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Anabela Mota Ribeiro

Francisco van Zeller

20.03.14

Francisco van Zeller, o terceiro de 11 irmãos, o pai de quatro filhos muito diferentes entre si. Casado com a jornalista Maria João Avillez. Empresário, engenheiro químico. Ex-presidente da CIP. Um homem influente. Em tempos foi rico.

Mas não gostaria que ficasse dele esse retrato: o de homem de sociedade, o de menino com infância privilegiada.

Mesmo que tenha sido tudo isso.

Conversámos quase duas horas. Nas quais, como num filme de Visconti, num longo travelling, nos detemos no brilho dos cristais, no conteúdo das gavetas, nos gestos elegantes, na angústia, na dilaceração, na intensidade do protagonista. Há em Francisco van Zeller qualquer coisa do seu pai, que pensava que com os homens se fala de assuntos sérios e que as mulheres são para mimar. E há nele qualquer coisa da mãe e da avó (das mulheres da família), que com graça enchiam um salão e descreviam a cena como num romance.

Também falámos de coisas do dia a dia, como fazer contas. Ou de quando se “opôs”, como então se disse, ao aumento do salário mínimo. Ou da localização do novo aeroporto de Lisboa. Ou da relação com Vieira da Silva e com os socialistas. Do que é ser de direita e dar-se “com a maior das facilidades” com a esquerda.

Há palavras que marcam, palavras de código, um vocabulário que define de que lado de está. “Pessoal”. “Pouquíssimo”. “De todo”. Só para dar três exemplos.

Que podem não querer dizer nada. Ou que dizem.

Tem uma postura física algo hirta, e depois percebe-se que essa é só uma expressão do seu modo de ser. É extraordinariamente amável e bem educado. Com a voz, o mesmo: dura, sem dissimulação, e clara.

É também, surpreendentemente, um homem inseguro. E um homem capaz de confessar as suas inseguranças.

A entrevista aconteceu na sua nova casa, no AICEP. As fotografias aconteceram na sua casa de família.  

 

 

Nasceu em 1938. Tem memórias de infância relacionadas com a Segunda Guerra Mundial?

Tenho imensas. A primeira recordação é a das restrições, principalmente da manteiga, açúcar, ovos e arroz. Só começo a ter memória no fim da Guerra, em 1943/44. Lembro-me de haver discussões na nossa família entre os pró-germânicos e os pró-britânicos. Tios a gritar muito uns com os outros. Toda a sociedade portuguesa foi atravessada – já ninguém se lembra, mas foi. Lembro-me de ver as janelas com os adesivos, por causa dos estilhaços. E de aviões britânicos a aterrarem.

 

Onde?

Hidroaviões a aterrar no Tejo, mesmo à nossa frente, no Verão de 1944. Mas era uma coisa solta. Para nós era um divertimento, era inglês e era da Guerra. Só muito mais tarde é que as coisas se começam a ligar. Aterraram em Portugal, entre ingleses e alemães, centenas de aviões que se perdiam das suas formações e que aterravam em Portugal porque era um país neutro, não constituía perigo, não eram presos. A mais severa de todas as memórias tem a ver com um vizinho de origem alemã. Eram dois irmãos gémeos, um naturalizou-se português, o outro não, e foi chamado para a Guerra com 16 anos. Depois lembro-me de uma grande choradeira quando apareceu lá em casa um envelope da Alemanha que ninguém queria abrir, pensando que era o anúncio da morte dele; mas tinha sido apenas ferido.

 

Nas discussões pró-germanófilas, pró-Aliados, como é que os seus pais, e núcleo familiar mais restrito, se posicionavam?

Penso que eram pró-Aliados. No nosso caso, era pró-Inglaterra. Nunca se falava em Aliados. Os americanos eram uma coisa estranha. Mas a minha avó, mãe do meu pai, tinha tido uma educação alemã, e era pró-Alemanha. Até saber o que se estava a passar. Até 1943, 1944 pouco se sabia do que se lá passava, não havia informação suficiente para se tomar partido.

 

A família van Zeller tem uma matriz judaica?

Não. Holandeses e católicos. E por serem católicos, foram expulsos da sua cidade de origem. Começaram a fazer negócios internacionais e acabaram por se estabelecer em Portugal. O primeiro estabeleceu-se em 1720.

