muito jogo de cintura, ser muito maleável, fazer coisas alegres que dessem motivação para eles irem ao treinamento. Me lembro que o Murtosa, inteligentemente, marcava sempre treino com bola.


Aquilo não lhe dava grande gozo, pois não?

Dava! Eu tinha que ensinar tudo. Não sabiam porque é que chutando assim, a bola toma o efeito tal, porque é que usando o dedão do pé direito, esta parte do pé, tem mais domínio da bola. Dava um prazer..., um mês depois se via diferença.

 

O que foi fazer, quer para os países árabes, quer para o Japão, foi ensiná-los de raiz a jogar futebol.

De raiz. E questões tácticas, porquê isso, porquê aquilo, «experimenta», «faça».

 

“Comprou brigas”, como habitualmente faz, com as equipas desses países?

Comprei. Na escolha de jogadores para selecção do Kuwait, barrei o maior jogador da minha equipa.

 

Porquê?

Porque não queria treinar. Ele não queria fazer o que os outros faziam na parte física, vinha quando achava que era interessante para ele.

 

Decidiu castigá-lo...

Não jogou.

 

Nada o demove?

Não. Passado dois meses, esse mesmo atleta viu que a equipa tinha progredido, que havia ambiente, veio e disse: «Capitão, o senhor me aceita de volta?». Ora, de braços abertos! Foi um dos grandes jogadores para ganhar a copa do Emir. Não sou intransigente...

 

Se não tem um comportamento exemplar, mesmo que seja um jogador extraordinário, mesmo que seja um herói nacional como o Figo...

Não jogaria. O grande mérito do Figo é que ele é inteligente, muito inteligente, inteligentíssimo para trabalhar em grupo. O futebol é um grupo, não tem individualidade.  Há individualidade dentro do campo, para driblar, mas fora isso não tem.

 

Em que coisas não transige?

Não transijo quando trabalho em grupo e alguém não quer participar daquele grupo e não tem os mesmos objectivos. Se só tem objectivos pessoais, não aceito. Está provado que o colectivo é muito superior ao individual.

 

Devo confessar-lhe que não sou consumidora habitual de futebol. O Portugal-Espanha no Euro 2004 foi o primeiro jogo que vi num estádio (sem ser em trabalho).

E gostou, não é?

 

Gostei imenso.

E vai continuar indo aos jogos?

 

Só os de Portugal, e em momentos especiais. Todavia, acompanhei, como todos, as polémicas que o envolveram. Nomeadamente a do Romário e a do FC Porto, que são idênticas, aliás. Adora “comprar brigas”?

Não fui eu que comprei.

 

Confesse que tem um prazer imenso nessas brigas...

Eu só faço o meu trabalho.

 

Mas diga lá, diverte-se ou não com estas brigas?

Não gosto, tenho pavor. Não me conhece. Embora a minha imagem seja de durão, sou o mais alegre de toda a comissão técnica, o que faz mais brincadeiras com todo o mundo. Que sabor eu tenho em brigar com A ou com B? Se me bato para que exista um ambiente alegre e feliz...

 

Quer que lhe responda?

Responda.

 

Parece um teste que faz a si mesmo. Aposta. Sobe a parada quando não convoca um jogador como o Romário, com o desacordo de 170 milhões de brasileiros; e em Portugal faz braço de ferro com o mais poderoso dos clubes _ é evidente que não ia meter-se com fracos. Fez isto para ver confirmado o seu poder?

Não quero esse tipo de poder, nunca quis. Faço o esforço maior da minha vida para ter amizade e carinho... Sou o técnico da selecção que, contratado, tem que escolher os jogadores. Porque é que eu, técnico da selecção, contratado pela Federação, tenho que escolher os jogadores que o Afonso escolheu? É isso.

 

Não acho que tenha que escolher os jogadores que as outras pessoas escolhem, e até acho graça a essas brigas, à personagem que não tem medo nem pretende ser simpático.

