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Anabela Mota Ribeiro

Filipe Seems, um herói de BD

11.01.23

Os álbuns “Ana” (1993), “A História do Tesouro Perdido” (1994) e “A Tribo dos Sonhos Cruzados” (2003), escritos por Nuno Artur Silva e desenhados por António Jorge Gonçalves, fornecem um retrato de um herói enquanto jovem. Filipe Seems.

São a biografia de uma pessoa, que só por acaso não é de carne e osso; e de uma cidade, Lisboa, imaginada por ele.

A BD começou por ser publicada no semanário Sete. Depois em álbum. Depois fez-se a adaptação para teatro, na peça “Conspiração”. Primeiro protagonizada por Nuno Lopes, depois por Marco de Almeida. Os restantes cúmplices eram Sandra Celas e Kalaf, música de Armando Teixeira, coreografia de Amélia Bentes.

A peça deriva do terceiro tomo, “A Tribo…”, uma novela gráfica, mais do que um álbum BD. A versão vídeo, realizada por Pedro Macedo, está agora a ser lançada numa caixa que reúne todos os álbuns, o DVD e desenhos originais.

Muitos anos depois, fecha-se um ciclo. Formalmente fecha-se um ciclo. António Jorge Gonçalves e Nuno Artur Silva já não são os mesmos. E Seems?

Por onde se começa? A compor uma ficção, a desvendar um mistério, a amar uma cidade. Talvez pela luz dourada sobre o rio, que é um mar. Pela vista esplêndida. Por uma cena assim: sapatos de detective pousados sobre a secretária, uma mulher óbvia e ondulante que entra pela porta, uma citação de Picasso. “D’abord on trouve, puis on cherche”. Primeiro encontra-se, depois procura-se. Este será o modus operandi deste detective.

Escolher o enigma e não a solução.

Seems, Filipe Seems. Parece que.

O ambiente de Seems: não há vestígios da soturnidade do film noir ou do romance à la Chandler. Mas melancolia, sim. Não há citações de Cesário, mas de Pessoa. (Há uma prancha em que se lê, no café, o Livro do Desassossego). Não há mortos. E é verdade que a primeira vez que alguém diz: “mãos ao ar”, o que se aponta é uma máquina fotográfica – arma dos tempos modernos, objecto conhecido e identificado.

Viramos a página. Subitamente, canais junto ao elevador de Santa Justa, gôndolas venezianas, escadas, escadas. Uma Lisboa impossível. Um objecto de desejo.

Começamos, de novo: o problema essencial é o problema de Seems. Que caminho seguir. Que escolha fazer. Qual é o fio da nossa história. Perante a bifurcação permanente, que narração escolhemos, de que narração fazemos parte. Tudo perguntas, tudo questões, deixadas em aberto. Não interessa a resposta, interessa o caminho para lá chegar.

O princípio mesmo. Lisboa, 1992. Dois amigos. Nuno Artur Silva, António Jorge Gonçalves. “Lisboa era uma cenografia pronta a receber histórias. Uma cidade com um potencial extraordinário. E havia histórias por contar e imagens para desenhar”, diz o argumentista.

Percorreram a cidade uma e outra vez. Fizeram repérage, como quando se prepara um filme. Mas a pensar em álbuns de banda desenhada. Escolheram décors, escolheram o ângulo, escolheram o absurdo que lhes apetecia. Por exemplo: “Acho que vou dar um mergulho”, e a seguir estão golfinhos a nadar no Tejo. Ou o Terreiro do Paço, completamente inundado, como se fosse S. Marcos em dias de maré-alta.

Tudo isto sem gastar dinheiro ou pedir autorizações. Ao contrário dos filmes. Coisas que a literatura permite. E também há, por falar em Lisboa absurda, a imagem poética da cidade coberta de neve. Neve espessa, de um branco opaco.

O cenário era este. Depois, era preciso um herói que ligasse os pontos, que lhes desse um sentido, que contasse uma história. Que a contasse à medida que a descobre. Descobrir, procurar – nesta ordem. Podia ser um poeta, mas é um detective. Faz o que fazem os detectives: segue as pistas. Outra citação, René Char: “Um poeta deve deixar pistas e não provas; Só as pistas fazem sonhar”.