 

A genealogia da família: pesquisa-se, qual é a sua importância? No fundo, o que é que significa ser um van Zeller?

Já não tem grande significado, perdeu-se ao longo dos anos. Houve muitas misturas. Sou o oitavo descendente desse senhor, Arnaldo João. Mais próximo estou da família belga, do meu bisavô. Fiz uma festa da família em 1988, com outro primo do norte, e enviámos mais de 800 convites a toda a família espalhada pelo mundo. Vieram 300 ou 400, muitos dos quais não conhecia.

 

Tem dez irmãos.

É menos aventuroso do que se pensa. Era uma casa muito grande onde viviam também tios, a minha avó, o pessoal… havia gente que nunca mais acabava. Tudo aquilo funcionava com muita disciplina. Só depois de fazermos a 4ª classe é que almoçávamos e jantávamos com os nossos pais.

 

Era o prémio?

Ganhávamos uma bicicleta e jantávamos à mesa com os pais. Antes disso era na copa. Arranjávamo-nos para ir à mesa falar aos pais antes de ir para a cama. Mãos fora das algibeiras, muito direitos, formados por altura, davam-nos um beijinho na testa e andor para a cama.

 

Código estrito. Tem memória dos seus pais a fazerem um gesto de carinho?

Os meus pais eram muito meigos connosco, não tinha nada a ver com afastamento. Eram pais e mães verdadeiros. Lembro-me de contarem, em relação aos pais deles, do afastamento, esses sim. A minha mãe foi educada pela avó, não pela mãe. O meu pai foi educado por uma senhora inglesa, porque a minha avó tomava conta do meu avô, que era muito doente. O meu pai tinha formação inglesa severíssima. Nunca se encostou numa cadeira, nunca teve frio nem calor, a comida nunca esteve salgada nem deixou de estar, até à morte viveu direito, e nunca se queixou de nada. Desporto, muito desporto, desde pequeno. Rezava e contava e inglês, sonhava em inglês. Até à morte do irmão, sempre que se zangavam, discutiam em inglês. Era a maneira de ser dele.

 

O senhor é assim?

Não. Saímos todos à nossa mãe. Às vezes penso nisso e tenho pena. Ele adormecia e acordava como um relógio, com uma vida completamente regular. Muita energia, trabalhava 12 horas por dia. Até aos 75 ia à caça de salto, a pé, nunca fez “caça dos ricos”, como ele dizia.

 

Na vossa educação, falavam em que língua?

Simultaneamente francês e inglês. Desde que me conheço.

 

Tinham uma mademoiselle que falava em francês e o pai em inglês?

Tínhamos lições. E depois o piano. Fazia parte.  

 

Curioso, isso de todos saírem à mãe.

Ou não termos saído ao pai [risos]. Havia uma influência muito forte do lado da minha mãe, que era a minha avó. Era neta de Ramalho Ortigão e todos nos lembramos disso por causa do humor dela e da capacidade descritiva. Tinha a capacidade de encher uma sala com graça. Passávamos três meses por ano em casa dela, no Verão. Pode ter tido influência na rejeição daquela maneira de ser do meu pai, tão disciplinada. Esses três meses por ano mostravam-nos que havia uma vida diferente.

 

Espirituosa.

Muito mais espirituosa, alegre, de salão, literária. O pai tinha o vício, a religião do trabalho. Isso herdámos. Com a minha idade continuo a trabalhar, de graça, por amor ao trabalho. O trabalho justifica-se em si próprio.

 

Porque realiza, faz sentido?

Sim, e porque é quase uma obrigação: se as pessoas podem trabalhar, têm que trabalhar. Os meus irmãos são assim também.

 

A sua mãe nunca trabalhou, imagino.

Não, ficou a tomar conta de nós todos, coitada.

 

O seu pai trabalhava na empresa da família, a Metal Portuguesa?

Dele. Ele é que fez tudo, de raiz, imediatamente antes da Guerra. Pode ter sido a Guerra que a fez prosperar. Era um negócio que durante a guerra dava muito (a recuperação de baterias velhas para fazer chumbo, que fazia imensa falta para as balas). Depois construiu muitas outras empresas ao longo da vida. Nenhum de nós tem essa capacidade de iniciativa.

