Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Gabriela Moita (2005)

21.07.19

Gabriela Moita é psicóloga. «Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico» foi o tema da sua tese de doutoramento. Questões como a orientação sexual e a construção da identidade são temas privilegiados no seu estudo.

Actualmente é possível vê-la no programa da NTV «Estes difíceis amores», ao lado de Júlio Machado Vaz.

 

As diferenças entre o masculino e o feminino estão cada vez mais diluídas. O que é que hoje pode definir um género e outro?

Em cada sociedade, em cada momento histórico, em cada cultura existem uma gama de comportamentos possíveis. A que podemos chamar paleta de cores possíveis, de comportamentos gerais. Destes comportamentos atribuem-se determinadas cores ao masculino e outras tantas ao feminino. Foi acontecendo que as mulheres passaram a ser capazes de chamar para si a gama de cores que fazia parte da atribuição ao sexo masculino. Já são muito poucas as cores reclamadas pelas mulheres em relação às quais dizemos «Oh, que estranho».

 

Os papéis do feminino passaram a ser quase todos os possíveis.

Quem ainda não conseguiu ter o mesmo ganho foram os homens. E isto porque os papéis femininos foram tão desvalorizados historicamente... A condenação de dois homens se deitarem um com o outro não era por se deitarem um com o outro. Era deitarem-se como se fosse com uma mulher!

 

A génese é essa?

A Bíblia diz isto: «Nunca te deitarás com um homem como com uma mulher». Platão, na Grécia Antiga, dizia também isto: «Não te comportarás como uma mulher».

 

Não era tanto a ideia de desvirtuar o que seria uma ordem da natureza, na qual os diferentes se encaixam, mas a desvalorização que estava implícita no comportamento?

Está escrito assim. Claro que a interpretação depende de quem leia. Este sentido de desvalorização está aqui presente. Sempre foi mais complicada, porque sujeita a uma desvalorização maior, a possibilidade de um homem ir buscar uma cor da paleta atribuída às mulheres do que o contrário. E quando isto acontece, é visto negativamente. Está sujeito ao riso, à chacota.

 

Logo a seguir vem o estigma de que é homossexual?

Efeminado, pelo menos. Não sei se na cabeça das pessoas o efeminado está sempre ligado ao homossexual, mas está muitas vezes.

 

Não é sempre? Quando o efeminado é alvo de chacota, imagina-se que é homossexual.

Porque faz parte dos comportamentos do masculino gostar-se de mulheres e do feminino gostar-se de homens. Portanto, quando um homem tem comportamentos do feminino, e se é efeminado, uma das características que faz parte deste menu é o gostar de homens. Vem do século XIX esta ideia de que a orientação era mais uma das coisas que fazia parte do ser masculino e do ser feminino. Era mais um papel atribuído a cada um dos seres.

 

Na vida activa a atribuição de papéis está muito mais diluída. Mas na educação, se a criança é rapaz ou rapariga, o azul ou o rosa que lhes vestimos, ou o tipo de brinquedos, são orientadores de um modo mais rígido.

Em termos gerais, penso que sim. Mas já vejo pais que não querem transmitir uma rigidez de papéis. Com a consciência de que ao definir papéis e ao querer construir uma identidade logo ali se está a limitar o filho ou a filha. Isto é não permitir ao ser humano a sua globalidade, a sua possibilidade total. Em relação à roupa, penso que é a área onde tem mais razão. Não é fácil vestir um menino com muitos floridos e enfeitá-lo como se faz com uma menina.

 

Causa menos estranheza ver uma rapariga com brinquedos de rapaz; diz-se com orgulho «Eu era uma maria-rapaz». Quando o rapaz brinca com as bonecas ou quer ser bailarino é mais difícil aceitar isso.

Mesmo nas crianças permite-se mais facilmente as raparigas usarem comportamentos ditos dos raparazes que o contrário. Mais uma vez, é por se considerar que aqueles são bons. As raparigas passam a ter padrões de comportamento positivos, válidos, e o contrário, não.

 

Na vida doméstica os homens desempenham um papel que era até alguns anos exclusivo das mulheres. E já não é só na cozinha.

É verdade o que diz, mas não na mesma proporção. Na semana passada diziam-me numa sessão «Que remédio, nem que não quiséssemos, tínhamos de ajudar. A mulher está fora e a casa está lá». Não sei se será assim tão transversal. Nalgumas classes sociais, nalguns meios, se o homem vai fazer aqueles papéis, é desvalorizado. Não pode fazê-los, na própria leitura da sua masculinidade. Claro que podemos dizer que não ajuda por causa de um padrão machista; mas exactamente por causa deste padrão está limitado nas suas possibilidades.

