Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Fernando Nobre

03.05.15

Quando Fernando Nobre fala como candidato presidencial, diz coisas deste tipo. “Sou um homem que se preocupa com os mais desfavorecidos. Ainda estudante, trabalhei numa associação de crianças autistas. Ofereci-me sempre como voluntário, como servidor de causas. Sou particularmente atento à situação dos excluídos. Todos eles. Choca-me que na Lousada, onde temos um dos nossos centros, esteja uma senhora viúva de um trabalhador rural que tem uma reforma de 62 euros por mês. Choca-me, em contraponto, que alguém possa ser presidente da CGD dois anos e saia com uma reforma vitalícia de 15 mil euros ou mais por mês.”

Quando Fernando Nobre fala como homem que nasceu em Angola (ele sublinha que foi numa província ultramarina portuguesa), diz coisas assim: “Não rejeito nenhuma das minhas raízes, mas há um pilar dominante no meu ser, que é ser português. Tenho muito orgulho em ser português. Tenho mesmo orgulho em ser português. Respeito e amo os quase nove séculos da história de Portugal.”

Se não tivesse sido médico teria sido historiador. Fez-se médico. Os portugueses conheciam-no como o fundador da AMI, o médico responsável por missões no mundo inteiro, que vive no fio da navalha, operando sob tendas, em situações de catástrofe. Os portugueses conhecem-no agora na qualidade de candidato à presidência da República. Uma candidatura independente, com sede nacional em Lisboa, no centro da cidade.

Foi lá que nos encontrámos numa tarde da semana passada. O mobiliário ainda estava para chegar. Os voluntários apareciam para saber como participar. Nobre, o candidato, ou seria o homem?, irradiava energia e boa disposição.

Falou com bonomia da família, repetiu slogans, que não o são, ainda, mas que são linhas essenciais do seu posicionamento político: contra a indiferença, com causas. Veste fato e gravata, mas não deixa de dizer que em missão usa jeans e tshirt. Lá fora está de ananáses.

Este Verão, o seu combate será outro. Tendemos a achar que é excessivo quando diz, por exemplo, que prefere morrer a abandonar o barco. Será? Poderá ele, para quem um aperto de mão, a palavra de honra, vale o mesmo que um documento escrito, dar o dito pelo não dito? 

Nas suas palavras, é um intempestivo. Dá-lhe para fundar organizações humanitárias e para se candidatar à presidência da República.  

 

Fale-me do seu pai, com quem aprendeu a ser português.

O meu pai pertence às chamadas famílias tradicionais de Douro e Minho. Parte para África com o meu avô aos 13 anos. O meu avô, que era militar, decide ficar por África. Morreu em Lourenço Marques, em 1972. O meu pai fica em Angola. Era um homem muito empreendedor e severo. Em todo o caso, muito menos severo do que tinha sido o pai dele.

 

Uma história que ilustre a severidade do seu avô.

Um dia, estavam à mesa os três filhos (o meu pai era o mais velho de dois rapazes, considerado o filho varão, e havia uma menina). A minha tia Ivone com 21 anos, já maior, levantou-se da mesa sem pedir autorização ao pai. O meu avô não lhe disse nada, nem uma, nem duas, nem três. Pegou no jarro de vinho que estava na mesa e atirou-lho directamente à cabeça. A sorte foi que a minha tia se esquivou e o jarro foi partir-se contra a porta da sala de jantar.

 

Conheceu gestos excessivos ao seu pai? Tinha a mesma têmpera do seu avô?

Nós somos cinco, três rapazes e duas meninas. Crianças, um dia, em Luanda, onde vivíamos, e onde nasci, tirámos os sapatos e as meias; estávamos em cima de uma árvore quando o meu pai passou, de jipe. Ele tinha-nos avisado de que não nos queria ver descalços pelas ruas de Luanda. Disse-nos apenas isto: “Subam”. Pela cara dele, percebemos que não ia ser uma festa. Levou-nos directamente para o escritório e foi um jogo de cinturada! [riso]. Era também extremamente generoso. Nunca mediu os gastos com os filhos. Não nos quis dar uma moto, porque entendia que era perigoso, mas ofereceu-nos um carro. Quando tínhamos idade para ir às boîtes, já no Congo, não era preciso pedir-lhe dinheiro. Metia a mão no bolso, tirava um maço de notas, e dava algumas a cada um dos filhos.

