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Anabela Mota Ribeiro

Francisco Pinto Balsemão

14.10.25

Francisco Pinto Balsemão nasceu em Lisboa em 1937. Nasceu rico, facto que se revelou determinante. Incutiu-lhe um instinto vencedor. E responsabilidade. Perder, perder feijões, dinheiro, apostas, desafios: é perder. Representa uma  contrariedade no seu percurso ascensional. Talvez por isso seja tão sovina. Ou, pelo menos, tem fama disso. Mas não falámos dos dois fatos que tem e dos três blazers com que remedeia. Nem das historietas que o dão como playboy. Falámos da vida que tem levado, de como se deixou imprimir por ela.

Formou-se em Direito. Viveu entre o jornalismo, as empresas de comunicação e a política. Foi primeiro ministro no virar da década de 80. É o único publisher português. É casado, tem filhos e netos.

Esta entrevista começou por acontecer na sede da Impresa, na casa que foi sua. Prosseguiu na semana seguinte, depois de um almoço, numa mesa que reclama para si. 

 

Esta casa é a da sua infância. Os seus pais tinham 40 anos quando nasceu

Tinha nascido uma irmã que morreu com meses. Fui neto único (homem), sobrinho único, filho único. Fui a última esperança de continuação deste ramo.

 

Fez a instrução primária em casa. Como era a sua professora?

Era uma Dona Laura, professora também na escola primária da Rua do Machadinho, onde fiz o exame da quarta classe, que palitava os dentes com uma espinha de bacalhau! Tinha-a cuidadosamente guardada na carteira, embrulhada num papel... Mas era uma jóia de senhora.

 

Que impressão é que isso lhe causava?

Uma pessoa depois habitua-se!

 

Imagino que em família não houvesse o hábito de palitar os dentes e muito menos com uma espinha de bacalhau.

Não.

 

Cresceu completamente resguardado.

Bastante resguardado, sim. Tanto que depois fui, aos 10 anos, para o Liceu Pedro Nunes e quase não sabia um palavrão! Era uma das minhas debilidades!

 

Não sabia realmente? Em casa, quando as pessoas se exasperavam...

Não diziam palavrões, como é evidente.

 

Evidente? Como era exteriorizada a fúria?

Com os meus pais nunca houves fúrias em que fosse necessário recorrer a linguagem vernácula. Este bairro, e especialmente esta rua, tinha características interessantes. Se de um lado viviam pessoas sem grandes problemas económicos, como era o caso dos meus pais, do outro lado da rua viviam pessoas que tinham problemas económicos. Muitos dos meus amigos eram rapazes daqui da rua. Jogávamos futebol neste pátio.

 

E nem com esses aprendeu os palavrões.

Alguns. De qualquer modo, no liceu a aprendizagem foi rápida. Tinha uma excelente relação com os gémeos da Georgete, que era peixeira, com o Nuno que morava aqui em frente, com o Carlos, com o Henrique.

 

Dão-lhe uma educação esmerada com uma professora particular e depois deixam-no jogar à bola com os gémeos da peixeira.

Era a mentalidade dos meus pais. Nesse sentido, fui bem educado, nunca fui um menino mimado.

 

E a manifestação dos mimos? O afagar, sentiu-o também por parte dos seus pais e do seu tio, que julgo que é uma pessoa crucial no seu percurso?

E a minha avó. A minha avó vivia precisamente aqui, o meu tio Francisco em cima, nós vivíamos nos dois andares de baixo. A minha avó marcou-me muito, Era austera, inteligente, influenciou em parte a minha decisão de ir para Direito. Há um retrato dela pintado por Columbano que está agora no Museu do Chiado. O meu tio não tinha filhos e viu-me como o filho que gostaria de ter tido. Viveu muito mais que o meu pai; o meu pai morreu em 1964, o meu tio em 85.

 

Olhou-o como uma figura tutelar?

O meu pai teve uma influência muito positiva em mim. Tinha uma grande intimidade com ele. Falava-lhe dos meus problemas amorosos, das minhas conquistas. A minha mãe era uma pessoa muito afectiva e exigente. Contribuiu muito para a minha confiança em mim próprio. O meu tio acreditou em mim profissionalmente, apostou em mim. Zangámo-nos a dada altura. Não nos zangámos de cortar relações, claro.

 

Nem de dizer palavrões!

 [risos]

 

Ou foi uma zanga dessas?

Não, não.

 

É que não acredito que nunca se descomponha.