Filipe Seems. “Em termos práticos, nasci em 1993, ano em que me inventaram. Mas as minhas histórias passam-se num futuro mítico. Será 2016, 2020? Se quiser, eu não tenho tempo, eu não tenho idade. Sou uma ficção, uma utopia. O que está por trás de mim é a ideia de que todos somos obras de ficção. Vivo numa cidade mas esta cidade não é só a cidade real. Aliás, esta cidade é sobretudo a cidade irreal. É a cidade que eu posso transformar. É a cidade em que, na esquina, posso ter aquele jacarandá e imaginar tudo o que quiser: gôndolas venezianas, naves espaciais. Esta cidade tem pessoas. Cada pessoa é uma obra de arte, uma obra de ficção. O meu cruzamento com essas pessoas tem que ser um cruzamento que provoque, que estimule, que inspire. Eu tenho que ter uma existência literária. Eu quero ter uma existência literária. Porque essa é a forma de viver inspiradamente”.

O excerto é retirado de uma entrevista de 2003, a única entrevista dada por Seems. Ou seja, por Nuno Artur e António Jorge a responderem na pele de Filipe Seems.

Da mesma entrevista.

“Qual é o seu passado? Que infância foi a sua?

- Que quer que lhe diga? Em miúdo, vivi num bairro típico de Lisboa, fui o miúdo do Molero [«O que diz Molero», Dinis Machado]. Joguei à bola no meio dos outros miúdos. Depois fartei-me de viajar sem nunca sair do bairro. Depois isolei-me. Fartei-me de ler, de ver filmes. Continuei a viver no mesmo sítio, mas virado para dentro da minha cabeça. Foi esse o lugar onde sobrevivi.

Tem mãe? Foi embalado?

- Não. Ou se tive, também foi uma ficção. Não esqueça que eu não tenho o problema de pagar a renda, não penso em dinheiro. Sou apenas uma personagem perdida num labirinto de possibilidades, condenada a errar eternamente nesse labirinto”.

Coisas, factos, imagens do labirinto: um passageiro numa noite de verão, um gato elegante que vai à frente. Passeia no telhado, sem que isso pareça um número equilibrista. Funambulismo não é uma palavra usada. Mas serendipidade sim. (Serendipidade: faculdade de fazer descobertas felizes e inesperadas, por acidente). Palavra essencial na música do acaso de Seems.

Há números de circo (e moda) na Basílica da Estrela. Uma evocação de Pessoa ao volante de um Chevrolet, numa estada de Sintra. Há pessoas que comunicam pelo computador antes de o skype ser uma ferramenta de todos os dias. Há sessões de psicanálise, amigos cientistas, uma guia que acha que o ideal é deixar que os seus turistas se percam. Prestidigitadores, visões caleidoscópicas. Um azul árabe. Esquinas, jogo de sombras, edifícios oblíquos. Gaivotas esparsas. Roupa dependurada na janela. Temperatura solar. E Jorge Luís Borges, omnipresente.

Mais factos: “Convidei-a para um pequeno-almoço, a luz da manhã invadia os telhados”. Era n’ A Brasileira, e A Brasileira era mesmo A Brasileira. O mesmo recorte. Não havia coisas estrambólicas – ao tempo – e que depois não seriam tão estrambólicas assim. Como o comboio a passar debaixo da ponte 25 de Abril. (De certa maneira, Seems apresenta também uma Lisboa premonitória).

Há bicicletas que andam no ar, com um balão. Um funicular liga a Baixa e o castelo de S. Jorge. Um eléctrico igual ao 28 que percorre as colinas de Lisboa e onde fanam carteiras aos turistas.

Detenhamo-nos no eléctrico. No primeiro álbum, “Ana”, é um funicular. No segundo, “A História do Tesouro Perdido”, há um bar que funciona num eléctrico chamado Desejo. (Sem Blanche Dubois à vista). No terceiro, “A Tribo dos Sonhos Cruzados”, o eléctrico é o mesmo, mas eles não. O eléctrico aporta numa estação soturna, com estalactites e estalagmites. (Cesário nunca vem ao caso). E por isso, o espaço que atravessa é subterrâneo, dark, perdido do seu sentido.

