Gilberto Gil
O meu quarto fica no sétimo andar de um hotel de Brasília. Começo por abrir o mapa que me deram na recepção, ponho-o contra o vidro da janela. Sigo o percurso rectilíneo de Oscar Niemeyer a partir dali. A catedral com vitrais de um azul céu e anjos suspensos sobre o altar; as fileiras de edifícios ministeriais; a Praça dos Três Poderes; o Palácio dos Congressos. Todas as grandes obras.
É meio-dia. Sei desde a véspera que o ministro Gilberto Gil me concede entrevista ao fim da tarde. Na véspera eu estava no Rio de Janeiro, e num contacto telefónico com o assessor de imprensa, obtive a confirmação da entrevista – os contactos tinham começado duas ou três semanas antes, ainda em Portugal.
Quando nessa manhã aterrei em Brasília, caía uma chuva miúda. O calor não era o mesmo do Rio, a humidade era bastante inferior. Era um dia de semana, com homens de gravata e mulheres de tailleur. A cidade surge-me exactamente como a conhecia dos postais. O elemento humano, a vivência do espaço, em nada a transforma. A sensação de estranheza advém disso mesmo. A escala não é humana, não tem botequins nas esquinas, pessoas nos passeios. A despeito da extrema elegância, do traço depurado do arquitecto Niemeyer, parece-me invivível.
O que faz um homem como Gilberto Gil, um baiano de colheita excepcional, um músico reconhecido internacionalmente numa cidade como Brasília?
Olho pela janela do sétimo andar, reconheço o edifício do Ministério da Cultura. Algures naquele espaço, no cruzamento de salas de espera e gabinetes de trabalho, o senhor ministro Gilberto Gil pensa a cultura de um desmesurado país chamado Brasil.
No seu discurso de tomada de posse, pode ler-se o seguinte: «Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos actos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (...) Desta perspectiva, as acções do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e expressem, para que possamos tecer o fio que os unem».
Da aventura política, quase não falámos naquele fim de tarde. A não ser do significado que tem, para ele mesmo, o cargo de que está investido. De como isso entronca na sua história pessoal.
Durante cerca de uma hora e meia, a conversa correu tal como a vão poder ler.
Reencontrámo-nos dali a pouco, no Clube do Choro de Brasília, cuja temporada era inaugurada nessa noite. O surpreendente Armandinho Macedo extasiou a plateia. O senhor ministro Gil tinha ao lado uma das suas filhas, secretária particular que vive com ele em Brasília, durante a semana. O fim-de-semana é passado no Rio. Comeu um ou outro bolinho mineiro, de queijo. Respondeu a perguntas de jornalistas no intervalo. Perguntou ele mesmo a Armandinho, da sua mesa para o palco, se a música que este acabara de tocar era dele ou do pai, fundador do Trio Eléctrico na Baía.
Desconheço se em algum momento teve vontade de saltar para o palco, de experimentar a música.
Gostava que me descrevesse o tecto do seu quarto de quando era pequeno. É verdade que era transparente e a partir dele via as estrelas?
Não era todo transparente. Eram telhas de barro normais com vigas de madeira e algumas telhas de vidro em lugares estratégicos. Três delas em fila bem acima da minha cama, outras três por cima da cama da minha irmã.
Dividia o quarto com a sua irmã?
Sim, durante um período grande da nossa infância. Minha irmã se chama Gildina, é dentista. E havia outra fileira de telhas de vidro fora das nossas camas. Era muito interessante porque dali víamos as estrelas.
Conversavam?
Conversávamos. Sobre as coisas do nosso dia, da nossa vida. Dos temores da nossa avó e da nossa mãe, que eram as responsáveis pela disciplina. Tínhamos a obediência. Falávamos das pequenas transgressões, quais seriam, como seriam, quais os mecanismos de ludibrio. Recordo muito bem o dia do eclipse solar, teria sete, oito anos. Não se podia olhar para o sol no momento do eclipse. Havia duas coisas: uma era a ameaça física, o mito da ameaça da cegueira, outra era que alguma coisa mágica, encantada, podia acontecer.
E olhou?
Estava debaixo dos lençóis e espreitava... Hesitava entre atender ou vencer à tentação de olhar.
O seu pai era médico e a sua família de classe média alta – o que não é muito comum numa pessoa que tem uma cor escura como a sua. Isso representava uma responsabilidade adicional para si e para a sua irmã?