Não adiantava parecer simpático e nem tinha a oportunidade de ser simpático. Só pude ser simpático, ter o grupo todo e ambiente de trabalho, quando tive 30 dias. Em dois dias, não se pode ser simpático, tem que se tomar decisões, organizar, dar entrevistas, manter a media um pouco longe. Este tipo de entrevista que lhe dou aqui, dou agora, porque agora não tem jogo. Se fosse outro dia, estaria sempre na retranca. Eu tenho a condição de escolher de acordo com os meus princípios, mas a maioria das pessoas entende que pode opinar por mim. No dia em que pessoas entenderem que fui eleito para escolher os jogadores e respeitarem a minha condição de acertar ou errar, estão me dando a possibilidade de fazer o meu trabalho. As coisas foram feitas com a imprensa dando um valor terrível a uma ou outra colocação. Gritam, esperneiam, xingam, dizem que sou feio. Faço o que tenho para fazer para a selecção, acabou o assunto.

 

A sua resposta é o seu trabalho?

A resposta é resultado, é isso mesmo. A resposta é o resultado no campo.

 

Fica furioso quando folheia jornais, com o que as pessoas falam?

Agora nem tanto. Quando comecei a ver que tinham muitos interesses jornalísticos, porque tem três jornais desportivos diários. Quando comecei a ver isso tudo, pensei: «Não vou cair nesse negócio de novo. Vou ficar aqui longe, quieto».

 

Sabe bem em quem confia?

Sei.

 

Quando se tem poder acontece ter em volta uma corte de bajuladores. Consegue perceber rapidamente com que intenção uma pessoa se aproxima de si?

Tenho tido poucos erros nas avaliações. Quando as pessoas se aproximam, a primeira vez ou a segunda vez, já digo se é por interesse, se é para bajular, se querem alguma coisa ou se estão rodeando para o futuro...

 

Com um grupo de jogadores é a mesma coisa?

É a mesma coisa. Dá para a gente acertar, no mínimo, 75, 80 por cento.

 

O que é que o faz ficar inseguro?

São as actuações ou as reacções de um grupo. Ou alguém me mostrando que não está funcionando. Se não está funcionando, quem está comandando está errado, não são eles só, alguém está passando uma estratégia que não está dando certo.

 

Dá ordens com os olhos?

Dou.

 

É que tem um olhar muito penetrante. É fácil pensar que é com os olhos que dá as ordens.

Mostro com os olhos muitas vezes o meu descontentamento. Assim como mostro a minha alegria. Ali mostro mais porque italiano fala com as mãos, e eu dou de ascendência italiana. Mas com os olhos digo muito. Quando quero mandar um recado não falando, mando recado falando com os olhos. Quando se fala com os olhos com outra pessoa, quando se diz e encara, não se mente. Se mentir, é porque é mestre. A outra pessoa fica olhando para si e você sabe. Eu vejo com o meu filho de 13 anos, quando ele diz uma coisa e dá uma desviadinha do olhar...

 

Apanhado.

Não vou discutir na hora, mas um dia, dois depois, vem o assunto. Acho que é um pouco da herança lá da família, da forma como vim lá de pequeno.

 

Quais foram as grandes dores da sua vida?

A perda do meu pai quando eu estava terminando de jogar e ia começar como técnico. Ele não me viu técnico, ele me viu um jogador médio, pequeno.

 

Lamenta muito que ele não tenha podido vê-lo no seu melhor.

Lamento, lamento. Essa foi uma das coisas que sempre imaginei. Ainda hoje, na hora das grandes decisões, me mentalizo que meu pai está vendo. Outra grande pena minha foi o meu sogro, que era um torcedor fanático do meu team; fui treinar esse team dois meses depois do falecimento dele.

 

A sua mãe, que agora tem 81 anos, vê os jogos das suas equipas? Orgulha-se?

Vê. Há uns tempos, ela se sentiu mal. A minha irmã levou ela ao médico para fazer uns exames; não tem nada, está inteirinha da silva. Mas tem orgulho, sim. Chora...

 

A si, o que é que o faz chorar?

Qualquer coisa. Um momento de alegria me faz chorar, ou de tristeza. Sou muito emotivo. E isso às vezes também é um defeito.

 

Quando é que o dinheiro deixou de ser fundamental na sua vida? Há um primeiro período em que o seu sonho era ganhar melhor, aforrar para ter uma família, etc. Em que momento o gozo e objectivo passam a ser outra coisa que não o dinheiro?

Desde que tenho uma estabilidade, que não estou preocupado se vou perder um bocadinho aqui. Faz uns sete, oito anos.