Eu digo imensos palavrões entre homens. Agora, esta coisa que está muito na moda de as senhoras dizerem palavrões: acho péssimo, inestético.

 

A zanga foi por causa de quê?

Quando foi da Ala Liberal estivemos quase zangados por causa do Projecto de Lei de Imprensa que apresentei com Francisco Sá Carneiro, em que se previam os conselhos de redacção, entre outras coisas. Ele achou aquilo uma coisa terrível. Tínhamos ainda o Diário Popular na altura.

 

Tudo isto vinha a propósito da manifestação mais ou menos efusiva dos afectos no seu ambiente, que é de contenção.

No meu caso, não. A minha mãe, então, exagerava. Achava que eu era o maior génio do mundo. Isto criou também um grau de exigência que não tem nada a ver com os afectos. No Pedro Nunes, por exemplo, onde estive sete anos, houve um trimestre único em que não tive notas para figurar no quadro de honra. Foi uma tragédia familiar, ficou tudo de trombas. 

 

Foi educado para ganhar. Há uma grande expectativa à sua volta.

Para ganhar? Talvez. Mas não gostava de pôr as coisas  assim. Fui educado para assumir responsabilidade, para assumir obrigações resultantes de ter tido a sorte de nascer  numa família abastada.

 

Não é quase auto-punitivo? Um desculpar a riqueza que se tem?

Não. Digo o mesmo aos meus filhos. Eles também têm de trabalhar, mostrar, provar. O rico que não pensa, gasta o dinheiro e não dá nada à sociedade. Todos temos obrigação de deixar o mundo um bocadinho melhor do que o encontrámos. E quem tem mais possibilidades, tem mais obrigações. Esta casa é muito bonita, e tudo isso, mas vivia-se num regime de alguma austeridade económica. Levava uma descompustura por não ter apagado a luz, por ter feito não sei quantas chamadas de telefone. O meu pai andava de eléctrico e só teve carro aos 50 anos.

 

No contacto com os amigos do seu meio, entre os quais estava na infância o rei Juan Carlos, não havia este tipo de contenção...

Havia também, havia. Saíamos à noite, o equivalente às discotecas de hoje eram boites com orquestra. Eu aguentava-me com um whisky toda a noite, porque não tinha dinheiro para mais.

 

Desculpe, mas não estou nada a ver o rei Juan Carlos a poupar no whisky.

Era bastante assim. Por isso é que se bebia muito menos. O rei Juan Carlos na altura não era rei, as coisas faziam-se com mais parcimónia. Esse tipo de educação está certo. Não alardear riqueza, não precisar de alardear. Está moralmente certo.

 

Fez sempre um percurso ascensional, foi educado para ganhar. A dor de perder pesa sobretudo pela contrariedade que representa?

A palavra dor é capaz de ser excessiva. A vida tem altos e baixos. Quando nos metemos seja em constituir um partido político, seja em criar um jornal ou uma televisão, seja em ganhar as eleições do Automóvel Clube de Portugal (que em 1974 foram importantíssimas), uma pessoa vai à luta para ganhar e para fazer.

 

Isso é conquistar, ganhar, avançar.

É avançar, mais do que ganhar. O ganhar dá um aspecto ganancioso. Não estou na vida para perder, nenhum de nós está.

 

A história diz-nos que as pessoas que fazem avançar o mundo têm normalmente uma desvantagem à partida, e encontram motivação justamente nessa desvantagem. Não consigo perceber bem onde radica a sua motivação. É somente na formação moral que lhe deram em casa?

Cada pessoa é como é. Quando fui para o Diário Popular, tinha a desvantagem de ser filho de um accionista e sobrinho do presidente do conselho de administração, que era o maior accionista. Fiz um grande esforço para mostrar que tinha valor próprio. Não gosto de auto-elogiar-me, mas penso que tive uma grande contribuição no que conseguimos naqueles sete ou oito anos. Provei a mim próprio que não era só o filho do patrão.

 

Queria provar a si próprio, ao seu tio, ao seu pai, à redacção?

Claro. Até é capaz de ter explicações freudianas. Via que tinham confiança em mim e fizemos ali uma pequena revolução. Como comprar um telex ou a organização da redacção, em secções, as edições Norte, Sul, Centro e Lisboa, o curso de jornalismo, etc.

 

Foi através do Diário Popular que chegou à política? Foi fundamental, para essa aproximação, ter sido aluno de Marcelo Caetano e amigo dos seus filhos?

Houve vários vectores. Fiz a tropa na Força Aérea, fui lá parar por sorte.