 

Apesar de inquestionáveis mudanças, a participação dos homens e das mulheres não é equiparável?

Em muitas casas, os homens ajudam. Mas ajudar não é uma co-responsabilidade. A responsabilidade da gestão é delas. Se alguma coisa falta, a atribuição última da responsabilidade é dada à mulher. O homem até ajudava, nomeadamente se ela tivesse dito que era preciso!

 

A psicologia é indissociável da biologia na tentativa de analisar comportamentos. Há alguma base genética que ajude a explicar a tendência das mulheres para a sensibilidade e dos homens para a força?

De todos os estudos que foram feitos, não há nenhum conclusivo, nenhum que diga: «As mulheres têm mais tendência para isto». Como estes estudos são feitos retrospectivamente, (quando as pessoas já tiveram alguma experiência de vida), não se pode saber se aquilo é o resultado de ou se foi a causa de. Penso que dicotomizando o que quer que seja, estamos sempre a excluir a gama de variações possíveis entre uma coisa e outra. Há uma coisa inegável: geneticamente e biologicamente temos um bi-morfismo sexual. Ou seja, há duas formas distintas. Mas quando dizemos duas, estamos a retirar tudo o que está no meio. Se a cada pessoa, independentemente do seu sexo e da forma com que nasce, lhe fosse dada uma possibilidade de escolha, poderíamos encontrar muitas mais variações dentro dos sexos. É não permitir que cada um use a sua liberdade plena, e possa viver com facilidade na sua diversidade.

 

Há relação entre a assunção crescente da homossexualidade, sobretudo masculina, no sentido de ser mais visível e estar integrada na sociedade, e esta diluição de papéis do masculino e do feminino?

Acho que estão completamente ligadas. Porque é que as mulheres gostam de homens e os homens de mulheres? Porque assim se definiu. Quando não se considerar que isto faz parte do menu, as pessoas podem gostar de quem quiserem; de pessoas do mesmo sexo, de sexo diferente, em momentos da vida de um e depois de outro. Quando os nossos papéis não forem rígidos, esta coisa de nos determinarem à partida de quem vamos gostar, (só porque temos uma determinada forma física), esta questão da homossexualidade nem tem sentido de ser falada. Nem a heterossexualidade.

 

Hoje está assente que os homens também se cuidam, gostam e usam cremes. Contudo, quando esse interesse parece excessivo, isso levanta uma suspeição quanto à sua orientação sexual.

Na construção quer da orientação sexual quer da identidade de género existe, do ponto de vista social, uma gama de possibilidade. Nos anos 50 era suposto que os homossexuais fossem todos efeminados; o que se via eram as bichas da Avenida, homens que se travestiam, que se apresentavam como mulheres, exóticos, com determinado comportamento. Um adolescente, olhando para aquilo, pensaria «Ser homossexual é ser isto», e começaria a desenvolver este tipo de comportamento.

 

Ou então há a rejeição daquele comportamento e a assunção de outro papel.

Essa é outra possibilidade, agora já permitida. No trabalho que fiz encontrei homossexuais que nos anos 50 tinham de se pintar. Aquilo fazia parte. E hoje, já não sentem necessidade nenhuma disso, perceberam que podem ser homossexuais de uma outra maneira.

 

A escolha da orientação sexual ou do comportamento são uma construção?

Socialmente estruturamo-nos, não tanto numa escolha consciente e deliberada, mas quase por imposição dos modelos disponíveis. O que não é construído é o desejo. Quantas vezes queremos gostar da pessoa X e não sentimos nada? Ou já nos queríamos ter separado e não conseguimos? Não decidimos tanto quanto isso dos nossos desejos. O que está intrinsecamente em nós é a possibilidade de desejar, faz parte do nosso hardware. Depois, o que se coloca de software é que depende do momento. Face a este desejo, quem sou eu, o que devo fazer, como me devo comportar? E o comportamento é resultado de uma construção em função de todos os modelos que vimos, em função de tudo o que está disponível.

 

Hoje já é possível ver uma diversidade na homossexualidade...

Como não vemos na heterossexualidade.

 

 

Publicado originalmente na revista Elle em 2005