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Anabela Mota Ribeiro

Fernando Rosas

15.04.14

Fernando Rosas, o historiador, escreveu um livro para compreender como é que o regime ditatorial durou, e durou, e durou. O professor catedrático estudou os anos 30 e inquieta-se com a eventual ruína da Europa, com o retrocesso civilizacional que tal representaria. O político, fundador do Bloco de Esquerda e membro da mesa nacional, preconiza uma coligação das esquerdas para enfrentar a situação concreta que o país atravessa. E diz que o projecto não é idílico.

É um europeísta de esquerda. Não esperava ver tantos direitos adquiridos na revolução de Abril a serem ameaçados. Não tem dúvida de que o Governo tem os dias contados. Algo monumental está para acontecer? O que será, que será (que anda nas cabeças, anda nas bocas...)?

 

O país que hoje temos ainda tem uma herança muito vincada dos 48 anos de ditadura e da marca que Salazar deixou?

Acho que tem. Sobretudo ao nível da cultura e da mentalidade. Assim como deixaram uma marca poderosíssima os três séculos de Inquisição. Meio século do século XX português viveu sob censura, todos os dias. Isso não pode não deixar marcas no comportamento. Uma das marcas mais duradouras foi a do medo de intervir. O medo de tomar posição, de ter uma opinião.

 

Medo de quê? Consegue tornar mais palpável essa coisa que é difícil de definir?

É a intimidação. A atitude padrão das pessoas, perante uma situação complicada, é: “O melhor é estar calado”. A indignação, o protesto são frequentemente substituídos por uma atitude de prudência. É uma coisa que vem de um medo antigo. Antigo e anterior ao próprio regime e que o Estado Novo acentuou. O Estado Novo actuava a dois níveis de violência. Uma, a preventiva, é a mais eficaz de todas.

 

Pode especificar o que isso é?

A violência preventiva é a que organiza a intimidação. As pessoas sabem que estão a ser observadas e vigiadas. Sabem que há uma censura à imprensa. Sabem que a correspondência é interrompida. Sabem que pode haver escutas telefónicas. Sabem que nos sítios onde trabalham ou convivem há informadores da polícia política. Ou seja, o melhor é não se exporem. Como diziam na altura, a minha política é o trabalho.

Isto é organizado por órgãos do Estado que inculcam esta intimidação. Se tem uma organização como a Mocidade Portuguesa, masculina, que, desde os bancos da escola, padroniza comportamentos; se tem uma Obra das Mães pela Educação Nacional que tem como função substituir os defeitos e as deficiências da família; se tem uma Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, que é uma organização de controlo dos lazeres, de todos os lazeres (seja uma excursão para ver as vistas, seja um campeonato de pingue-pongue, seja um baile), percebe que há uma organização totalizante.

 

Os exemplos que deu representam também uma intromissão permanente no espaço privado, introduzindo o Estado nesse espaço.

Nos interstícios da privacidade, sem dúvida. O Estado Novo arrogava-se o direito de substituir a família porque entendia que a família estava doente. O facto de a maioria da população não concordar com o regime era indiferente.

 

Porquê? É difícil compreender.

Porque o critério de legitimidade não era democrático. Recusavam a herança da Revolução Francesa – um homem, um voto, conselho de soberania popular, uma soberania que legitimava os órgãos do Estado. O conceito de legitimidade que preside aos regimes de tipo fascista, de tipo autoritário, anti-democrático, como estes, é completamente diferente. Há a ideia de que uma minoria conhece o que interessa ao país. E uma maioria obedece àquilo que os outros definem como o interesse nacional. “Manda quem pode, obedece quem deve.” [frase de Salazar] Se a maioria do país está doente, contaminado pela doença do liberalismo, do bolchevismo, da insânia, a minoria, que é detentora da verdade, tem obrigação de partir em cruzada. Tem obrigação de curar o país mesmo contra o país.

 

Mesmo que o argumento tenha sido usado, a marca bolchevique não foi avassaladora.