 

Em que é que sai ao seu pai?

Sou explosivo, mas não rancoroso. Muitas vezes tivemos choques os dois, porque éramos parecidos. Mas dez minutos depois, dava-lhe uma palmadinha no ombro, “Pronto, já passou”.

 

O gesto do seu avô e as cinturadas do seu pai não eram raras no Portugal de então – os castigos físicos eram comuns. Mas são coisas que não esperamos ver numa família com os recursos que a vossa tinha.

Alguns gestos ficam-nos. Mas eram raros. Depois dos dez anos, não me lembro de o meu pai me ter levantado a mão, nem aos meus irmãos.

O meu avô e a minha avó eram primos direitos: as mães eram irmãs. Só o vi uma vez. Deixou a sua mulher e foi com a costureira desta para Moçambique. Vi-o quando o meu pai foi a Moçambique em negócios e no regresso trouxe o pai. Estávamos no aeroporto à espera do meu pai, o meu avô aperta a mão aos cinco netos e continua a sua viagem para a Metrópole.

 

É um episódio de romance…, deixar a mulher e trocá-la pela costureira. Inesperado num militar.

É. Ainda mais porque tenho postais trocados entre eles. A minha avó escrevia para o seu primo (na altura a fazer a tropa em Bragança) postais muito afectuosos. Quando se lê aquela correspondência não se percebe bem como é que aquele amor, que parecia tão grande, afinal acaba com ele a partir com a costureira, deixando tudo. O meu avô não assistiu ao casamento do filho. Opôs-se formalmente a que o meu pai casasse com a minha mãe. Inclusive apontou-lhe uma pistola à cabeça. O meu pai esperou por ter 21 anos, saiu de casa, e casou. A minha mãe tinha mais três anos do que o meu pai.

 

Por que razão uma oposição tão feroz?

A minha mãe tinha ascendência francesa, holandesa, brasileira e de Cabinda. A minha mãe tinha uma bisavó negra. Eu tenho uma bisavó negra. O meu avô não aceitava que o meu pai, o seu filho primogénito, casasse com uma senhora que tinha um estigma racial, mesmo que distante. A minha mãe, no bilhete de identidade, já está como branca.  

 

Tudo isto teve peso significativamente na sua educação, e por consequência em quem é hoje, na pessoa que se fez?

Sem o saber, quando nasci, já era portador de uma série de genes, de culturas, de raças. Nasci em Luanda, então província ultramarina portuguesa – gosto de o vincar bem. Luanda deixou de ser colónia em 1951, ano do meu nascimento. Em casa dos meus pais, a nossa educação foi sempre à portuguesa, à antiga. No Natal, nas festas, comíamos bacalhau, grão. Não houve uma componente africana na nossa educação, nem na linguagem, nem na comida, nem nas tradições.

 

Canções infantis, eram em que língua? Cantavam-lhas?

Sim, a minha mãe tinha uma voz muito doce. Eram canções portuguesas. O pai da minha mãe era português, da minha avó materna é que vem a grande mistura. Falava connosco sempre em português, em casa só falávamos português. Quando nos mudámos de Angola para o Congo, aprendemos com facilidade o francês. Na árvore genealógica da minha mãe havia famílias holandesas, protestantes, que tinham fugido de França para a Holanda na época do Luís XIV. Os huguenotes, ou se convertiam ao catolicismo, ou as mulheres iam para os conventos e os maridos para as galeras. A minha família fugiu para a Holanda. Ainda tenho primos em segundo grau em diferentes cidades holandesas.

 

Apesar de não ter aprendido a falar português no Douro, aprendeu a falar a língua com um duriense. Daí o sotaque?

Sem dúvida. Reconheço expressões, um modo de falar [que é o do meu pai]. O meu pai nunca nos disse exactamente de onde era. Só nas minhas pesquisas, e com a ajuda de um genealogista, encontrei o que procurava. Ainda há poucos anos jantei com um parente que não sabia que era meu parente. Isto porque o meu avô, quando sai de Portugal, corta radicalmente com toda a família, não passa nada ao meu pai, o meu pai não nos passa nada a nós. A nossa família sempre foi: o nosso pai, a nossa mãe, os nossos irmãos. Uma família muito pequena. Só o ano passado, aos 58 anos, um desses meus primos veio dizer-me quem era a nossa família cá. Mas os primos fazem-se na infância, a jogar à bola, a andar à pedrada. É tarde para se criar intimidades.