 

Trabalhou na empresa.

Aos 26, 27 anos, trabalhei com um sócio dele, e o meu cunhado trabalhou com o meu pai. Os dois herdámos o trabalho dele e do sócio. Eram dois e dois ficámos até ao fim, quando o meu cunhado morreu em 1992. Saí da empresa em 2002. Desde muito cedo, 10, 12 anos, ia para o laboratório da fábrica. O meu pai deixava-me com uma senhora fantástica, a Dona Lúcia, que me entretinha a fazer químicas. Um dia disse-me que se gostava de química, ia para engenheiro químico. Aquilo ficou-me na cabeça. O meu pai é engenheiro, os irmãos e a família toda da minha mãe eram engenheiros: não havia dúvida nenhuma.

 

Não sai ao pai no resto, mas a escolha do seu destino profissional…

Foi um bocadinho dele, mas influenciado pelo tal sócio. Desde os 12 anos que o ouvia dizer que estava à minha espera. E assim foi, quando acabei a tropa fui para lá.

 

Ao mesmo tempo, podia ser altamente castrador.

De todo. Era natural nos filhos dos grandes industriais. Ainda hoje na Alemanha e em grande parte da Europa é assim: os filhos herdam os negócios dos pais e desde muito cedo mergulham nesse ambiente. Nunca senti nenhuma prisão nem vontade de fazer diferente. Fiz muitíssimo diferente do meu pai lá dentro. Entre mim e o meu cunhado transformámos a empresa. Só ficou o nome. Quando saí, no último dia, olhei e pensei que tudo o que ali estava tinha sido eu a fazer. Não era nada que tivesse herdado do meu pai, nada. Não havia um parafuso, uma telha, uma cor, um interruptor, uma secretária, nada da empresa que recebi. O meu cunhado, idem. Fechámos todos os negócios que o meu pai nos deixou e começámos negócios novos. O meu pai tinha imensa admiração pelo nosso trabalho.

 

Essa admiração era expressa?

O mais possível. Convidava-nos para contar o que estávamos a fazer e encorajava-nos, dizia-nos que era a nossa hora. O espanhol, [o sócio], um bocadinho menos; por ser mais velho teve dificuldade em adaptar-se a tanta modernidade.

 

Nesse tempo, olhava para si como sendo o sucessor?

Sem dúvida. O meu irmão foi para Agronomia. Sentia a responsabilidade, embora partilhada com o meu cunhado. Quando o meu pai saiu fez-se um acordo para sermos presidentes em rotação, e nunca quis. Até ele morrer, foi sempre o presidente.

 

Porquê?

Porque era um tipo fantástico. Tinha muita iniciativa. Regrado, ambicioso, bom de contas, a vender e em contactos com clientes. Talvez não tivesse tanta imaginação como eu; as novidades e as inovações eram para mim. Era uma combinação perfeita. Até em família, o meu pai tratava-o como se fosse filho. Uma curiosidade do meu pai: admirava os filhos imenso, as filhas eram para mimar.

 

Como assim?

Havia uma distinção na cabeça dele: negócios, trabalho, esforço, caça, fábricas: os homens. Tudo quanto era divertimento, ir ao cinema, viagens, compras, vestidos: as raparigas. Para ele era simplicíssimo. [risos]

 

Emocionalmente, como é que foi ser o herdeiro do seu pai?

Não tive emoção nenhuma. Nunca o assumi como um fardo ou como uma herança especial. Tinha a obrigação de que a empresa funcionasse e desse dinheiro (era daí que o meu pai vivia depois de se reformar). Felizmente sempre foi uma empresa muito rentável. Comparo os valores de crescimento daquele tempo, de 30 e 40 por cento durante 10 anos seguidos; hoje é impensável. O meu irmão número sete também trabalhou lá – brilhante; depois saiu e abriu um negócio relacionado com este. E depois estiveram os mais novos, e o mais velho, todos trabalharam. Tive um lugar de topo por ter chegado primeiro e por ter tido este curso.

 

Estudou no São João de Brito, mas depois foi para o liceu Gil Vicente. O liceu fica na Graça, que é um bairro popular.