Em Portugal não foi. Mas era um argumento retórico. Até à greve geral de 34 (o regime vem de 33, Salazar de 32), o anarco-sindicalismo é a ideologia mais pesante no movimento operário. O comunismo tem um aparecimento tardio em Portugal. O Partido Comunista é fundado em 21 e demora uns anos a [consolidar-se].

 

Também é verdade que o PC encarnou, numa segunda fase, a ideia de resistência e de oposição. Ser resistente era ser comunista.

Encarnou. Até ao princípio da guerra [Segunda Guerra], a resistência em Portugal foi dominada pelo reviralhismo, pelo republicanismo que pegou em armas contra a ditadura. Essa é a força dominante numa primeira fase, com um PC que tem dificuldade em bolchevizar-se (de acordo com os padrões da Terceira Internacional). Os comunistas tornam-se uma força hegemónica com a reorganização e refundação do partido. E aí aparece a figura do Álvaro Cunhal. Em 1941, 42 surge com uma nova geração de intelectuais e activistas do operariado que vai reorganizar o PC.

 

Retomemos a questão de abertura, que vai dar umbilicalmente a outra: se a marca do salazarismo está muito entranhada, como compreender isso quando passam 39 anos sobre a revolução?

[A marca] fica porque as coisas que respeitam às mentalidades são de longa duração. As coisas que respeitam aos medos antigos, ainda por cima numa sociedade que permanece muito estratificada socialmente, são de longa duração. A nossa sociedade é uma sociedade com diferenças sociais grandes.

 

A escola não aboliu as grandes diferenças? Pelo menos, estreitou os caminhos entre as classes sociais.

Atenuou. A democracia em geral, e a escola em particular, contribuíram para um processo de dinâmica social ascendente que não tinha precedentes em Portugal. Entendamo-nos: há 50 anos era impensável que um bancário ou empregado de escritório pudesse ser presidente da câmara. Foi a escola e a democracia que tornaram isso possível. A escola pública – bem como a saúde pública – é um grande êxito da revolução.

A crise veio [que atravessamos veio] acentuar as diferenças sociais, outra vez. O insucesso da economia teve mais força. O que é facto é que as diferenças sociais em Portugal são das mais acentuadas da Europa comunitária.

 

A realidade anda mais depressa que as mentalidades...

As mentalidades arrastam-se. Apesar de a revolução de Abril ter sido um sobressalto (um susto para uns, uma perspectiva libertadora para outros), nestes períodos pesados, em que a ameaça do desemprego se torna a instalar, em que as leis laborais permitem despedir quando for preciso, o medo regressa. O medo de ficar sem emprego, de não poder pagar a escola dos filhos, de não ter dinheiro para a renda de casa. Medos ancestrais que regressam sabe-se lá de onde. Da memória oculta dos tempos.  

 

Medos que estão ligados à sobrevivência?

Exacto. E vêm ao de cima os velhos reflexos. O: “A ver se me torno invisível para o patrão não se lembrar que eu existo, o Estado não se lembrar que eu existo. A ver se me safo”.

 

Ao mesmo tempo há nisso uma falta de rasgo. Não estou a dizer que haja condições para ele. As pessoas têm pouco a perder (o quadro que descreve é o da sobrevivência, ou pouco mais do que isso), e não ousam perder esse pouco que têm.

Acho que tem razão. Mas as pessoas que têm muito pouco agarram-se desesperadamente à ilha de sobrevivência que têm. Agarram-se ao pequeno estatuto que têm. Sabem que se perderem isso ficam ainda pior. Isto é uma situação onde se misturam os surtos de revolta e o peso da submissão. O que a sociedade portuguesa não desenvolveu foi uma cultura de defesa sustentada dos direitos adquiridos.

 

Há dois anos atrás essa frase surgiria incompreensível.