 

O sangue pode não ser o mais forte.

Não é. Embora, quando vou ao Minho e Douro, e sei que está lá o jazigo da família, e me mostram as casas que foram da família, sinto que ali estão as minhas raízes. Uma senhora, de cara enrugada, disse-me: “Ah, menino, antigamente, a sua família, nem um dia a cavalo [chegava] para ver as terras.” Respondi: “Hoje, nem um metro quadrado tenho cá!”. Mas sou um ser miscigenado e multifacetado. Todos nós, se procurarmos bem, somos descendentes de um rei, um ladrão, um judeu, um negro. Sempre fui um…, não direi sem pátria, mas sou de famílias de origens diversas. Nasço em Luanda, daqui vou para o Congo, do Congo para a Bélgica, da Bélgica regresso a Portugal – faço questão na palavra regressar. Fui deixando sempre um pouco de mim próprio nos sítios por onde passei.

 

Importava-lhe ser uma espécie de sem pátria? Era uma questão até encontrar uma base, o seu lugar?

Importava. Daí ter tido a necessidade de procurar as minhas raízes. Procurei-as cá, na Holanda, em França, em Cabinda. A primeira vez que vim a Portugal continental foi no Verão de 75. Quando se deu o 25 de Abril tinha responsabilidades na faculdade [na Bélgica] e não pude vir naquele ano. No ano seguinte, apanhei o comboio Bruxelas-Paris-Lisboa e quando o comboio passou a fronteira de Espanha para Portugal, estava com uma ânsia tremenda, a olhar pela janela, para ver Portugal, lembrando-me de tudo o que o meu pai me contava. Nunca me naturalizei belga.

 

Porquê?

Vivi 20 anos em Bruxelas, a minha ex-mulher é belga, os meus filhos mais velhos nasceram na Bélgica, era assistente da faculdade de medicina, era cirurgião dos hospitais universitários. Reunia todas as condições, mas nunca o fiz. Sabia que ia magoar o meu pai se deixasse de ser português. A portugalidade é algo que está profundamente enraizado em mim.

 

Mais atrás: porque foram de Angola para o Congo?

Mudámo-nos para Léopoldville em 1963, por causa da guerra colonial em Angola. Três anos depois, iniciou-se no Congo uma guerra civil, eu já frequentava o liceu e o meu pai enviou-me para Bruxelas para poder continuar os estudos. O meu pai ficou no Congo (Zaire, como viria a chamar-se). Parou de trabalhar, regressou a Portugal, e aqui morreu, com 60 anos. Dia 2 de Maio de 1986. Morreu de doença infecciosa contraída em África. A minha mãe sobreviveu-lhe 19 anos. Estão dos dois numa campa perpétua - consegui que fosse perpétua – no cemitério de Carnaxide.

 

Vai visitá-los?

Vou, uma vez por mês, de dois em dois meses. Mas não preciso de ir à campa para falar com eles. Moro na linha do Estoril, sempre que passo entre Linda-a-Velha e Carnaxide, apesar dos tapumes que agora puseram e que tornam difícil ver o cemitério, olho para lá.  

 

Alguma vez passaria pela cabeça do seu pai que se candidataria à presidência da República?

Nunca. Não sei se estará satisfeito ou não… O meu pai via-me era como um catedrático de cirurgia. Esse seria o sonho dele. Quando comecei a fazer missões humanitárias com os Médicos sem Fronteiras, escreveu-me cartas, que guardo religiosamente. Numa dizia: “O meu filho já mostrou não ter medo. Agora chegou o momento de ter juízo, dedicar-se ao seu consultório, à sua mulher e filhos!”. [riso] Entretanto divorciei-me e voltei a casar, com uma mulher portuguesa, e tenho mais duas filhas.

Mas eu não tive juízo. A pouco e pouco, o que era a auto-estrada da minha vida (a carreira universitária em Bruxelas), foi-se fechando, fui eu que a fui fechando; e o carreirinho, que eram as missões humanitárias, foi-se alargando, foi-se alargando, e ocupou a minha vida.