 

Por sorte?

Quando fui para a tropa ainda não havia guerra. O Exército era um ano e meio de tropa, a Força Aérea dois. Houve um sorteio entre os cadetes e fui um dos sorteados para ir para a Força Aérea. Fiquei chateadíssimo porque eram mais seis meses de tropa! Vem a guerra de África, os meus colegas que tinham ficado no Exército foram mobilizados para vários sítios, e nós, os sorteados, ficámos todos em Lisboa. Eu fui para o gabinete do então Coronel Kaúlza de Arriaga.

 

Que impressão lhe deixou? Ele era inquestionavelmente de Direita. O seu posicionamento, pelo contrário, afirmava-se pela oposição ao Regime e a uma Direita instalada.

O agora general Kaúlza de Arriaga foi de certo modo maltratado pela História, foi sendo empurrado para a extrema direita, à qual, na altura, julgo que não pertencia. Da mesma maneira que Otelo foi parar à extrema esquerda. O mesmo Otelo que, logo a seguir ao 25 de Abril  dizia que a Social Democracia era o mais à esquerda que ele iria (está publicado no Expresso).

 

Voltemos ao modo como se meteu na política.

Em Direito, quem tivesse uma determinada média, podia frequentar o curso complementar, a que chamávamos o sexto ano. Acabei por não concluir o sexto ano. Tive uma paixão e achei que ia casar.

 

Não o sabia capaz de mudar de repente a vida por causa de uma paixão.

Com certeza. Acabei por não casar com a pessoa em causa, mas entretanto fui para a tropa no quinto ano da Faculdade e depois as coisas complicaram-se quando estava no sexto. Fiz algumas opções políticas, talvez inconscientes. Com o professor Silva Cunha fiz um trabalho a defender que o assalto ao “Santa Maria” não era crime de pirataria, o que muito o contrariou. Com o professor Martínez fiz um trabalho defendendo o direito à greve, o que, na altura, era um sacrilégio.

 

Conseguiu dar-se com o professor Martínez com um tema desses?

Lindamente. Mais tarde convidou-me para seu secretário como Ministro da Saúde, a mim e ao Dr. Ruella Ramos. Quando saí da tropa, não fui directamente para o Diário Popular, ainda estive uns meses como secretário do professor Martínez. Um outro professor que tive foi Marcelo Caetano, que já conhecia, tinha relações com os filhos. Realmente era um grande professor.

 

Já envolvido na política, acreditou francamente na mudança que Marcelo prometia?

Acreditei.

 

Quando Sá Carneiro e Miller Guerra, seus companheiros de bancada, saem desiludidos alguns meses depois, o senhor fica. Havia uma réstia de esperança?

Não tinha nada a ver com esperança. Entendi que era útil ficar e fiquei, embora respeitando as posições de Sá Carneiro e de Miller Guerra. Durante muito tempo, os discursos que fazíamos na Assembleia não eram tocados pela censura. Era um tribuna importante.

 

Em 1968 tinha então esperança numa reforma marcelista.

Completa. E acreditei que era possível fazer uma reforma sem necessidade de uma revolução. Era o que podia ter acontecido. Apesar do problema de África, que era muito complicado.

 

A transição seria possível sem uma ruptura? Tudo parecia tão inflamado que o que mais espanta é que a Revolução tenha acontecido sem sangue.

É verdade que foi uma revolução sem sangue, mas não deixou de ser uma revolução. Podíamos, no entanto, ter feito uma reforma sem os extremos revolucionários a que se chegou. Em 69 as eleições foram mais livres. A Oposição foi até ao fim, coisa que nunca tinha feito. Deveriam ter sido completamente livres.

 

O que é que acabou por conduzir irredutivelmente à Revolução?

Houve uma série de interesses militares e económicos, que se juntaram em torno do Presidente da República Américo Tomás, que não deixaram Marcelo Caetano avançar. Ele a dada altura desistiu, achou que não era possível. Começou a enraivecer-se ou a não compreender as atitudes dos que tinha convidado para fazer a mudança. É aí que aparece a Ala Liberal, uma espécie de partido da Oposição dentro do establishment da altura. Perguntava-me como é que me meti na política? Acima de tudo, foi o Diário Popular, foi a censura, foi o contacto com muita gente claramente da Oposição.

 

No início da década de 70 estava com o jornalismo, a política e a advocacia. O que é que queria fazer à vida?