Os direitos não estavam ameaçados. Em França, há uns anos, quando começaram a atacar o Estado Social, as manifestações e as greves derrubaram o governo de direita que iniciou essa política. Em França existe uma sociedade com uma profunda consciência da intocabilidade dos direitos que se adquiriram, e que reage fortissimamente ao ataque a esses direitos. Na nossa sociedade, a consciência da intocabilidade desses direitos é menor. Primeiro porque eles são muito recentes. Trinta anos não é nada, não é? Mesmo assim, há alguns em que as pessoas não deixam tocar.

 

Quais?

A liberdade de expressão. A liberdade de associação. O direito à greve.

Outra coisa: a História ensina que os momentos de crise são sempre maus para a luta social e política. É paradoxal, mas é verdade. Porque as pessoas têm medo.

 

Até ao rebentamento. Até à revolução. Há um crescendo de medo e revolta surda que cresce até ao instante em que rebenta com o jugo.

Quando há revolução. Os movimentos revolucionários não são mecanicamente fruto de situações de grande crise social. O Maio de 68 deu-se num período de crescimento em França. A própria revolução de Abril deu-se no fim de um período de acelerado crescimento do país. As pessoas são mais ousadas quando o risco é menor. Nas situações de depressão e de grande desemprego a disponibilidade para lutar é menor. Na última greve geral, as duas centrais sindicais disseram que para muitos trabalhadores o prejuízo de perder um dia de trabalho é enorme. E os precários têm receio de entrar numa greve ou movimentação social porque perdem o emprego a seguir – não têm garantias. A instabilidade de tudo o que diz respeito ao trabalho, mesmo que haja cansaço e revolta surda, torna muito difícil a mobilização.

 

Em França, quando aconteceram essas manifestações tão expressivas, já se falava há muito do fim inexorável do Estado Social. Que também parecia um direito adquirido e que é uma marca identitária da Europa.

Marca identitária da Europa: acho absolutamente que é isso.    

 

Tudo está então em desmoronamento?

Acho que há uma segunda crise histórica dos sistemas demo-liberais do Ocidente. O mundo que conquistámos no pós-guerra está em crise. Em crise político-institucional, de legitimidade das instituições (uma grande parte dos cidadãos não se reconhece no sistema político-partidário que tem). Crise económica e social (o capitalismo está a viver a pior crise da sua história desde 29). E crise de valores, como a esperança, o optimismo.

 

Interrogamo-nos: “Que sociedade somos nós e para onde vamos?”.

Conhecer bem a primeira crise dos sistemas liberais do Ocidente é muito importante. Sabemos o aconteceu. Os fascismos. A guerra. A primeira crise terminou em tragédia. A segunda crise: não sabemos onde é que vai parar. O que é que vai acontecer ao mundo ocidental que herdámos da Segunda Guerra? Neste momento temos o campo dos que acreditam que vai ser possível preservar os direitos conquistados, o Estado Social, sem que isso represente uma perspectiva revolucionária; e o campo dos que entendem que a lógica do desenvolvimento do capitalismo implica perder isso tudo – o que é um verdadeiro regresso civilizacional.

 

Acha que as pessoas aceitam facilmente um hipotético retrocesso...

Estão a resistir. Não sou pessimista. Tenho é a nostalgia de chegar à idade a que cheguei (67) e ver que aquilo que pensávamos que eram conquistas irreversíveis estão ameaçadas. E se se mexe nos fundamentos da democracia social a seguir vem a democracia política. Sobretudo num processo de supranacionalização. Estão a destruir o Estado nacional e a construir instituições supranacionais sem controle democrático. Assistimos a coisas extraordinárias: a uma Troika que ninguém conhece e que manda no Governo português.

 

Ainda esta semana Angela Merkel dizia que os Estados têm de estar preparados para ceder em questões de soberania.

O que ela diz é que os Estados devem estar preparados para isto: a Alemanha é que manda. O federalismo alemão significa pôr a Europa sob tutela política e económica da Alemanha. É esse tipo de federalismo que é preciso, absolutamente, recusar. Há outro tipo de entendimento interestadual (que tem aspectos federalistas no seu funcionamento, mas que não significa a anulação dos Estados) que é o único caminho para a Europa fazer face a esta crise.