 

Quando é que lhe passou pela cabeça a si candidatar-se?

Até há oito meses, se me perguntasse, sob palavra de honra, se vislumbrava candidatar-me à presidência, diria que não. Palavra de honra, para mim, é sagrada. Há 31 anos que estou num campo que me enche as medidas. Sem me gabar, penso ser o perito número um de Portugal em acção humanitária. Se não tenho recebido incontáveis mensagens de amigos do Porto, de Lisboa, de Viseu, da Figueira da Foz, de Coimbra, a dizer: “Fernando, prepara-te, para o ano lançamos-te para Belém”. “Fernando, já pensaste que podias ser o próximo PR?”…

 

Como é que decidiu?

A situação económica e social, conheço-a. A AMI, que eu fundei, faz 26 anos este ano, abriu 14 centros sociais espalhados pelo país nos últimos 15 anos. Pensei que talvez se justificasse, neste contexto em que vivemos, que um cidadão se levantasse e dissesse: “Vou candidatar-me”. Depois de três meses de reflexão, com uma ida ao Senegal, sem nunca parar as minhas andanças (desde que regressei a Portugal estou uma semana fora, uma semana em Portugal), fui falando com muitas individualidades, de todas as áreas políticas. Fiz a todos a mesma pergunta: se achavam estapafúrdio que um cidadão com o meu percurso de vida se candidatasse. Não houve um que me dissesse: “Não, não faça isso, você não tem estofo nem perfil”. Todos me avisaram: “Tenha em conta duas dificuldades: a financeira e a inexistência de uma máquina no terreno.” Deixei claro que a máquina da minha fundação [AMI] não seria envolvida.

 

Foi sua intenção montar uma máquina paralela, independente dos partidos?

Foi.

 

A candidatura é uma iniciativa do cidadão comum que viveu sempre à margem dos partidos? É uma resposta da sociedade civil à situação que vivemos?

Embora a Constituição diga que uma candidatura à presidência da República é um gesto pessoal, todos sabemos que os candidatos se candidatam no pressuposto de que terão o apoio de uma máquina partidária. Recolher 7500 assinaturas, por exemplo, não é fácil. Por outro lado, existe a questão financeira. Uma candidatura como a minha não pode receber apoio financeiro dos partidos. Tomei nota dessas debilidades para que todos me alertaram.

 

Não se atemorizou com a ideia de que era preciso arranjar um milhão de euros para fazer a campanha?

Sabe, sempre fui muito temerário. Em 1982 vim de carro de Lisboa para Bruxelas para passar férias com a família, e 20 minutos depois de chegar recebi um telefonema de Paris; perguntavam-se isto: “Está disposto a partir para Beirute imediatamente? Precisamos de um cirurgião nas próximas 48 horas”. O sector palestiniano de Beirute estava cercado por terra, por mar, pelas tropas do general [Ariel] Sharon e pelo sector cristão libanês, falangista. Eu tinha acabado de pousar as malas depois de 2200 km de carro. Olhei para os miúdos. O rapaz tinha dois anos, a menina três meses. Instintivamente disse: “Vou”. Fiquei lá dois meses sob bombardeamento intenso. Costumo dizer que entre o herói e o cobarde a diferença é muito pequena.

 

O que é que faz um herói? E quem é o cobarde?

O herói é o que instintivamente se põe a correr para a frente. O cobarde é o que instintivamente corre para trás. Se o herói pensasse cinco segundos, provavelmente também se punha a correr para trás. Ao telefone, quando digo: “Vou”, se tivesse demorado um minuto a pensar, teria respondido: “Não vou”.

A mesma coisa se passou com a candidatura à presidência da República. Quando alguém, como eu, pela primeira vez tem pela frente um combate político, quando se candidata, não tem uma visão do trabalho titânico que o espera. Se tivesse, não sei se não teria sido outra a decisão. Mas uma vez a decisão tomada e assumida, a partir daí não há marcha atrás. Passa a ser uma questão de dignidade e de honra pessoal, e essa não é negociável. Não posso dar o dito pelo não dito. Prefiro morrer.

 

O que está a dizer, no fundo, é que a candidatura é para levar até ao fim. Como é que lida com o seu falhanço e com o erro?