 

Até aí era o dinheiro o determinante na sua vida?

Trabalhava para conseguir mais e investia mais e guardava.

 

Tem fama de sovina.

Só gasto em coisas que tenho que gastar.

 

Gasta em quê?

Não vai me ver sair daqui para ir ali na esquina tomar uma bebida qualquer. Eu não gosto, o que é que vou lá fazer? Discoteca? Não gosto, não vou.

 

Está bem, mas se chega a um restaurante não olha para a lista dos preços.

Se vou comprar uma roupa, não vejo o preço. Diferente da minha mulher. Minha mulher vê preço, discute. Eu quero aquilo ali, vou ali e tenho o defeito de não olhar duas vezes.

 

Em que é que gasta o dinheiro? Quais são os seus luxos?

Gosto de viajar, gosto de sair com a família.

 

E a casa com piscina? E o carro potente?

Nada, isso nada. Tive um carro em1987, em 2003 vendi, porque o meu filho começou a xingar e tive que trocar. Fiquei 16 anos com um carro. Todo o mundo bravo comigo! Nem 100 mil quilómetros tinha, não tinha trocado nem uma peça, porque é que ia querer um carro zero?

 

Se não gasta, deve estar rico.

Estou bem, estou bem.

 

Podia deixar de trabalhar?

Podia.

 

Continuaria a ter uma vida muito confortável.

Muito boa. O que eu queria fazer quando comecei era melhorar, progredir, não nesse nível que estou hoje...

 

Com este não chegava a sonhar...

Não. Agora quero deixar para os meus filhos e que os meus filhos tenham condições de deixar para os filhos deles. Agora é outra etapa da vida, agora é gerenciar bem as coisas.

 

Como é que imagina a sua vida no futuro?

Eu quero ter uma cancha de ténis, para jogar ténis na minha casa. Tenho lá meus amigos para jogar ténis.


De que é que fala com os seus amigos?

Bobagem. Contar história, brincar. Temos lugar para churrasco, fazemos churrasco, jogamos ténis. De manhã, faço tudo o que tenho que fazer em termos de cuidado físico, caminhada; de tarde, a empresa. Tenho uma construtora, no Brasil.

 

Essa será a sua vida daqui a cinco anos?

Cinco, seis anos.

 

Quer voltar para o Brasil, a sua terra, e quer que a sua vida seja essa.

Vai ser essa. Vou para Porto Alegre. Quero estar envolvido com o futebol, mas não como técnico. Ainda ontem disse para minha mulher: «Vou até aos 80 e três, depois eu deixo de te incomodar».

 

Tem apenas 56 anos. Não estou a vê-lo a dar caminhadas de manhã, a cuidar da empresa à tarde durante 30 anos.

Não vai ter 30 não, só 20, é aos 80 e três. Eu tenho desafios, tenho uma construtora, três ou quatro edifícios com apart-hotéis, tenho um monte de coisas. Vou estar envolvido, vou para esse lado.

 

Dê-me momentos de felicidade da sua vida.

Inesquecíveis? Casamento. Filhos, embora não vi nenhum nascer.

 

Não teve coragem?

Não estava em casa. Quando nasceu o segundo estava na Arábia. Quando nasceu o primeiro estava jogando uma partida do campeonato brasileiro. Chego em casa, depois de uma viagem, e o meu filho menor é o primeiro a vir, me abraçar e diz assim: «Hoje tu vai dormir comigo, pai». Esses momentos são aqueles que se guardam. O que é o futebol, recorda-se... São esses os momentos finais que ficam marcados.

 

Como é que se chamam os seus filhos?

Um é Leonardo, tem 20, e o Fabrício tem 13. O Leonardo estuda na Faculdade, na Lusíada, e o Fabrício na Escola Americana.


Determina a vida deles como a sua foi determinada?

Não. O Leonardo já está bem, está cuidado. De vez em quando dou uma ligadela às duas horas da manhã para ver se está tudo em ordem. Dou liberdade e dou condições. Esse é muito regrado, metódico. O outro já é mais solto.

 

É mais parecido consigo?

É. Tem que manter um cuidado e tem que manter rédea firme e segurar, não dá para dar chance.

 

Tem medo que ele se perca?

Não vai se perder. Tenho a certeza. Mas... [Bate na mesa] tenho cuidado.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004