 

Defende a existência de Eurobons?

A Europa tem de ter Eurobonds. O BCE não pode preocupar-se só com o nível da inflação. Tem de preocupar-se com a ajuda directa às economias. A Europa tem de ter um plano social comum.

Se quiser, há um europeísmo de esquerda e um europeísmo de direita. Eu sou um europeísta de esquerda e acho que há um outro caminho para a Europa, que não é este [que tem sido seguido]. Este é o caminho da hegemonia alemã. Terceira vez... Foi a primeira, perderam a guerra. Foi a segunda, perderam a guerra. A terceira, não se sabe o que vai acontecer.

 

Como é que observa o facto de ser a “terceira vez”? E como é que a Alemanha se reconstrói tão rapidamente na segunda metade do século XX?

A Alemanha reconstrói-se fazendo exactamente o contrário do que agora quer fazer. No pós-guerra, a Alemanha Federal foi viabilizada por uma injecção maciça de capital dos EUA e de outros países e pelo perdão da dívida. Nunca pagou as dívidas de guerra, nomeadamente aos países que ocupou. A Grécia, que agora reclama uma indemnização da Alemanha, tem razão.

 

Os eleitores de Angela Merkel neste momento consideram que não têm de sustentar a dívida dos país que viveram acima das suas possibilidades.

É um puro discurso xenófobo. Não é verdade que estejam a sustentar coisa nenhum. A dívida é um instrumento financeiro de subjugação dos povos. As dívidas são exponencialmente agravadas pela especulação financeira, por juros abusivos. Países periféricos como Portugal, nunca mais saem disto. Qual é a resposta à dívida? É um programa de intervenção que destrói a economia do país. Se destrói a economia do país, ele não tem nenhuma possibilidade de pagar a dívida. Portanto é uma dívida impagável.

 

Como é que se sai disto? Ou renegociamos a dívida (mais tempo, mais tempo, mais tempo) ou beneficiamos de um perdão (como aconteceu noutros momentos da História noutros países)?

Perdão da dívida. Perdão de uma parte da dívida, claro. E o resto, renegociar prazos e juros. Prazos que permitam uma consolidação da dívida a longo prazo e com juros que permitam à economia crescer. Era bom que isto fosse feito no quadro da União Europeia. Senão, vai empurrar vários países para fora do sistema euro.

 

Grécia, Portugal, Chipre, Irlanda, Espanha... os países que estão em apuros.  

Esse risco existe. Ou a união monetária serve para integrar e ajudar países em dificuldades (como acontece com os estados federados e o banco federal nos EUA) ou, se não funciona dessa maneira, se funciona como elemento de exclusão e de perpetuação da distância que há entre eles, uma parte desses países fica fora do Euro. Significa abandonar a moeda europeia, recusar unilateralmente pagar as dívidas, entrar num sistema de ruptura.

 

Fazer um pouco o que a Islândia fez, quando se recusou a pagar a dívida?

A Islândia fez. E não se está a sair mal. Não estava no Euro. Tinha essa vantagem. Mas declarou que havia dívidas que não assumia porque não tinha sido o Estado a fazê-las. Tinham sido os bancos. Bancos privados. Renegociou a dívida unilateralmente.

Para nós, adoptar essa posição significa abandonar o Euro. O que tem um preço social pesado. Não há que iludir isso. Vejo muita gente a defender a saída do Euro, com fundamento, mas subestimando o preço social que sair do Euro representa (sobretudo nos rendimentos das pessoas).

 

Retomemos um ponto que já aflorou: o abismo que há entre a classe política e a população. Ninguém se revê em ninguém. Não acontece só em Portugal, mas acontece muito vivamente aqui.

Tenho alguma dificuldade em aceitar esse conceito de “classe política”. Há políticos bons, há políticos maus. Há políticos de esquerda, há políticos de direita. E há políticos bons e políticos maus na esquerda e na direita. A classe política como um todo é uma classificação que me inquieta.

 

É assim que ela é olhada. E recusada.