Voltando à história da família, havia no Diário Popular um outro accionista que convenceu o meu tio de que vali a pena vender e arranjou comprador. O meu tio disse que só venderia por 200 mil contos, que era um preço exorbitante. O grupo do Banco Borges comprou. Mas eu não queria, não queria nem por nada. O meu pai tinha morrido e herdei a posição accionista de 16% que ele detinha. Quando o meu tio decidiu vender percebi que também tinha de vender, porque não fazia sentido ficar como accionista minoritário. Os 16% renderam 32 mil contos, um dinheirão. Resolvi fazer qualquer coisa por mim próprio, provar a mim, à família, ao mundo de que era capaz.

 

Fez o Expresso sem o dinheiro do seu tio?

Sim. O meu tio relutantemente meteu 1%!

 

Era a forma de dizer que afectivamente estava consigo?

Acabou por estar. Mas foi nessa base que fui educado. «Queres? Então, faz, não anda o tiozinho contigo ao colo.» Eu queria continuar nos jornais. Eu queria fazer o Expresso.

 

Sempre na dupla vertente do jornalista e do empresário?

O facto de ser jornalista tem-me dado muitas vantagens. Entre os empresários da área da comunicação social sou o único que também é jornalista. Que se mete e é respeitado. Que tem autoridade para dizer: «Esse título está uma porcaria» ou «Vamos mudar o cabeçalho da revista». Mesmo em televisão, hoje em dia, julgo que tenho bastante know how sobre o que está bem e o que está mal.

 

A política ganha progressivamente peso e no final dos anos 70 torna-se prioritária. Mas ainda na primeira metade da década, surge o Expresso.

Ninguém previa que o 25 de Abril viesse a acontecer naquela altura.

 

Não?

Com aquela rapidez, não. Quando arranco com o Expresso, em Janeiro de 73, não. Uns tempos depois, já em 74, sim. A política para mim estava acabada. Sabia que não iria ser convidado aquando das legislativas de 73,  e, de qualquer modo, nunca aceitaria um novo mandato como deputado. A advocacia não me corria mal, tinha um escritório simpático com amigos meus, mas não era o meu ideal de vida. Viver dos rendimentos, nunca me passaria pela cabeça, nem então nem agora. Portanto, a motivação era o jornalismo, e é.

 

A política estava acabada porque não imaginava que a Revolução estaria perto.

Alguma intervenção na sociedade seria mais viável através de um semanário com determinadas características.

 

Quando funda o Expresso era já amigo próximo de Sá Carneiro. Havia uma intenção política subjacente ao jornal?

Havia a intenção de criar um órgão de comunicação social com características inovadoras, inspirado no modelo dos jornais de domingo ingleses de qualidade e que, sem vetar o acesso de outras correntes ideológicas, permitisse canalizar e exprimir opiniões ligadas à Ala Liberal.

 

Havia a noção de que Sá Carneiro poderia ser aquilo que veio a ser e que o Expresso seria uma tribuna privilegiada para essa promoção?

Havia a noção da capacidade criativa, da coragem e das qualidades de liderança de Francisco Sá Carneiro, havia o capital político por ele criado e pela Ala Liberal e que o Expressso veiculava, sem por isso deixar de ser, como hoje, um projecto jornalístico. Havia também o “Portugal e o Futuro” do General Spínola que tinha saído e que foi um marco importante. Havia uma certa identidade entre a Ala Liberal e o pensamento de Spínola, no sentido de uma terceira via democrática. O capital político estava a alargar-se e havia sinais de que outros sectores da sociedade estavam connosco, incluindo militares.

 

Sá Carneiro tinha um talento político mais apurado que o seu?

Acho que sim, sem qualquer dúvida.


É qualquer coisa que percebe agora, retrospectivamente? Pela mitificação de que foi alvo, resultante da sua morte trágica?

Já na altura o percebia. O PPD aparece porque ele, logo a seguir ao 25 de Abril, é entrevistado no Porto e diz que vai fazer um partido. Sem perguntar a ninguém. Eu depois telefono. «Que é isto, é verdade mesmo? Então vamos a isso.» Não nos pudemos chamar Partido Social Democrata porque já haviam sido anunciados dois partidos sociais democratas, que nunca chegaram a ser constituídos.

 

O partido chamou-se PPD e queriam filiar-se na Internacional Socialista.

Não conseguimos porque o PS nunca deixou! O Dr. Mário Soares ia tentando empurrar-nos para a Internacional Liberal, a dizer que era muito bom...

 

A dizer que o PS era verdadeiramente a Esquerda, e a empurrar-vos para a Direita, para uma facção conservadora.