Era uma regra. A nossa casa era ali em Santa Apolónia. E quanto a ir para o liceu, era por essa razão: por ser popular. O meu pai não nos queria metidos num casulo. Mesmo assim só fui ao cinema pela primeira vez quando tinha 12 ou 13 anos.

 

A casa era o mundo?

Era. Vivíamos todos lá dentro. Os irmãos, os primos, 18 ao todo. Eram andares e tinha o jardim comum onde nos encontrávamos.

 

Como é que foi chegar ao Gil Vicente vindo da sociedade?

Não me lembro de nenhum choque.

 

Foi a primeira vez que se deu com pobres?

Não. Para já, não eram pobres. Quem entrava para o liceu já não era pobre. O colégio São João de Brito, que se pensava que era uma grande elite, não era. Os jesuítas admitem muita gente que não paga. Sabia que havia alguns com dificuldades, havia ao pé de nós um lar dos filhos de professores primários (não era gente com muito dinheiro), e era com esses que ia para o liceu. Nunca tinha visto dinheiro. Só comecei a ter dinheiro quando fui para o liceu.

 

Não se falava de dinheiro?

Não.

 

Quando não há dinheiro, fala-se. Grande diferença.

Talvez. Nunca precisei a não ser para ir para o cinema. Quando fui para o Técnico, aí sim, fazia falta. Tinha a Vespa, tinha que meter gasolina, comer fora. No dia em que acabei o curso, o meu pai deu-me um envelope e disse que aquele era o último, acabou-se.

 

Como é que aprendeu a gerir e a dar valor ao dinheiro?

Nunca tivemos muito dinheiro. Talvez o meu pai tivesse, e bom proveito para ele, mas nunca foi generoso connosco a dar-nos dinheiro. Tínhamos roupas, comida; agora, dinheiro na mão, pouquíssimo. Nunca tive dinheiro a mais, a não ser com os primeiros ordenados, já com 24 anos.

 

Não lhe ocorria, se precisava, pedir ao pai?

Se fosse, era à mãe.[risos]. O pai tinha a religião da escassez, da poupança. Dinheiro para uma festa, para comprar bebidas, para ir a Cascais de Vespa? Nem pensar! “Vá de comboio”, dizia-me ele. Lembro-me de herdar as roupas e o calçado do meu irmão mais velho, e as minhas irmãs também partilhavam. Não havia esbanjamento. Na relação com o dinheiro, uma vez que a base estava satisfeita, não tínhamos mais necessidade nenhuma, a não ser para brincar. O meu pai era muito severo e não queria dinheiro a mais para brincar.

 

Como é que percebeu que havia pessoas que não tinham sequer essa base adquirida?

Naquele bairro onde vivíamos, que era muito pobre. Nas idas para o Alentejo, para as herdades da família alargada, também convivíamos com a gente do campo.

 

Mas era claro que uns eram filhos do pessoal e outros filhos dos senhores.

Sim. Como é hoje e será sempre – é histórico. Nesse tempo havia mais uma distinção, até da própria roupa. Agora não, tudo se veste da mesma maneira. Devo insistir que nunca vivi em função dessas diferenças. Elas existiam, mas não me afectaram muito.

 

Verdadeiramente nunca pensou como seria se estivesse do outro lado?

Só quando comecei a trabalhar e a ter responsabilidades sobre o pessoal, já com 26 anos. Ter que mandar, tomar medidas incómodas, aumentar ou não ordenados, ter que despedir – isso é que me marcou. Tinha autoridade para despedir uma pessoa que tinha mulher e filhos. Tinha de refazer, reformar as empresas, e muitas vezes tive de reduzir pessoal. Mas até ao fim penso que nunca abusei. Dei-me sempre bem com o pessoal. Havia muito patronalismo quando comecei a trabalhar, um respeito muito grande por quem mandava.

 

Respeito ou subserviência?

Respeito. Sei que era respeito porque eles traziam os filhos para os obrigar a estudar e me zangar com eles quando tinham más notas. Durante as férias: ocupá-los ali para não andarem na vadiagem (como diziam). E quando precisavam de dinheiro também vinham pedir, ou empregos para os filhos. Sinto que havia respeito da maioria. Talvez despeito também, dos que ficavam mais para trás.