O fio principal: “O primeiro álbum tem a ver com o universo das histórias. É dominado pela errância do personagem e pela frase de Picasso. A partir daqui, quis fazer arte pop. Colagem, mistura, cruzamento, sobreposição. Tudo o que a BD permite, de modo simples e imediato. Misturar o universo borgesiano com Philip K. Dick. Cruzar um passado mítico e visões futuristas. A Costa da Caparica que aparece é a do [modernista] Cassiano Branco (de um projecto que nunca se chegou a concretizar). Tudo num só tempo”.

Tudo cheio de múltiplos sentidos, múltiplos fios. Um exemplo: Maria Kodama, dona de uma clínica de clonagem em “Ana”, é o nome da mulher de Jorge Luís Borges. Alice Lidell, que dá nome à clínica, é o nome verdadeiro da Alice do país das maravilhas.

Nada elementar, meu caro Seems.

Voltamos a Nuno Artur Silva e ao coração destas fábulas: “O António Jorge queria desenhar luz, luz, luz. Eu gosto de histórias de tesouros. Qual é o sítio mais improvável para enterrar um tesouro e encontrar um marinheiro? No meio do deserto”.

N’ “A História do Tesouro Perdido” mistura-se Casablanca e a “Ilha do Tesouro” de Stevenson, Corto Maltese e os Descobrimentos Portugueses, Al Berto aparece, himself, como director de um museu, há um misterioso casal de atlantes. Mas os andróides/atlantes/replicants vêm do primeiro álbum. Numa citação explícita de “Blade Runner”, e Harrison Ford cara a cara com Filipe Seems.

E o tesouro? “Mais importante é estar na pista do que encontrar no tesouro”, diz Nuno Artur.

Sempre a mesma ideia base.

Dez anos mais tarde, no terceiro tomo da trilogia, em vez de um tom luminoso e solar, há fantasmas por resolver. Tudo se passa no undergroung, nos subterrâneos dele próprio – Seems – e de Lisboa. Sombras e nevoeiro. Escuro cá dentro. Talvez seja sempre noite. Seems sem conseguir ver o dia. Cidade em escombros. Corredores e corredores de metro. A única imagem solar é a dos Jerónimos transformados em praia tropical. Bizarro.

E há um fio condutor, roubado a Chatwin, que por sua vez o roubou aos aborígenes do deserto australiano. Os tais que se guiam por canções e não por mapas. (Roubar é um modo de dizer.) Quando se muda o sentido, o caminho, o fio? Quando acaba a canção.

Filipe Seems deve, então, seguir a sua songline. Sair dos escombros. (Todo o cenário do último álbum, aliás, é pré e pós apocalíptico). Uma rede terrorista faz atentados. A sociedade sucumbe a uma overdose de imagens e sons. É preciso chegar ao silêncio. Soterrado, soterrado. Filipe Seems precisa de abrir uma fenda no muro.

António Jorge Gonçalves: “N’ "A Tribo", somos outros a revisitar um lugar onde muito tinha acontecido”. Graficamente, é outro objecto. “Achei que era eu que estava a marcar demasiado a diferença por incapacidade de voltar a uma linguagem de "juventude"; mas a certa altura percebi que o Nuno também não era o mesmo, e que já tínhamos mudado de século, e que já tinha acontecido o 11 de Setembro, e que...”

E que coisas querem dizer? “Nos dois primeiros queríamos apenas jogar; no terceiro precisámos dizer. O meio da banda desenhada (essa pequena aldeia de irredutíveis) não aceitou muito bem essa diferença e acho que decepcionámos alguns fãs.

Mas para mim é límpida a supremacia do autor sobre o leitor numa obra (quer dizer: o autor fá-lo por necessidade, não escolhe. O leitor tem a liberdade de decidir se quer ou se não quer)”.

Onde começou a alucinação?

“A mulher que comigo agora se cruza é o meu grande amor e ambos ainda não o sabemos. O homem que saiu do táxi tem uma missão: vai salvar doze pessoas e ainda não sabe. O outro, que entrou no táxi, é um assassino, vai atrás da sua vítima, e sabe-o”.

Linhas, fios, histórias, enredos. Viver, literariamente, que é como vivemos, talvez se trate de encontro e desencontro. O problema talvez seja desencontrarmo-nos dos nossos passos, ou seja, da nossa ficção. Mas há sempre outra ficção…

Filipe Seems diz: “Tudo é ficção, acaso e destino, labirinto e jogo”.

Faites vos jeux, os fios estão lançados.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009