Assumo-os. Digo aos meus colaboradores que estão nesta caminhada comigo: se vencer, a vitória será partilhada por todos; se perder, a culpa será minha, exclusivamente minha. Não sou deus nenhum. Posso falhar. No meu percurso, ter passado por um divórcio, é uma demonstração de que não sou perfeito. Tento não repetir os meus erros. Tento retirar lições das minhas falhas. Não preciso que ninguém me julgue. Sou o pior juiz de mim próprio.

 

Foi sempre responsável, mesmo novo?

Fui. O meu pai mandou-me para a Bélgica tinha eu 15 anos. Vivi sozinho a partir dessa altura. Os professores sabiam que era responsável por mim próprio. Nos testes do liceu nunca imitei a assinatura do meu pai.

 

Como é que era em criança?

Ah, era muito intempestivo. Sou o quarto de cinco irmãos. Vou contar-lhe duas histórias. Quando me enervava à mesa, e quando o meu pai não estava (quando estava, bastava levantar um quarto de olho para ficarmos em sentido), os meus irmãos sabiam que a primeira coisa que tinham que fazer era tirar os talheres de cima da mesa. O primeiro talher que apanhava, atirava-o logo… (Não vão acreditar que não sou violento, depois disto, mas se é uma entrevista honesta e frontal, tenho de contar.) Um dia, em Luanda, estava a gravar numa árvore as minhas iniciais e um primo meu, a uns 30 metros, gozava comigo. De repente atirei-lhe o canivete. Com tão pouca sorte minha – que não sou um atirador de facas – o canivete foi de lâmina direitinho ao meu primo, entrou um centímetro na massa lombar. Por isso, era intempestivo. Agora, não, sou sensato, ponderado.

 

Fazia isso com orgulho?

Não, de maneira nenhuma. A minha mãe dizia que era muito bem comportado.

 

É o que podemos supor hoje, olhando para si.

Sempre fui um aluno exemplar, de andar com a fitinha e a medalha de melhor aluno do ano [no peito]. Quando o meu pai me envia para a Bélgica, comecei por ficar num internato. Imagine um rapaz de 15 anos, que sempre viveu em África, livre como um passarinho, num internato… Tudo era regrado, escovava-se os dentes à mesma hora, engraxava-se os sapatos à mesma hora. Estudo, refeição, tudo direitinho. Fui falar com o director: “Ou chama a família amiga do meu pai, ou fujo”. Tenho um dia de vida no internato. Vieram buscar-me. À saída, o director do colégio disse-me: “O meu jovem amigo é muito intempestivo. Isso há-de pregar-lhe partidas na vida”.

 

Tinha razão?

Por outro lado, se eu não fosse intempestivo, a AMI não existia e eu não estava em Portugal.

 

Como é que veio para cá?

Em 1981, depois de atravessar todo o Darfur, na fronteira com o Chade, eu chefiava a equipa dos Médicos sem Fronteiras enquanto cirurgião. Éramos acompanhados por um jornalista da revista francesa L’Express e um fotógrafo da agência Sigma. Dois coronéis que estavam a filtrar aquele posto fronteiriço, entenderam que os jornalistas não entravam. Há quatro dias que andava com eles a dormir nas areias do deserto, a comer poeira. Não me passou pela cabeça, depois daquela aventura comum, fazer-lhes um adeusinho. E sabia que do outro lado precisavam de mim enquanto cirurgião. Intempestivamente disse: “Ou passam todos ou não passa nenhum”. Fui firme. Foi toda uma tarde de tensão. Entrámos todos. Essa equipa publicou uma reportagem e talvez como sinal de agradecimento – não sei, nunca mais os revi – publicou uma fotografia minha a operar debaixo de uma tenda, com um parágrafo a dizer: “Fernando, jovem cirurgião de origem portuguesa…”.

Essa revista é apanhada aqui pelo José Manuel Barata Feyo, então director da Grande Reportagem. Alerta para a existência de um médico português que anda aí a fazer coisas diferentes. Foi isso que os fez ir ter comigo. Foi isso que me levou à criação da AMI e me trouxe a Portugal.

 

Tudo teria sido diferente se naquele posto fronteiriço não se tivesse batido pelos jornalistas?

Sim. A minha vida teria sido outra.