Naquela ocasião não me dava conta disso. A minha família era uma família branca no sentido social, de poder, de condição económica e educacional. Pai médico, mãe professora, avó também professora. Vivíamos numa cidade com 900 habitantes onde a minha família ocupava uma posição muito destacada, muito elevada. Por outro lado, como acontece em muitas cidades do interior da Baía, os vasos comunicantes entre as raças e as pequenas gradações sócio-económicas eram muito abertos.
Caetano Veloso escreve no livro «Verdade Tropical», a propósito da cor e da proveniência social...
Que eu sou um mulato suficientemente escuro para ser considerado negro, enquanto ele é um mulato suficientemente claro para ser considerado branco. E isso é verdade em conjuntos sociais onde haja mais concentração de pessoas, nas cidades grandes. Como lá era uma cidade de 900 habitantes, e como nesse momento da colonização o prefeito, Sr. Oswaldo Conceição, era negro, o dentista, Sr. Cassinho, era negro, meu pai, que era médico, também era negro, minha mãe, que era uma das cinco professoras do grupo escolar, era negra, sendo que havia uma outra que também era negra... Os negros mestiços saíam capacitados em actividades educacionais, tinham profissões liberais, iam para essas cidades e formavam ali novas elites mestiças, misturadas. Com muito menos problemas de separação, de preconceito racial do que nas grandes cidades.
Disseram-me que passou recentemente na televisão brasileira um documentário sobre si e uma das imagens mais deliciosas era o senhor a cantar com as lavadeiras da terra da sua infância. Já era assim nessa altura? Um menino filho de médico e que ia à escola, cantava com as lavadeiras?
Era assim. Todas essas barreiras eram bastante quebradas numa cidade pequena, num microcosmos social como era aquele. A necessidade das pessoas se valerem umas das outras era tão maior do que em qualquer outro agrupamento maior, com mais alternativas. Era tão maior que essas vivências se impunham sobre quaisquer resíduos de desejo de apartação que pudessem permanecer nos corações e nas mentes das pessoas. As festas eram oportunidades profundas para estabelecer convívios.
A música como uma espécie de língua franca entre os vários estratos sociais?
É. E então ali estabeleciam-se comunidades quase ideais. Só começo a ter o problema da classe social, da raça, quando vou para Salvador, na adolescência. Vou fazer o Ginásio, a complementação dos estudos que já não era possível fazer na minha terra. Fui viver para casa de uma tia, irmã do meu pai.
Como é que a música, a música da rua, a música das pessoas, a música que era linguagem franca, o impressiona? Como é que ela entra na sua vida?
Desde a infância. Principalmente nas feiras. No mercado municipal, aos sábados, vinham todos montar o mercado. Começavam a chegar às quintas, (alguns que vinham de mais longe), e ao sábado dava-se a feira. Vinham os cantadores dos lugarejos, era a única forma de comercializarem a sua música. Cantavam e recebiam gratificações.
Nas feiras havia altifalantes?
Também havia. E aí já era o rádio, passavam as grandes canções de sucesso produzidas nos grandes centros, no Rio de Janeiro, em São Paulo.
Que músicos ouvia mais atentamente?
Orlando Silva, Mário Reis, Augusto Calheiros, Chico Alves, Luiz Gonzaga e vários outros. As irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino.
E João Gilberto? O senhor tocava acordeão e decidiu trocá-lo pelo violão depois de ouvir João Gilberto.
O acordeão chega quando eu vou para Salvador, em 51. [João Gilberto aparece com «Chega de Saudade» em 58] Para além do Ginásio, fui também para a Academia de Acordeão. Foi o primeiro instrumento que aprendi.
Quem é que ouvia rádio em sua casa?
Todos. Todos nos sentávamos para ouvir o rádio.
Sentavam-se para ouvir rádio como hoje nos sentamos para ver televisão.
Sim, claro. Sentávamo-nos a ouvir rádio onde havia, não só programas musicais, como rádio-novelas, como crónicas, (a crónica do César Ladeira, por exemplo, na Rádio Nacional). Eram crónicas como hoje lemos no jornal, sobre a cidade, sobre os costumes, sobre factos acontecidos, sobre grandes personalidades nacionais ou internacionais, sobre datas magnas. Ou programas de competição musical.
E aí vibravam?