O CDS era o partido do centro! O pêndulo foi daí para a Esquerda. O próprio PS queria a nacionalização de todos os meios de produção e de troca.

 

Durante o PREC, o Copcon avisou-o de que as Brigadas Revolucionárias iam ocupar o Expresso. Consta que o senhor estava com pistola em cima da mesa...

É verdade, andava de pistola. Tinha-a no carro, habitualmente. Várias vezes fui avisado por militares amigos a não dormir em casa.

 

Tinha medo realmente que lhe acontecesse alguma coisa? Estamos a falar de que cenário?

Se é avisado por pessoas bem informadas: «Não durma em casa hoje que pode ser perigoso...», é para levar a sério.

 

E a pistola?

Se eles assaltassem o Expresso, tínhamos de defender-nos, não é? Nas fases mais quentes do pós - 25 de Abril, eu voltava quase sempre muito tarde para casa, quando lá dormia. A minha mulher, que trabalhou muito no PPD dos tempos heróicos, vinha quase sempre comigo no carro. Na rotunda de Cascais, a minha mulher tirava a pistola do porta luvas; quando chegávamos a casa, eu arrumava a pistola, saía primeiro, olhava à roda a ver se havia alguém; dizia-lhe para sair, protegia-a, ela abria a porta e depois entrávamos. Assim contado parece uma coisa de cinema. Ao fim de quinze dias faz-se isto com a mesma rotina de quem acende um cigarro.

 

A carga simbólica da pistola...

Quem me deu a pistola foi o Major Vitor Alves, que me disse que eu não podia deixar de ter uma pistola. Quando a coloquei em cima da minha secretária no Expresso, perante a iminência de um assalto, era também para dar confiança às minhas hostes!

 

Quando é que deixou de andar com a pistola?

Depois do 25 de Novembro.

 

Até ao 25 de Novembro achou que o país podia entrar numa guerra civil?

A minha tese é que o Partido Comunista, com a independência de Angola a 11 de Novembro, foi instruído por Moscovo a sossegar. Já estava conseguido o que Moscovo queria no plano mundial, que era a entrega das colónias a movimentos afectos à linha soviética. Se o Partido Comunista mantém a aliança com a FUR [Frente de Unidade Revolucionária], podíamos ter tido um grande sarilho, pelo menos em Lisboa, na altura do 25 de Novembro. Aliás, a maioria dos dirigentes políticos emigrou para o Porto nesse dia ou na véspera. Eu não. Estava no Expresso.

 

Qual acha que é o seu carisma político?

Não sei bem que critérios se podem utilizar para aferir o carisma político. É chegar a um comício e conseguir comunicar com as pessoas? Se é isso, acho que sim. Se é um carisma de liderança política ou liderança em geral, gosto muito de trabalhar em grupo e procurar consensos, mas também sei tomar decisões sozinho, por vezes contra tudo e contra todos. Se é ser o killer, o matador, aí menos. Não sou rancoroso. Não esqueço, mas perdoo facilmente. Não sei se para ter carisma político não é preciso ter esse instinto matador.

 

Mário Soares, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro são comummente apontados como as figuras da política portuguesa dos últimos 30 anos.

Apontou três pessoas que, de facto, têm carisma. Sá Carneiro mantém esse carisma. Faz hoje 22 anos que morreu. [dia da segunda parte da entrevista]

 

Lamenta que o seu carisma político não seja mais expressivo? Havia uma ambição pessoal no sentido de se afirmar e realizar no exercício da política?

Não. Interpretei sempre a minha posição na política como um serviço cívico. A minha ambição pessoal é muito mais ser eficaz - um vencedor, se quiser -  naquilo em que me empenho. Nesse aspecto sinto-me realizado. O Diário Popular, o Expresso, a SIC, sem falar numa quantidade de outras iniciativas desde o Prémio Pessoa ou do Prémio Milenium à Presidência, durante 9 anos, do European Institute for the Media e agora, desde Janeiro de 1999, à Presidência do European Publishers Council.

 

Em todo o caso quis ser Presidente da República. Nas duas últimas eleições falou-se do seu nome, sem que alguma vez, contudo, avançasse com uma candidatura.

Não é uma coisa que para mim seja fundamental. É evidente que se insistem consigo que o país precisa de si, que você é que é o grande candidato, a pessoa acaba por equacionar a opção.

 

Gostaria de ser Presidente da República?

Não é uma ambição, com toda a franqueza.

 

Todavia, no passado teve importância a ideia de poder ser Presidente da República.