Eu sei. Mas inquieta-me. Estudei as vésperas do movimento militar do 28 de Maio de 26, onde esse discurso de condenação da política e dos políticos imperou largamente. A alternativa então foi: “Afastamos os políticos e chamamos os técnicos”. O técnico que se chamou para tomar conta do poder e salvar o país foi Salazar, que ficou cá meio século. Esse discurso de recusa global da política, dos políticos, dos partidos e do Parlamento é um discurso protofascista. É um discurso a caminho da ditadura. O ordenado que você ganha, o preço dos transportes, da gasolina, do pão: tudo é política. O debate que é preciso fazer é em torno das boas e das más políticas, e não uma condenação global das políticas e dos políticos.

Por outro lado, a distância entre os cidadãos e os partidos tem alguma razão de ser nessa espécie de neo-rotativismo que se instalou nas democracias do Ocidente.

 

Neo-rotativismo?

Entra um, entra outro, sai, roda. Veja Portugal. Há dois partidos que se alternam no poder, aparentemente sem alternativa, e, vendo bem, a diferença entre uns e outros não é grande. Na oposição prometem muita coisa, e no poder repetem sensivelmente as mesmas políticas. Esse rotativismo é responsável pela gestão política do país desde os governos constitucionais, desde 1976, e não deu bons resultados.

 

As pessoas têm medo dos partidos que estão nas franjas. Do seu radicalismo. Quer à esquerda, quer à direita.

As pessoas escolhem. O que acho é que tem que se tirar conclusões disto. A crise actual, a meu ver, não tem soluções nem ao centro nem à direita. Não há uma austeridade benigna. Ou há uma política de austeridade (e num país periférico como Portugal o espaço que sobra para o desenvolvimento económico não é nenhum...

 

Está a dizer que austeridade e desenvolvimento económico não são compagináveis?

Com austeridade, não há desenvolvimento económico. Acaba com a procura interna, com o investimento. A exportação não é um factor, só por si, de arranque económico do país. Noventa por cento das empresas que há em Portugal são pequenas e médias empresas, e quase todas voltadas para o mercado interno); ou renegoceia a dívida no quadro de um programa de desenvolvimento económico.

[As opções são entre] um desenvolvimento económico que permita pagar a dívida e uma austeridade que impede o desenvolvimento económico. Estas soluções são soluções à esquerda. E são soluções que põem à esquerda um desafio muito grande: entender-se para fazer esse programa.

 

A esquerda está especialmente desacreditada porque foi ela que nos últimos anos, com o PS, deteve o poder?

A governação foi partilhada pelo PS e pelo PSD. Os partidos socialistas na Europa têm uma responsabilidade enorme: foram eles que abriram o caminho às políticas neoliberais. Quando Thatcher e Reagan personificaram na governação o exercício dessa nova estratégia (uma herança destrutiva de tudo o que era a herança do pós-guerra), o que é que vimos nos partidos socialistas? Não se levantaram contra elas. Tony Blair foi uma versão da senhora Thatcher de calças.

 

É a esquerda que tem de se reinventar? A esquerda que esteve no poder.

A esquerda da governação, ou se alia à esquerda que está à esquerda dela, ou vai repetir o que estes estão a fazer com pequenas variantes.

 

Com estes líderes, António José Seguro, João Semedo e Catarina Martins, Jerónimo de Sousa... Estava a considerar o PC?

Quando falo da esquerda, falo da esquerda no seu conjunto.

 

Acha que há alguma possibilidade de entendimento?

Acho que as circunstâncias vão exigir esse entendimento. Ou nós nos entendemos e ganhamos força social e política para impor essa alternativa ou é o afundanço sinistro. Fico arrepiado quando vejo António José Seguro falar de uma aliança com democratas-cristãos, social-democratas, humanistas (humanistas?). O que é isto como política? É uma austeridade boazinha? Não é este o modelo de que o país precisa.

 

Seguro pensa o PS como um partido de poder. O poder não está neste momento com o Bloco de Esquerda ou com o PC.