Vibrávamos com tudo isso. E com as rádio-novelas como «O anjo», «Jerónimo, o herói do Sertão». Depois complementava com as foto-novelas, com as revistas em quadrinhos.
Mas via isso? Eu tinha a ideia que o público que consumia isso era maioritariamente feminino.
Mas eu era e sou muito feminino. Tem muitas canções minhas que falam disso. «Super-homem» é uma delas. Até por causa da minha educação. Na minha casa, o único parceiro homem era meu pai. E não vivia muito em casa. Eu vivia com a minha irmã, com a minha avó, com a minha mãe, com a minha tia.
Tinha um fascínio por aquele universo das mulheres?
Tinha.
O que era mais fascinante?
Era mesmo a diferença física. Elas eram diferentes de mim. Eram outras configurações de matéria plástica. Além disso, eram as tutoras, as disciplinadoras, tinham ascendência sobre a minha liberdade. Determinavam e criavam as regras, definiam a fronteira entre o que é possível e o que não é possível.
Inclusive a sua irmã, que tinha a mesma idade? Ela também tinha ascendência sobre si?
Tinha. Até porque – coisa que só vim a perceber mais tarde – ela é leonina e eu canceriano.
O que é que isso significa?
O signo de leão é forte, de afirmação, um signo positivo. E o meu é o caranguejo, o afectivo, receptivo, maternal, feminino. O leão é um signo do sol e o câncer é um signo da lua.
Uma visão estereotipada do masculino-feminino confere à mulher o atributo da sensibilidade, e ao homem a racionalidade. Mas depois na prática, isso cai tudo por terra.
Na minha comunidade esses parâmetros eram subvertidos pelas circunstâncias da vida. As mulheres se manifestaram dessa forma na minha vida, e continuaram até hoje. Tenho uma canção que fala da mulher que será sempre a minha mãe. Fui casado quatro vezes, a todas chamo de mãe.
Em que é que diferem as conversas e as relações que tem com mulheres e as que tem com homens?
Com as mulheres há necessariamente essa identificação com o elemento materno. Com todas as mulheres. Com os homens é o pai. E o pai era a figura distante; muito presente porque a actividade profissional era dentro de casa, o seu consultório médico era dentro da nossa casa...
E contudo...
Contudo, era distante porque deixava o encargo do relacionamento profundo, gostante, e o acompanhamento directo para as mulheres. A minha mãe, a minha avó e a minha tia. E mais ainda: a cozinheira. Era uma figura extraordinariamente importante. A velha Biíta, que era uma corruptela de «bonita». Quando eu, ainda muito pequeno, não sabia dizer a palavra «bonita», dizia «biíta». E ela ficou sendo chamada de Biíta, não só por mim como por todos da casa, e não só naqueles primeiros momentos da minha infância, como para o resto da minha vida, até à minha adolescência, quando ela saíu da minha vida.
Quando foi convidado para ministro, telefonou a alguma destas mulheres? Ou já são outras as pessoas e as mulheres da sua vida?
Neste momento, Flora, a minha mulher, é quem hoje simboliza essas outras todas, é quem está ao meu lado a representá-las todas. Ela estava ao meu lado quando recebi o telefonema do presidente.
O que é que ela lhe disse?
«Faça o que você quiser».
Deixe-me voltar à música. Gostava de perceber melhor quando é que se prefigurou na sua vida.
Como vivência interna, profunda, como forma de expressão, fio condutor, atractor de compreensões, de entendimentos, de leituras do mundo? Logo. Aos dois anos de idade. Aos dois anos de idade, minha mãe me perguntou: «O que é que ‘cê será, um dia, quando for um homem?». E eu disse: «Musgueiro».
O que era "musgueiro"?
Músico. Era como eu, aos dois anos de idade, me referia à palavra «músico». Mas devia ser difícil de dizer. E «musgueiro» era igual a padeiro, ferreiro, sapateiro, coisas que já eram do meu universo. O meu ofício seria o da música, então eu seria «musgueiro».
Todavia, vai para a faculdade tirar um curso que está nos antípodas disto. Um curso de administração de empresas.
Mas aí eu já vivia no universo da modernidade. Salvador, cidade moderna.
Como se operaram essas várias transições? Imagino que a primeira transição seja de um espaço onde toda a cidade era a sua casa, para um espaço inóspito, onde está na casa de uma tia...