 

Mas o que essa história revela, também, é que se pode deixar arrebatar.

Sou um homem de paixões e convicções profundas. Sou capaz de ir até ao fim de um combate.

 

Com quem é que aprendeu a bater o pé até ao fim?

Costumo dizer que talvez seja a ventania nos Nobre de Távora… [riso] Um antepassado meu, irmão do meu quinto avô, era um gigante, de uma força hercúlea. Um dia chega a casa do irmão e vê um senhor que não devia lá estar com a sua cunhada… Embora frade, atirou o outro pela janela, que foi bater com a cabeça num penedo e morreu logo ali. O frade foi condenado ao desterro, em África. O barco em que seguia, depois de passar costas marroquinas, foi assaltado por piratas. Dá uma fúria ao padre António Nobre, que, não sei como, arranjou uma espada, matou o capitão e aprisionou o barco dos piratas. Regressou a Lisboa e perante tal feito é levado à corte de D. José. É-lhe perdoado o homicídio e permitido regressar às terras de Távora. (Tudo isto está escrito na enciclopédia de Pinho Leal [historiador], não invento nada!)

 

Dá-lhes uma ventania, portanto…

Mas repito: não somos rancorosos e somos capazes de pedir perdão.

 

Como é que se fez corajoso? Aprende-se a ser corajoso? Porque é que é daqueles que instintivamente corre para a frente?

Não sei. Talvez seja o desejo de defender o mais fraco. Acho que isso está nos genes. Quando assisto a seminários de empreendedorismo, costumo dizer: “Não é empreendedor quem quer”. Para se ser empreendedor é preciso ter uma ideia e assumir-se o risco. Talvez isso tenha uma componente genética. Tem de haver algo em nós que nos impele a empreender. Cada um de nós tem marcas genéticas, um dia descobrir-se-ão quais são. Saber-se-á que o marcador tal leva a isto, como hoje se sabe que as pessoas que vivem mais de 95 anos têm marcadores de longevidade que outras não têm; a menos que morram de acidente, estão destinadas a viver muito. Quando se decifrar todo o código genético do ser humano, descobrir-se-á quais são os marcadores que fazem com que aquele se lance para a frente.

 

Independentemente dos marcadores genéticos, consegue perceber porque é que fez a carreira académica e hospitalar até determinada fase, e depois desistiu disso e permitiu que o atalho invadisse a auto-estrada?

Médico, sou o primeiro da minha família. O meu pai era economista, gestor, empresário. A minha mãe contava que desde pequenino dizia que queria ser médico. Quando comecei a ter noção das coisas, dizia que queria ser médico para fazer como o Albert Schweitzer. Era professor de teologia em Estrasburgo, primo do Jean Paul Sartre, e aos 38 anos formou-se em Medicina, foi para o que é hoje o Gabão, lá criou a sua obra, veio a ser prémio Nobel da Paz [em 1952]. Foi o médico que quis imitar. Sempre soube que seria ou professor universitário ou médico no mato. Fui visitar a obra do Schweitzer, conheci uma enfermeira holandesa de 97 anos que tinha trabalhado com ele.

 

Ser médico no mato tinha que ver com imagens mnemónicas da sua infância, da África onde nasceu e viveu?

Tinha. Vim à Europa pela primeira vez com 15 anos. Até então, tive uma vida de puro africanista.

 

Em África, tinha imagens do mato, da pobreza?

Tenho imagens da pobreza, tenho. Todas as nossas mães são santas, mas a minha era uma santa. Sempre vi a minha mãe a recolher miúdos de rua, levá-los para nossa casa, dar-lhes banho, vestir-lhes a nossa roupa, e depois colocá-los em colégios jesuítas. Isso marcou-me, e a todos os meus irmãos, indiscutivelmente.

 

Verdadeiramente, o que é que o fez ficar em Portugal?

A primeira vez que vim, apaixonei-me pela terra onde nasceu o meu pai e de cuja nacionalidade eu era portador. Encontrei alguém que me mostrou Óbidos, Estremoz, Sintra, Lisboa, Portugal. Mas tudo apontava para que a minha vida fosse na Bélgica. Vim viver para Portugal quando fundei a AMI. Também é verdade que as escolhas têm muito a ver com os afectos. Conheci a minha segunda mulher, aqui estou. Foi há 18 anos, a nossa filha mais velha tem 17. Ela é uma portuguesa de gema e corrige-me muito. Usava muitos galicismos; entre os 12 e os 33 anos estudei em francês.