 

Em nenhum momento, nem no 25 de Abril, pensou como seria se perdesse tudo, se tivesse de começar do zero, se deixasse de ser um privilegiado?

Tinha uma bóia de segurança, que nessa altura tinha mais valor do que agora: um curso. Não havia engenheiros desempregados. Quando foi o 25 de Abril, na nossa empresa, que já era metade americana, poderia haver qualquer problema, e arranjei um emprego no Brasil. Depois as coisas compuseram-se aqui e não foi preciso ir.  

 

Isso chegou a ser cogitado tão firmemente?

Sim. No 25 de Abril perdi todo o dinheiro que tinha. Achei que havia qualquer coisa no ar; peguei no dinheiro todo e, tal como o meu pai dizia, comprei pedra e cal. Comprei uma casa no Algarve, muito boa. A revolução passava e a casa ficava. Só que a empresa que era dona dessa casa faliu, ficou com o dinheiro e nunca mais a vi. Perdi tudo. Comecei desde o princípio, alegremente.

 

Alegremente?

Tinha os filhos, que era o mais importante, a mulher, a família, a casa. Tinha um emprego e um ordenado. E com isso recomecei.Às vezes falo aos meus filhos do tempo em que era rico. Nos anos 60, tinha conseguido juntar bastante dinheiro. Nunca mais voltei a ter o dinheiro que tinha antes do 25 de Abril.

 

O que é que perdeu verdadeiramente? Que diferença fez na sua vida não ter o mesmo dinheiro?

Viajava de toda a maneira e feitio. Não sabe o que é comprar um carro ao telefone? Em 1970 comprei, em três meses, dois carros, uma para a minha mulher e outro para mim, ao telefone. Via numa revista, gostava, “venha cá, leve-me o velho e traga-me um novo”. Esses luxos de passar um cheque e já está acabaram com o 25 de Abril. Agora tenho que pensar, fazer contas, como toda a gente. Falo disso sem ressentimento, foi bom enquanto durou. Guardo as recordações boas. Ainda não disse nada de mau porque se calhar não me lembro das coisas más.

 

Quais foram as grandes dores da sua vida?

Isso não lhe vou dizer, porque é muito mau. Mas o maior medo que tive na minha vida foram os primeiros três anos do Técnico. Um sofrimento pavoroso. Os professores humilhavam os alunos de propósito, para os rebaixar. Passei os exames do liceu e a entrada para o Técnico com notas gigantescas e mal cheguei lá percebi que era uma formiga.

 

Era humilhado por ser um menino de família e conservador?

Não, não. Era humilhado porque tinha notas boas e queriam humilhar-nos. Não havia maneira de conseguir vencer aquilo que não fosse o trabalho e o esforço lá dentro. O esforço passado não contava. Estar sempre à beira de chumbar…, e na nossa casa chumbar era impensável, o meu pai nunca acreditaria.

 

Foi doloroso porque foi tratado como um igual?

Não. Havia alguns proeminentes por valor próprio. Em todas as classes há sempre uns que são excepcionais.

 

Incomodava-o não fazer parte desse grupo dos excepcionais?

Não. Tinha uma enorme admiração por eles, sabia que não tinha a inteligência deles.

 

Sabia? E era fácil lidar com isso?

Era, pedia-lhes explicações quando precisava, e eles davam. Foi a primeira vez que pensei que eles eram não só inteligentes como muito cultos; falavam de música, de arte, iam a exposições. Fiquei amigo de alguns. Orgulhava-me muito de ler literatura mais complicada, alemã, sueca, os prémios Nobel raros, os russos, achava-me intelectualíssimo. Comparado com eles, não era nada.

 

Aquilo fez bem ao seu narcisismo?

Nunca fui narciso. Nunca tive nenhuma admiração por mim. A minha mulher queixa-se disso. Nunca me achei o melhor, sempre admirei pessoas acima de mim. Talvez seja um defeito não reconhecer algumas qualidades que tenho. Acho sempre insuficiente tudo quanto tenho.

 

É inseguro?