Não está. Um governo de entendimento à esquerda tem de sair de eleições. Tem de ter uma forte legitimidade saída das urnas. O que vejo? Que o PS meteu a viola no saco em termos de eleições.

 

Foram previsivelmente derrotados na moção de censura.

Mas a reclamação das eleições pode continuar a ser feita. Deve continuar a ser feita. Não há outra maneira de este Governo ser derrubado. Alguém anda a sonhar que Cavaco Silva vai retirar o apoio a este Governo, e vai nomear um Governo qualquer de responsabilidade presidencial com Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite? Não acho de todo provável.  

 

Voltamos à questão: as pessoas não se revêem nestes partidos, nestes políticos. Basta olhar para a manifestação de 3 de Março para perceber que a atitude é apartidária.

Sim e não. Os partidos também lá estavam (pelo menos alguns). O que houve foi uma recusa muito clara das políticas partidárias que têm sido responsáveis por esta crise. E [manifestou-se] uma certa desconfiança do sistema político em geral, que não é, apesar de tudo, tão grande como é em Espanha. Mas a solução não é acabar com os partidos. Há um discurso contra os partidos que é um discurso contra o pluralismo político e a democracia política. A solução em democracia é esta: se as pessoas entendem que os partidos que as representam estão esgotados, tentam criar outros. O Bloco de Esquerda é fruto disso.

 

E os movimentos à margem dos partidos?

Os movimentos cívicos têm uma capacidade de intervenção política relativamente limitada. A menos que – e acho que é uma boa política – se aliem em sistemas de coligação com partidos políticos. Uma grande coligação entre partidos políticos de esquerda e associações representativas de movimentos sociais seria uma excelente rede de oposição e de alternativa.

 

As sondagens deixam perceber como as pessoas não confiam nem se revêem nestes líderes. Não passa muito por aqui?

Acho que é uma questão de política. Claro que os líderes têm a sua importância carismática, mas o que define um partido é a atitude que ele tem perante a realidade. O PS com esta direcção tem um estilo diferente da que tinha no tempo do Eng. Sócrates. Mas a política não me parece essencialmente distinta.

Gostaria de ver um PS, fosse com que líder fosse, optar por uma preferência de aliança à esquerda. A solução do país está à esquerda, está na coligação das esquerdas. Uma coligação em pé de igualdade, e não: “Quem manda aqui sou eu porque sou a vanguarda da classe operária”, nem: “Quem manda aqui sou eu porque sou o partidão”. Todos temos um papel a desempenhar nisto.

 

Parece uma resposta idílica.

Não é idílica.

 

Encontramo-nos no dia 23 de Abril. Presume que no 25 de Abril o tradicional descer da Avenida da Liberdade (que celebra a revolução) vai ser mais expressivo do que tem sido em anos anteriores?

Acho que sim. Acho que vai ser uma manifestação mais politizada, forte, de repúdio. Vai ser uma acção contra o Governo. Massiva. Assim como o 1 de Maio. Não vejo outro caminho que não seja o da mobilização social e política.

 

Há 39 anos acreditava-se no futuro. Quando é que deixou de acreditar?

Nunca deixei de acreditar no futuro.

 

De certeza que não imaginava que a erosão do sistema fosse tão acelerada.

O que há 40, 35, 30 anos não pensávamos era o que núcleo duro das conquistas sociais da revolução pudesse ser posto em causa como está a acontecer. Achávamos que era um núcleo civilizacional. O direito a ter férias, à contratação colectiva. A realidade ultrapassou-nos. A realidade da crise e a nova estratégia de acumulação do capitalismo. Um capital financeiro em lugar do capital produtivo, e um ataque aos rendimentos do trabalho. Na Europa, no mundo, isto está a processar-se a um nível que era impensável.