 

Como é que conheceu a sua mulher?

Ela foi das primeiras pessoas a entrar na AMI. A minha irmã, que a conhecia, apresentou-ma: “É a Luísa Nemésio, neta do Vitorino Nemésio”. Eu respondo: “Quem é o Vitorino Nemésio?” [gargalhada] Eu conhecia era os autores francófonos. Ela ofereceu-me um livro do avô com uma dedicatória; foi o Mau Tempo no Canal. Devo imenso à Luísa. Posso dizer que ela esteve 100% contra a decisão de me candidatar.

 

Porquê?

As mulheres são mais sábias do que os homens. Dizia-me: “Sempre tiveste uma vida agitada, muito ausente de casa, e vai ser pior. E se sempre tiveste reconhecimentos pelo país fora…”

 

É verdade: vemos a sua página on line e percebemos que está cheio de distinções e condecorações.

“Vais passar de bestial a besta num segundo. Vais ser insultado. Vais entrar num combate que nunca foi o teu. Acreditas que é por imperativo de consciência que tens de o fazer, mas muitos não o vão entender assim. Vais ser contra o sistema e o sistema vai-te triturar”. Mas eu conheço a realidade portuguesa. Conheço Portugal e Ilhas, conduzo mais de 50 mil quilómetros por ano e não tenho chauffeur. Até agora, eu era o cidadão português que acorria às catástrofes do mundo, solidário, preocupado com os desfavorecidos. Respondi à minha mulher: “De duas, uma: ou me ergo agora e me bato, e sei que posso ser trucidado nesse combate, ou não abro mais a boca. Tenho de ser coerente comigo próprio. Eu que lutei tanto contra as injustiças, assisto quando dizem que estamos à beira do abismo, da ruptura, numa situação trágica, sem tentar dar um contributo?”. A minha mulher levou dois meses a digerir a minha decisão.

 

Pensa frequentemente nas palavras da sua mulher? Quero dizer: que pode ser triturado, insultado, que o respeito que mereceu uma vida inteira pode ser maculado?

Reconheço isso. Os insultos começaram de imediato. Que iria aproveitar a estrutura da AMI para minha promoção pessoal. Circularam emails dizendo que sou alcoólico, xenófobo. Hão-de circular outros, tudo vale. Por aí nunca irei, não foi essa a educação que recebi. Considero um insulto infame pensar que alguém, fosse ele quem fosse, me pudesse empurrar…

 

Acusam-no de estar a ser instrumentalizado por Mário Soares – é disso que estamos a falar?

Sim. Ainda esta semana saiu numa revista que não me livro da fama de ser um cavalo de Tróia. Alguém que me conheça minimamente sabe que não sou instrumentalizável. Não há no planeta ser humano com força suficiente para me empurrar a fazer o que não quero. Há uma senhora do grupo de Alegre que, não me esqueço, quando houve o Tsunami, onde fizemos uma intervenção ímpar – ainda em Março fui ao Sri Lanka inaugurar um centro de 3000 m2 com o nome do primeiro português que chegou a Ceilão, D. Lourenço de Almeida – telefonou para a AMI a dizer que eu era o português que mais dignificava Portugal. Por isso, não aceito que, por um combate político, ousem infamar seja quem for.

 

Que características tem, enquanto cirurgião e médico da AMI (e antes disso, dos Médicos sem Fronteiras), que podem ser importantes no exercício do cargo a que se candidata?

O bom senso. A sensibilidade humana. O respeito pelo outro. A tolerância. Estive em presença do Ayatollah Khomeini, no Irão, falei com Mobutu Sessesseko no Zaire, falei com aquele que era há 44 anos o presidente no Togo, Étienne Eyadéma. Sou capaz de dialogar seja com quem for. Estou disposto a cedências porque sei que não sou o detentor da única verdade. Aprendi a relativizar muita coisa. Num debate, num diálogo, estou disposto a fazer meio caminho, desde que o outro também faça metade do caminho. E sou alguém que chegado o momento, e esgotado o diálogo, é capaz de decisões. Estou habituado a, em situações de grande crise, manter o sangue frio.