E a casa da tia está numa cidade enorme de 400 mil habitantes.
E a outra transição é de menino para rapaz, que tem de escolher um ofício, além desse ofício que ele sempre disse que queria ter.
Tinha que atender aos anseios da família. Meu pai queria que eu fosse como ele, um profissional liberal. Minha mãe também queria que eu fosse como ela, uma profissional liberal. Havia um modelo social em que era importante que nos diplomássemos. Era importante ser doutor. E eu tive que aprender. Mas com muito gosto até, porque também tinha no meu coração um certo anseio de atender a essa convenção social, de corresponder a isso, de me tornar um doutor. Então escolhi uma profissão. A princípio pensei ser médico, como o meu pai, aos 12, 13 anos. Aos 17 anos, quando concluí o curso secundário e já se anunciava a hora de fazer o vestibular para a universidade, pensei em ser engenheiro. Fiz o vestibular de engenharia, não passei. E aí, no ano seguinte, apareceu esse curso de administração. Aquilo me fascinou porque era uma coisa completamente nova. Não pertencia aos cânones.
E foi de alguma serventia?
Acho que foi. Hoje tem-me servido muito.
Podia ser um curso de Letras? Um curso com palavras?
O interesse pelas palavras chegou depois, com a música.
Foi a sua mãe que o ensinou a ler?
Minha avó me ensinou. Enquanto a minha mãe ensinava na escola, minha avó se incumbia de me ensinar em casa. Eu não fui à escola da minha mãe. Minha avó era uma professora aposentada e se incumbiu da instrução, tanto da minha quanto da da minha irmã. Depois fui fazer o exame de admissão ao Ginásio numa escola em Salvador.
As palavras começam a ter importância a partir da relação com a música. Mas o modo como aprendemos a falar, a ler e a escrever é fundamental para a relação que mais tarde temos com as palavras.
E, sem dúvida, isso tudo foi forjado com «O Tesouro da Juventude», que era uma colecção de 18 livros, tipo enciclopédia, com tudo. Todos os grandes factos da História, todos os grandes personagens da História, todas as grandes descobertas científicas, todas as grandes invenções tecnológicas, todas as grandes escolas de pensamento. Tudo isso eu tive, na primeira infância, os livros do Monteiro Lobato. Literatura adulta feita para crianças.
Consumiu isso tudo como se se tratasse de um romance?
Só que eu não fiz a escolha da palavra. Fiz a escolha da música e não da palavra. Podia dizer que existia já em mim o embrião de poeta, de literato. Eu sentia o embrião de músico. E foi através da música que cheguei à palavra. Só comecei a necessitar dar às palavras significados meus, próprios, quando comecei a usar a palavra cantada. Quando comecei a precisar cantar coisas, cantar palavras.
Li numa entrevista uma coisa que me impressionou muito. Dizia que, para si, o sentimento está absolutamente em primeiro lugar, e só depois é que vem o pensamento.
É.
É disto, também, que estamos a falar?, da música e sensibilidade como formas primeiras e do pensamento e das palavras como passos subsequentes?
Creio que sim.
Quando diz que precisou de usar palavras para expressar melhor o que queria dizer, é também porque a sua música é uma espécie de reverberação da natureza.
Diria mais um prolongamento da existência.
Importa-se de especificar isso?
Quando falamos a natureza, corremos o risco de estarmos querendo nos referir à matéria, ao mundo material. Quando digo existência, adiciono às formas materiais – que nos incluem inclusive a nós humanos – a existência inteira. O existir, as dimensões da alma, as dimensões do espírito, as dimensões dos seres mudos que não falam connosco. Como as pedras.
Quando estava a dizer reverberação da natureza estava a pensar nisso. Nessa linguagem que a natureza tem e que pode ser o sopro do vento, o correr das águas. Tudo isso tem uma voz própria, uma música própria.
Mas quando eu digo existência é porque se inclui aí um mistério, que é um mistério profundo, que só pertence ao homem, que é a consciência. A alma, a especulação, a ideia do existir e do não existir. Se nós colocamos só como natureza, corremos o risco de não contemplar essa dimensão do mistério da vida.
Quando é que teve noção disso?
Logo cedo. Comecei a ter especulação filosófica aos sete, oito anos.
A sua parceira de conversa e especulação filosófica era a sua irmã?
Muito eu mesmo.
Era um menino solitário?