Acho que sim, nesse aspecto. Muitas vezes tive responsabilidades grandes e tive a noção de que não estava à altura delas. Quando cheguei à tropa, o comandante mandou-me para uma secção com 80 ou 90 empregados para chefiar; estive lá quatro anos com grande dificuldade até me adaptar. E aí estava eu a admirar outros que já tinham conseguido, que estavam uns anos à minha frente, que invejava.

 

Perseguiu-o sempre este fantasma de não ser capaz?

Sempre. Quando fui nomeado para a CIP lembro-me de chegar a casa e pensar em como é que ia fazer! O Pedro Ferraz da Costa tinha feito um trabalho fabuloso. Como é que eu ia estar à altura? Tenho sempre essa noção de não ser capaz. Não sei de onde é que provem. Talvez do meu pai, que para mim era um deus. O meu pai era muito seco em adjectivos, embora percebesse que tinha admiração por mim (pelas perguntas, pelas conversas), sempre a encorajar-me para fazer mais.

 

Foi por via do trabalho e do estudo que se convenceu que podia levar as tarefas a bom porto?

Exacto, vou conseguindo mas nunca tenho a noção de ter chegado ao fim. Na CIP, depois de me despedir, pensei no que é que podia ter feito mais.

 

Quando é que morreu o seu pai?

Em 2002.

 

No ano em que foi para a CIP.

Foi por essa altura, morreu uns meses depois de ter entrado.

 

Alguma coisa que fez mereceu um especial louvor da parte dele?

Ele não era de louvores, dava-nos um abraço e um beijo, apertava-nos muito, e era o sinal. As as palavras não lhe saíam. Isso era mais a minha mãe, muito expansiva.

 

Soube passar aos seus filhos essa confirmação, esse reconhecimento? Foi mais como o seu pai ou como a sua mãe?

Tenho muitas coisas do meu pai, mas talvez a minha mãe me tenha marcado mais. Os meus filhos são todos diferentes. A mais velha, que seria a mais parecida comigo, até quis ser engenheira química, tirou o curso de Ciência Política e depois, aos 28 anos, em Bruxelas, resolveu ir para freira. É carmelita.

 

Foi uma enorme surpresa? Podia ter sido a sucessora.

Podia, pela maneira de ser. Tinha a normal admiração pelo pai, mas quando começou a estudar outra coisa, divergiu. Sempre me dei maravilhosamente com ela.

 

Foi um grande desgosto para si?

Foi, enorme. É muito difícil adaptarmo-nos a isso. No fundo, acabou-se, deixei de ter uma filha. Ela está muito bem, interna, com tudo o que há de melhor, feliz como mais ninguém é, mas para nós, que estamos cá fora, é uma perda.

 

Não tem nenhum contacto com ela?

Uma vez por mês podemos visitá-la. Conversamos sobre tudo, estão muito bem informadas. Actualmente até já podem receber chamadas – era proibidíssimo. Às vezes estou lá e fala com a avó, a mãe, o irmão. Depois tenho um filho arquitecto que se foi embora de Portugal em 1992 quando tinha 20 anos, recomeçou o curso em Barcelona e ficou lá. O terceiro vive muito bem, foi para Singapura e daí para a Coreia, onde vive agora. O quarto é o único que vive cá, tem o seu emprego, os interesses dele são a electrónica, os computadores.

 

Quando falamos da sua vida anterior à revolução, do tempo em que era rico, parece que estamos a falar de um tempo longínquo.

As coisas mudaram muitíssimo. No meu caso particular, tinha bastante dinheiro porque se vendeu parcialmente a empresa aos americanos. Era rico por isso. Posteriormente tive de viver a contar dinheiro até ao fim do mês. Até hoje.

 

Vive realmente a contar dinheiro até ao fim do mês?

Sim, sim. Vivo bem, não vale a pena chorar sobre disso, mas não posso fazer disparates.

 

Se decidir amanhã ir a Nova Iorque, tem de fazer contas?

Vou num mês, mas não vou no seguinte. Antes do 25 de Abril ia para o melhor hotel, nem punha dúvidas quanto a isso. “Qual é o melhor hotel?, o Pierre!, muito bem!”. Agora, não me passa pela cabeça ir para o Pierre. É nesse sentido que digo que tenho de fazer contas.