Houve dois momentos. Um, quando o candidato do PSD é Cavaco Silva, em que achei que podia ser um bom candidato. Não foi possível por razões internas do PSD. Também não fiquei frustradíssimo e preocupadíssimo com o assunto.

 

Mas um bocadinho zangado, pelo menos?

Não. Zangado fiquei quando saí e senti que, durante longos anos, fui maltratado pelo meu partido.

 

Em 83?

Sim. Fiquei magoado. No meu partido, durante bastante tempo, à boa maneira da Enciclopédia Soviética, parecia que eu não tinha existido. Saltava-se de Sá Carneiro para Cavaco Silva. É feio, não se faz. Mas a pouco e pouco a justiça foi sendo reposta, Hoje em dia, os meus dois anos e meio como primeiro ministro já existem e são apontados como um activo do PSD. Voltando à Presidência da República: o meu partido entendeu que não e eu não pensei mais no assunto. O segundo momento foi agora, nas eleições que deram o segundo mandato a Jorge Sampaio. Aí foi ao contrário: no partido queriam que me candidatasse e eu não estive muito interessado. Até porque, há que ser prático e realista...

 

Ia perder muito dinheiro?

Não é isso. Era óbvio que o Dr. Jorge Sampaio ia ganhar. A não ser que o Presidente que está no poder tenha feito um péssimo primeiro mandato, normalmente ganhará o segundo.

 

Não queria entrar para perder.

Deu-me, no entanto, um certo prazer pessoal ter sido solicitado pelos mais variados sectores dentro do PSD.

 

A vaidadezinha conta.

A vaidadezinha conta, é evidente, desde que seja limitada e não nos tornemos uns pavões insuportáveis.

 

Arrumando a questão, não tem hoje qualquer ambição política?

Se houvesse um senado português ou europeu... Em Portugal e noutros países aproveita-se mal a experiência política e de vida de pessoas que, pelo seu percurso, ganharam uma grande sabedoria. 

 

Um senado consigo, com o Dr. Mário Soares, o Dr. Cunhal, o General Ramalho Eanes, teria a sua graça.

Teria. Mas há muito mais gente. O eng. Guterres, a eng. Pintasilgo, o Dr. Jaime Gama, o Prof. Deus Pinheiro, o Prof. André Gonçalves Pereira, etc.

 

No período em que foi Primeiro Ministro o ambiente era de intriga. Sobretudo no período que antecedeu a sua indigitação, depois da morte de Sá Carneiro, mas também depois disso, no seio da coligação. A intriga não tinha a ver, justamente, com o facto de não lhe reconhecerem um particular carisma político?

Não tem a ver com o carisma. Tem a ver com uma série de ambições de pessoas que não quiseram dar o corpo ao manifesto porque se queriam guardar para depois. Primeiro, tudo fizeram para que eu não conseguisse sequer formar Governo. Depois, tudo fizeram para que eu não conseguisse manter-me como Primeiro Ministro. Algumas delas foram obrigadas a vir para o meu segundo Governo. O ambiente de intriga aconteceu mais aquando da Constituição e durante o meu primeiro governo.

 

A extinção do Conselho da Revolução, a revisão constitucional e a preparação do caminho para a Europa são apontados como a sua herança política. Mas a situação financeira era deplorável. O país estava depenado. A inflação em 1980 era de 16, 6% e em 82 subiu para os 22%.

Não. Em 83, quando saímos, estava em 18, 8%. Tenho a certeza, é um número que tenho de cabeça. No Governo seguinte é que chegou a 29% ou coisa assim.

 

A dívida externa também aumentou nesses dois anos cerca de quatro milhões e meio de dólares.

Havia um problema no balanço cambial importante que já vinha de trás.

 

No fundo, conseguiu fazer estas coisas, que são importantes e de que se orgulha, mas as finanças saíram sacrificadas.

As finanças do país estavam mal, mas já não estavam bem antes. Já tinha havido vendas do famoso ouro de Salazar. Acresce que foram anos difíceis para a economia mundial, o petróleo subiu, as remessas de emigrantes baixaram, o turismo também. A balança cambial fica numa situação complicada. De qualquer modo, o desemprego não aumentou. Penso que fizemos bem em não aceitar o colete de forças que o Fundo Monetário Internacional nos queria impor.

 

Ainda nesse período, é muito comentado o estoicismo com que suportou os ataques que no Expresso se faziam à sua prestação. Já disse que esse foi um dos seus melhores investimentos porque lhe granjeou independência e respeitabilidade. Mas deve ter custado.