 

Como?

É o treino do cirurgião. O cirurgião é um ser que se auto-controla. Nas intervenções cirúrgicas há situações muito complicadas, sobretudo as hemorrágicas; uma pessoa sente que pode perder ali o doente… Tive um amigo, muito íntimo, que morreu com 42 anos, fulminado, no bloco operatório, com um ataque cardíaco; primeiro morreu ele, depois morreu a doente.

Estes são atributos que, somados a ser um candidato supra-partidário e a querer o bem da nação, podem fazer a diferença e levar à mobilização das pessoas, por causas.

 

Que importância teve o dinheiro na sua vida, nas escolhas que lhe permitiu, inclusive nesta de se candidatar à presidência?

O dinheiro, na minha vida, não teve importância nenhuma.

 

Porque a sua família tinha dinheiro e o básico estava assegurado?

Não. A herança que recebi dos meus pais, a dividir por cinco, não foi grande coisa. Foi o que eles puderam. Se lhe disser que em 1960 a minha mãe ganhou a taluda nacional, que foi tudo investido em Angola e que em Angola tudo ficou… Por outro lado, é verdade que com as minhas duas especialidades, a cirurgia e a urologia, e tendo em conta da situação que se vivia no sector da saúde quando cheguei a Portugal (nomeadamente para as próstatas), podia ter ganho muito dinheiro. No meu consultório, não havia dia em que não desse duas ou três borlas. O dinheiro que tenho permite-me viver com dignidade, mas sem luxos. Para a idade que tenho, para a formação que tenho, podia ter uma vida diferente.

 

Onde é que ganha dinheiro?

Fechei o meu consultório quando fiz 50 anos. Passei a dedicar-me exclusivamente à AMI. Vivo do meu salário da AMI. Que é muito menos do que se operasse duas próstatas por mês. Ou se desse 40 consultas por mês. [Ganhar dinheiro] não foi a minha opção. Sempre disse aos meus filhos que não lhes deixaria fortuna, mas que tentaria deixar-lhes um nome limpo, digno; e deixo-lhes uma formação, claro.  

 

Em relação aos costumes, é um conservador, um liberal?

Não sou nada conservador. Sou um homem de fé, um católico. Mas como no meu percurso tenho de protestantes a animistas, sou um ecuménico. O meu melhor amigo é um sunita, do Irão. Parto do princípio de que, se há Deus, é só um. Um que é o mesmo para todos. Se tivesse nascido na Arábia Saudita seria um sunita. Se tivesse nascido em Bassorá, no Iraque, seria um xiita. Se tivesse nascido na floresta equatorial do Congo, seria um animista. Respeito todos de igual modo.

 

Qual é a sua posição sobre o casamento homossexual?

Fui a favor do casamento dos homossexuais, embora na altura tenha dito que a palavra “casamento”… podia ter sido usado outro vocábulo. A Humanidade, de confrontos e exclusões, está já cheia. É preciso aceitar o outro nas suas diferenças.

 

E sobre o aborto?

Tenho na minha comissão de honra alguém que pugnou contra a lei do aborto e que, antes de aceitar, me telefonou para saber qual era a minha posição. “Só quero uma coisa: que no meu país não se voltem a encontrar bebés lançados nas fragas”. Não quero ver, como tive de ver enquanto médico, pessoas que tinham feito abortos de forma violenta, com dilatadores, com paus, infecções, hemorragias. Muita gente da boa sociedade, que até é anti-aborto, (conheço algumas), quando se deu a necessidade, foi a Londres ou a Espanha. Nem toda a gente, num meio empobrecido, tem condições para ir a Londres ou Espanha. Temos é de criar condições para que essas situações de grande traumatismo psicológico e físico possam ser evitadas. Enquanto não o fizermos, aceitemos [o aborto legal]. É melhor isso do que encontrar bebés nas sanitas dos cafés, ou que morra a senhora, de septicemia na sequência de um aborto feito em condições infamantes.

O que é que acontece a seguir às eleições, se não as vencer? Vai continuar a ir para as missões?

Com certeza. É aí que vou acabar a minha vida. Voltarei a fazer com a mesma paixão e amor o que fiz até hoje.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011