A estratégia de destruir as conquistas sociais é muito mais smooth do que foi nos anos 30. Não se trata de fechar os parlamentos. Trata-se de esvaziá-los. Os parlamentos nasceram para aprovar orçamentos. Agora os orçamentos são previamente visados por uma comissão de tecnocratas que ninguém elegeu. De repente quem manda é a Troika, é a senhora Merkel. A soberania nacional sobre coisas fundamentais já foi.

 

Qual é a grande diferença em relação à crise dos anos 30?

O capital consegue atacar as conquistas sociais sem, por enquanto, mexer na democracia política. Não tenha dúvida de que isso vem a seguir.

 

Como é que não é pessimista, apesar do quadro que descreve?

O quadro é o do meu adversário. A solução para isto é lutar. É criar à esquerda uma alternativa. O que dizia que era idílico vai acabar por realizar-se. O que é olhado sobranceiramente como um discurso lunático, é o que as circunstâncias vão exigir.

 

Quando escreveu o livro Salazar e o Poder foi uma forma de sistematizar, sob este ângulo, muitos dos assuntos que vem investigando. Pensou em paralelos que era possível estabelecer entre o que se viveu então e os nossos dias?

Esses paralelos existem sempre na nossa cabeça. O meu livro correspondia a uma interrogação antiga, que foi a que me fez estudar História Contemporânea: tentar perceber como é que um regime como o salazarista se pôde aguentar no poder durante meio século. Foi uma questão que perturbou muito a minha geração – como é que estes gajos se aguentam? Esta é uma questão que se põe na actualidade.

 

E que se traduz em: como é que este Governo não cai? É isso?

Este Governo vai cair. Dentro de pouco tempo. Não sei como é que vai cair. Mas vai cair. Um Governo que perdeu legitimidade real, um governo que tem a opinião pública contra ele de forma sustentada e durável, nunca se aguenta. É uma questão de tempo. Foi o que aconteceu com o Governo de Santana Lopes. Tinha a oposição do país e o presidente da República, que o empossou, passados uns meses, dissolveu-o.

 

As circunstâncias são outras. E este Governo tem dois anos de exercício.

É um Governo sustentado pela Troika. As últimas sondagens falam em mais de 55% [dos inquiridos] que desejam que este Governo acabe. O que é difícil na opinião pública é encontrar quem o defenda. Não acredito que um Governo nesta situação de isolamento político se aguente. Tudo o que faz, faz mal. Cada cavadela, uma minhoca. É um cadáver adiado. O presidente da República segura-o enquanto pode.

 

Como vê a acção de Cavaco?

Acho que é o sustentáculo principal deste Governo.

 

Porquê? Cavaco e Passos correspondem a facções diferentes do PSD.        

Cavaco aparentemente tem críticas a fazer, mas acha que é o Governo que lhe merece confiança. Se não achasse, tinha tido todas as possibilidades para o mudar. Neste último episódio [chumbo do TC], o facto de ter aceite renovar a confiança política quando o Governo se dirigiu a Belém significa que (e estou de acordo com o Sócrates), em certo sentido, este Governo transformou-se num Governo presidencial. Claro que tem uma maioria no Parlamento, tem legitimidade formal. Não tem substantiva.

 

Como é que daqui a 39 anos um historiador vai olhar para este momento?

Estamos numa esquina da História. Estamos numa situação de crise, ainda não aguda, mas crescente dos sistemas demo-liberais do Ocidente. Temos uma UE, uma moeda comum, tudo isso ameaça ruir. Mas a ruína não é efectiva. Pode não se dar. A Europa pode sofrer um regresso civilizacional de um século por virtude de um triunfo mais ou menos pacífico das estratégias neoliberais. Pode entrar num período longo de sombra, de sombra e de atraso, de sombra e de pobreza, de autoritarismo disfarçado e de pobreza. Ou então a Europa do trabalho, da cultura, da política à esquerda encontra-se para se constituir como alternativa. Ou pode arrastar-se com soluções intermédias. Mas a crise já se conforma pouco com soluções intermédias. Estamos na véspera de alguma coisa importante. Não sei se viverei o tempo suficiente para o ver. Mas acho que o desenlace vai ser rápido.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013