Era. Gostava de estar sozinho, brincar sozinho. Até porque era só uma irmã, e ela era mulher; diferente portanto. Eu tive de criar meu próprio mundo. Como a minha avó foi incumbida da minha formação, e ela já era velha, e eu era como um filho para ela, ela tendia a me proteger do mundo, a incentivar um certo isolamento. «Fique sozinho, é bom. Cresça você mesmo, sozinho». Então eu tive desde cedo gosto pela introspecção, pela solidão criativa, pela solidão entretida com pequenos afazeres, com a observação. Muita contemplação, muita capacidade de meditação.
Como é que um menino introvertido passa à situação de extroversão que é estar em cima de um palco?
Foi um parto a fórceps. Até hoje é um mistério para mim. Não sei como consegui. Me lembro bem que, quando estava a estudar acordeão, com os meus 12, 13 anos, me sentava numa sala escura que raramente era aberta. Eu ficava lá quase todas as noites. Se por exemplo chegava uma visita e minha tia ou minha avó pediam: «Toque alguma coisa para a visita ouvir», aquilo era uma tortura. Eu não gostava. Gostava de tocar para mim.
Tocar para as visitas foi o seu primeiro parto.
Foi. O primeiro parto nessa existência de uma audiência.
A noção de que existe uma audiência implica a consciência de que existimos para outros, e que o outro gosta ou não gosta, aplaude ou não.
E isso era tormentoso para mim. Na festa de formatura (eu me formei em acordeonista, tive um diploma), tive que me apresentar para um auditório, aí já num teatro.
Segundo parto.
Terrível. Eu tive febre. E quase que inconsciência. Fiz aquilo num estado de torpor mental, provocado por aquela agonia. Isso perdurou durante muito tempo.
Quando se apresentou pela primeira vez na televisão, ainda trabalhava numa multinacional, dando uso ao seu curso de administração de empresas. Esse emprego era uma espécie de âncora para si?
Era, uma âncora psicológica.
Porque é que era tão inseguro? Ainda não compreendi.
Porque eu sou assim. Código genético, tendências inatas. Claro que a vida adulta e a experiência vão modificando as coisas.
As mulheres que o rodeavam apoiavam o seu desejo de ser músico?
Minha mãe. Ela me fez. Ela guardou na memória aquela minha declaração dos dois anos de idade. «Eu quero ser musgueiro». Na verdade isso já configurava o quê? Um cuidado de mãe com a vida futura do filho. Era ela cumprindo as suas funções de mãe, cuidando do filho.
Como um anjo que vela.
E aos dez anos, quando fui para a cidade, ela me disse: «Você quer ser músico, vá para a escola de música. Você gosta do Luiz Gonzaga, da sanfona dele. Tem uma escola de acordeão recém fundada. Você não quer estudar acordeão? Vou-lhe comprar um acordeão e vou-lhe pôr na escola de acordeão. Está bem assim?». E eu disse: «Está bem». Quando completei 18 anos, ela me ouvia escutando Bossa Nova; quando comecei a escutar João Gilberto, ela – que já estava longe de mim há 8 anos –, me disse assim: «Eu vejo você interessado por essas músicas que têm esse violão tão forte, tão nítido, tão especial. Você não quer estudar violão?»
Ainda ela a insistir no seu sonho.
Ainda ela. Num dia de sábado me deu o dinheiro e disse: «Vá comprar um violão para você».
E tentou comprar um violão o mais parecido possível com o de João Gilberto?
Foi.
Queria ser o João Gilberto, nessa altura?
Queria. Queria ser muitos. Queria ser o Luiz Gonzaga, queria ser Dorival Caymmi, queria ser todos. Ainda hoje quero. O menos que eu quero ser sou eu mesmo.
Está a fazer género?
Não estou. Não tenho uma ambição autoral. Nunca tive uma vontade de criar meu próprio género musical. Quis sempre ser um bom reprodutor dos géneros amados, queridos por mim. Sempre quis imitá-los a todos, aos meus ídolos, mimetizá-los. Sempre gostei da ideia de que pudessem ouvir na minha música todos os outros. Minha capacidade de dizer: «Olha como eu ouço. Olha como meu coração guarda todas as músicas do mundo». E nunca tive vontade de invenção.
É uma existência sincrética. E «sincrética» é uma palavra que aparece no seu discurso de tomada de posse, assente como preocupação ministerial. Ao cabo de todos estes anos de carreira, continua a achar que não há uma marca autoral?