 

Quando em 2009 aconselhou a que não se aumentasse o salário mínimo, foi zurzido na opinião pública, porque “o patrão dos patrões não sabia o que era viver com 450 euros por mês”…

Mas 95 por cento das pessoas em Portugal não vive com 450 euros por mês. Claro que 450 euros por mês é pouquíssimo, e desde que iniciei conversas sobre esse assunto, primeiro com o Governo e depois com a concertação social, disse que era uma coisa que me deixava incomodado. Fui muito mal interpretado. Era representante de muitas empresas que têm 150 a 200 mil empregados a ganhar isso, e que deixam de exportar se por acaso os ordenados sobem. As empresas de confecção não vendem roupa: vendem minutos de confecção; e fazem as contas ao centavo. Qualquer subida e saem fora dos concursos, que vão para a Turquia ou para Marrocos. Tinha permanentemente recados das associações dessas empresas a pedir que não se subisse nem um tostão. Era representante deles e tinha de defender isso.

 

Sente que foi uma pessoa especialmente poderosa nesse período em que presidiu à CIP?
Não. Aquilo tem um poder condicionado. Os presidentes são muito dominados pelos directores que são representantes das associações, não das empresas. Eles próprios representam muitas empresas, são também muito poderosos. Quando falam os presidentes das associações, falam em nome de milhares de empresas e das suas necessidades. Em alguns casos podemos fazer coisas por nossa conta, mas não somos livres de fazer o que queremos.

 

Alguma coisa que tenha dito, alguma intervenção que tenha feito, condicionou alguma medida essencial do país?

A primeira talvez tenha sido a desindexação do salário mínimo, que estava indexado às pensões do Estado. Depois as negociações do Código de Trabalho, as da Segurança Social (actualmente o sistema de Segurança Social em Portugal é talvez dos mais adiantados da Europa). Foi durante a minha estadia ali que a formação profissional veio ao de cima como elementar para que todas as empresas pudessem evoluir. E o próprio comportamento ético das empresas. Havia muitas empresas que não gostavam que falasse disso… Foi por isso que saiu a construção civil.

 

Quando falou de corrupção no sector da construção civil, conseguiu antecipar o efeito das suas palavras?

O problema já existia lá dentro. Quando referi que me tinha sido dito, no ministério, que nesse complô, de corrupção, estavam envolvidas empresas da construção civil – e foi só isso que disse – ficaram furiosos. Nessa manhã tinham-me mostrado que parte das empresas do “carrousel” pertenciam a esse ramo. Recebi uma carta assinada por ex-directores da CIP confrontando-me, discordando da minha direcção e do facto de falar tantas vezes da ética. Depois tirei essa palavra [do discurso] – aí está um condicionamento da direcção –, no segundo mandato da CIP.

 

Teve alguma intervenção na localização do novo aeroporto de Lisboa?

Cem por cento. Houve muita gente que influenciou e acabou por convencer [o Governo] a avançar [com esta localização]; mas foi uma actuação pessoal.

 

Pessoal?

A direcção da CIP não gostou nada da minha actuação, até me repreendeu. Foi uma actuação pessoal. Primeiro fui convencido por engenheiros do Técnico, encabeçados pelo Professor José Manuel Viegas, que me trouxe o projecto. Quando o vi achei que tinha uma obrigação de cidadania. Montámos um sistema de influência, através de um grupo de pessoas de que faziam parte engenheiros do Técnico e outros conselheiros que arranjei, o Professor Ernâni Lopes, e outros. Recorri a conhecimentos pessoais, o Primeiro-Ministro, o Presidente da República, o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, dono daquele terreno. O grupo, através de mim, conseguiu tomar os passos certos de modo a não ofender pessoalmente ninguém e dando os elementos correctos para se tomar a decisão final. Deixámos que se convencessem todos de que o sítio era o Poceirão, e começou toda a gente a concentrar as objecções no Poceirão. Ao mesmo tempo estudávamos um sítio alternativo e definitivo, que era aquele. Não é o melhor local, mais ao sul era melhor. Mas para conseguir demover a Ota, aquele foi o melhor.  

 

Sentiu-se especialmente realizado? Tratou-se da sua influência pessoal, foi o catalisador dessa equipa que foi sendo formada.