A crítica não me custou, custou-me o exagero ou as notícias falsas. Tenho dito que uma parte desses ataques podem ser interpretados freudianamente como uma tentativa de matar o pai.

 

Mas pelos anos fora, há casos que parecem contradizer esta capacidade do passado. O de João Carreira Bom é o mais conhecido, há também o de Joaquim Vieira, e há semanas o nome de Maria José Morgado, proposta como personalidade do ano, foi vetado.

Os três casos que citou são completamente diferentes uns dos outros. Não gosto de falar de pessoas... É diferente o accionista principal da empresa que é proprietária de um jornal não estar lá, e exercer uma função política que por definição é criticável, da situação em que o accionista principal e maioritário e presidente do conselho de administração é ofendido pelo próprio jornal. Se sou presidente do conselho de administração do Expresso, ninguém no uso das suas faculdades mentais pode insultar-me no meu próprio jornal. Nem noutro. Mas naquele muito menos [Carreira Bom]. Se existe uma direcção do jornal e um dos membros dessa direcção não cumpre as instruções do seu superior hierárquico, essa pessoa não pode ficar [Joaquim Vieira]. Se há um regulamento interno para a eleição pela redacção das figuras do ano que prevê um direito de veto, embora excepcional, esse direito de veto pode ser exercido [Maria José Morgado].

 

É inimaginável numa instituição como o Expresso.

Não, não é. Porque o regulamento existe. Então, vamos discutir o regulamento antes da votação, e não depois.

 

Há um perigo, que colateralmente tem a ver com isto, e que resulta da concentração editorial. Vamos imaginar que esta entrevista o incomoda. Já pensou na quantidade de orgãos de comunicação nos quais passo a ser uma persona non grata?

Não passa nada. Pode é passar a ser uma persona non grata para mim e eu nunca mais lhe dou uma entrevista...

 

Deixo potencialmente de poder trabalhar  na SIC, no Expresso, na Visão, etc.

Temos o direito de admitir quem quisermos.

 

Concorda então comigo.

Não, não concordo. A questão não está em eu gostar ou não da entrevista. Está em a entrevista ser profissionalmente bem feita, bem escrita, rigorosa quanto ao que dissemos, ou não ser.

 

Não vê sinceramente perigo neste monopólio que aperta o cerco à liberdade?

Não, desde que cada publicação tenha a sua independência e o seu estatuto editorial. E, claro, desde que se apliquem à área da comunicação social as regras gerais de defesa da concorrência.

 

Voltando aos casos: o Carreira Bom fala mal da SIC no Expresso. Por coincidência, ambos lhes pertencem.

Não fala só mal da SIC, fala mal de mim, também. E de que maneira.

 

Sentiu-se pessoalmente tocado?

Com certeza, a questão é essa.

 

O senhor é mais o Dr. Balsemão que fundou o Expresso ou o Dr. Balsemão que fundou a SIC?

A SIC é um projecto para chegar a milhões de pessoas. O Expresso vendeu 147 mil exemplares no sábado passado. São públicos diferentes. O Expresso é mais antigo e por isso está ligado há mais tempo à minha vida. Mas isso não me impede de ter uma total dedicação e um grande amor pela SIC. E,  dentro da SIC, há ainda os canais temáticos.

 

A SIC Notícias será o equivalente televisivo do Expresso?

É mais comparável. Não quer dizer que eu menorize a SIC generalista.

 

Enquanto homem, e não enquanto empresário, sente escrúpulos em pôr no ar programas como o «Masterplan»?

É claro que da minha grelha pessoal ideal não faria parte o «Masterplan». Mas há outros programas que a SIC já passou e que acho menos incluíveis que o «Masterplan»...

 

Por exemplo?

O «Confiança Cega». A palavra escrúpulo parece-me exagerada. Há coisas que fizemos mal, mas também no Expresso e em todo os sítios onde tenho estado errámos muito vezes, exagerámos muitas vezes. E aí, há que reconhecer e pedir desculpa ao público. O público é mais inteligente do que muita gente pensa. E castiga, mudando de canal, deixando de ler jornais e revistas. Normalmente castiga quando acha que o estão a enganar.

 

O Expresso tem feito uma abordagem mais sensacionalista de certos assuntos. Estou a lembrar-me por exemplo das fotografias do casamento da Bárbara Guimarães e do Manuel Maria Carrilho. Era uma coisa que não esperaria ver no jornal há uns anos.