Foi talvez o concentrar daquilo que foi a minha educação desde o princípio. Conseguir ser visto como uma pessoa que não tinha ambições próprias. Ter acesso tanto ao Primeiro-Ministro como ao Presidente da República, como ao Chefe do Estado-Maior, e isso não era só por ser presidente da CIP. Era por causa do que vem de trás. O facto de ser presidente da CIP fez com que me tivessem recebido e fosse ouvido. Em relação a estas personalidades, apenas fiz o mesmo que fizeram comigo: mostrar que havia alternativas.

 

Se não tivesse a importância que tem, o poder da influência que tem, se não fosse quem é, não era ouvido. Independentemente do conteúdo.

Não era ouvido, sem dúvida. Foi por isso que as pessoas vieram ter comigo: para ser o intérprete desse movimento. Escolheram-me por ser da CIP, por ser eu e por ser engenheiro. Era um diálogo fácil. Não era apenas um advogado a defender uma causa. Era também um engenheiro com convicções, que sabia o que é que havia na Ota que tornava aquilo numa obra faraónica, e o que é que havia de engenharia em Alcochete que podia facilitar o arranque da construção.

 

A quem é que telefona para contar que isso aconteceu? Com quem partilha?

Com certeza com a minha mulher, mas à parte disso tenho muitos amigos. Não tenho um confidente particular. Tenho alguns velhos amigos, já do tempo do Técnico, e alguns desses continuo a ver regularmente.

 

Amigos que foram feitos naquele período e que não vinham de trás?

Uns vinham de trás e outros não.

 

Estou a tentar perceber se o seu círculo é razoavelmente aberto ou se são sempre as pessoas do seu meio.

Há três espécies: as que estão ligadas à parte profissional, os meus amigos antigos, de toda a vida, e muitos dos da minha mulher.

 

Com pessoas de esquerda, dá-se?

Com a maior das facilidades. Contando que não haja nenhuma confusão, porque não sou de esquerda. A primeira vez que o Dr. Mário Soares foi a minha casa disse-lhe que ficasse claro que não era socialista e que não gostava dos socialistas. Ele deu-me um grande abraço, agradeceu-me ter dito aquilo e disse que assim podíamos ser amigos. Continuamos a ser amigos, ele pergunta-me coisas sobre o que chama “o nosso lado”, e temos muito à vontade.

 

Nunca houve dúvida de que o seu lado era esse? Nunca vacilou?

Não, nem pensar, nada, nada. Há muita coisa que se confunde que seja exclusivamente da esquerda. A caridade, o respeito, a ética. Mas não é. Há muito da extrema-direita, que também não sou, que tem valores que se confundem com a esquerda. A autoridade, a concentração do poder. Tudo o que são valores universais e de que a esquerda se apoderou, a direita também tem. Fui educado a ter esses valores. A esquerda pura, que quer a nacionalização, que acha que o Estado tem mais razão, que tem horror ao lucro, que não percebe o que é o investimento, que não percebe que os direitos têm de ser distribuídos segundo os méritos – tudo isso, não sou desse lado.

 

Viveu a crise académica de 61, mas estava “do outro lado”. Como é que a viveu?

Saí em 61, apanhei o princípio da crise. Em 60 já havia muita inquietação. As associações de estudantes eram revolucionárias, havia muita actividade política lá dentro. Fizemos uma coisa fantástica: corremos com um professor do 4º ano de quem não gostávamos.

 

Fantástica?

Termos conseguido, perante a autoridade, ter mudado de professor porque não gostávamos da maneira de ele ensinar. A partir daí houve sempre a ideia de que os alunos tinham poder.

 

Tem 71 anos. Está agora a começar outro ciclo, no AICEP. A nomeação para aqui passou pelo ministro Vieira da Silva? A relação com ele é especialmente boa?

É óptima. Mas não sei se terá sido ele, talvez tenha sido o Primeiro-Ministro com quem também tenho uma boa relação. É uma sorte continuar a trabalhar com um ministro com quem já trabalhava. Facilita muito, posso ir direito aos assunto. O trabalho que vamos ter aqui é muito grande, tenho medo que seja lento – lá estou eu com o medo: “será que estou à altura?”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009