Era um conjunto de fotografias, a preto e branco, que nos foram facultadas e que entendemos que, dada a publicidade em torno do evento, se justificava publicar. Isso não revela uma tendência do Expresso.

 

Sensacionalista por ser vazio. Não é senão o álbum de casamento de dois cidadãos que por acaso são conhecidos.

Recuso essa imagem sisuda e intelectualoide. Não vamos fechar-nos às coisas que vão acontecendo e que as pessoas têm curiosidade em conhecer. Não podemos levar-nos tão a sério.

 

Concessões ao mercado?

É uma abertura. Não é uma característica essencial do produto Expresso. Se o fizéssemos todas as semanas, mudávamos de personalidade. Mas não fazemos. A história do nu, lembra-se? Foi engraçado.

 

Lembro. As fotografias eram deploráveis.

É a sua opinião. Mas não se esqueceu. De vez em quando é preciso chocar um bocadinho as pessoas. Apesar de tudo, com critério. Goste ou não das fotografias, elas tinham uma certa finalidade.

 

No dia a dia continua embrenhado nas coisas miúdas dos projectos. É isso que o realiza?

É, é a parte dos conteúdos. Não apenas na vertente “coisas miúdas”, claro.

 

Faz isso para se sentir vivo?

Se quiser pôr a coisa assim... Faço porque gosto. A consequência é sentir-me vivo.

 

Tem medo de morrer?

Não. Gostava de morrer depressa. Aqueles que adormecem e já não acordam. É melhor do que a morte do género: «Nem o pai morre nem a gente almoça». Mas não podemos escolhê-la, não é?

 

Agora que já passou os 60, pensa mais nisso? Pensa em deixar as coisas organizadas?

Já penso mais nisso, como é evidente. Preocupo-me em organizar o Grupo no sentido de ele ser cada vez mais uma instituição, sem depender excessivamente de uma pessoa. Já há bastante tempo que temos uma estrutura bastante descentralizada.

 

A situação económica do grupo não é famosa, sobretudo desde a entrada da Impresa na Bolsa. Sente que está a perder o pé?

Se estou a perder o pé? Se olhar para o panorama mundial, as coisas não vão bem em geral e não vão bem para as empresas de media em particular. Por causa da queda da publicidade, acima de tudo. As acções da Impresa baixaram, como baixaram em toda a parte. Todos temos problemas, mas é também nestas alturas que se vê quem é quem.

 

Lamenta que este revés aconteça nesta fase da sua vida?

Não me sinto tão acabado quanto isso...

 

Seria capaz de pôr os seus bens pessoais em risco para salvar a SIC ou o Expresso?

Uma parte muito considerável dos meus bens pessoais está amplamente envolvida em todo este projecto. Quando fomos para a Bolsa, se tivesse querido vender, apareceram interessados. E tinha feito muito dinheiro, as acções valiam quase seis vezes mais.

 

Isto são machadadas...

São vicissitudes. Quando se está na Bolsa, é tudo mais visível, é possível fazer contas todos os dias.

 

É o tipo de coisa que o abala?

Abalar? Parece que a pessoa fica obcecada a pensar nisto.

 

Mas é isso mesmo que pergunto, sabendo como sabemos qual é a sua relação com o dinheiro.

A minha relação é muito mais desprendida do que está a insinuar. Não faço todos os dias contas de quanto estou a perder ou a ganhar conforme as acções sobem ou descem.

 

Claro que faz.

Não faço de todo, nem pensar. Se me perguntar como está a Bolsa neste momento, não sei. Sei que não deve estar muito bem porque ouvi no rádio, esta manhã, que Lisboa tinha aberto a descer. Abalar não é a palavra. Naturalmente preocupo-me. Temos de estar preparados para esperar até as coisas darem uma volta. O problema é a impotência, estamos dependentes da economia mundial e europeia e portuguesa.

 

O que é que o abala?

Desgostos pela morte de pessoas queridas, como foi o caso do meu grande amigo Francisco da Costa Reis. Felizmente tenho sorte, e não tenho problemas com os meus filhos, netos e mulher.

 

Uma vez que estamos à mesa, gostaria de concluir perguntando-lhe qual é o seu prato preferido.

Depende, não tenho um só. Gosto imenso de cozido à portuguesa. Mas também gosto de caviar. Não é incompatível. Gosto de mariscos, gosto muito de queijo da serra, gosto de ovos de várias maneiras e feitios, de chouriço, de chocolate preto.

 

Publicado originalmente no DNA, do Diário de Notícias, em 2002.