Os outros acham. A eles a incumbência de encontrar essa marca. A mim o deleite da música que me entra pelo coração. Não sou autor. Sou músico.
Significa que o seu modo de expressar o mundo através da música açambarca uma gama de géneros, de pessoas, de influências?
É isso. Daí que hoje eu sou reconhecido como um ecléctico, como criador e como intérprete.
Gosta desse epíteto?
Gosto. Faz jus à minha natureza.
Quando começou a apresentar-se, ainda antes da Tropicália, tocava o seu violão e vestia fato e gravata. Um terno, como no Brasil se diz, é uma moldura que confina o indivíduo ao seu corpo, não o deixa espraiar-se. Sentia-se confortável aparecendo desse modo?
Eu usava ternos e gravatas durante o dia. Quando fiz a minha estreia como artista nacional, na televisão, no disco, eu trabalhava na Lever como executivo. Saía todos os finais de tarde do meu escritório para ir viver as vivências musicais, de terno e gravata, de pasta na mão. Vários dos meus colegas se referem a isso até hoje. «Gil chegando no Redondo com seu terno, sua gravata, sua pastinha na mão!». O Redondo era um bar em São Paulo onde se reuniam muitos músicos.
Mas sentia-se confortável ou não?
Sentia. Eu era...
«Quadrado»? Porque dizem que era «quadrado».
Era quadrado. A família tinha-me programado, ou pelo menos pretendeu ter-me programado, para ser um doutor.
Eles sentem orgulho em si, vendo-o investido destas funções?
Sentem. Meu pai já não, porque já não vive. Não sei se onde está – se é que há um estar para ele em algum lugar hoje – gosta de me ver ministro. Mas a minha mãe agora no Carnaval me disse: «O seu pai estaria tão orgulhoso. Tão contente. Só me lembrava do seu pai, quando você foi chamado para ser ministro». O Caetano escreveu uma carta onde diz isso: «O facto de o Gil ter desejado ser ministro, ter aceite ser ministro, tem muito a ver com o pai dele. É ele querendo isso para o pai dele». E é. Óbvio. Claro que é.
Quando estava a ler o discurso de tomada de posse, em que coisas pensou?
Será que pensei alguma coisa de que posso ter memória hoje? Não. Pensava nisso tudo que estou conversando com você. Pensava na existência, no porquê. Porque é que estava ali, todas as coisas que tinham-me levado àquele momento, àquele lugar, a estar ali tomando posse no ministério. A família, as primeiras comunidades da minha vida... Se fosse possível fazer um condensado dessa coisa que eu estava pensando naquela hora, estava pensando na minha vida. Toda.
Não é tão inesperado assim que tenha sido convidado e aceite ser ministro. Se pensarmos na intenção da Tropicália ou numa coisa fundamental na sua vida, que tem que ver com a identificação da raça, com o papel dos negros no Brasil, subjacente a todo o percurso há o desejo de acolher pessoas.
Mas o que é o ministério senão um lugar de acolhimento?
Um ministro é aquele que serve, segundo a raiz etimológica.
Ministrar. Num sentido até religioso: aquele que ministra os sacramentos.
Também tinha essa sensação de ministrar, e portanto servir, quando era apenas um músico?
Sim. «Subo nesse palco, a minha alma cheira a talco, como um bumbum de bebé». Essa canção fala disso, do sacerdócio da música, de ministrar o bálsamo da canção para os outros. Sempre tive essa dimensão, do ministro religioso. E antes de ser ministro, já sou ministro de Xangô.
Explique-me quem é Xangô.
É um Orixá do panteon.
Descobriu o candomblé já adulto, disseram-lhe que é iluminado por Xangô.
Significa que eu sou um descendente de negros africanos que trouxeram para o Brasil suas religiões panteístas. Num desses panteões, o panteon Iurubá, (a etnia Iurubá está distribuída entre a Nigéria e o Benim), tem entre eles um dos seus deuses importantes, deus da Justiça, que é xangô. Eu sou um descendente.
Gosta de ser um descendente do deus da Justiça?
Gosto.
Mais do que qualquer outro deus?
Não necessariamente, mas me regozijo com a minha ancestralidade.
Mas que importância tem isso na sua vida? Teve uma formação católica e ainda menino pôs de lado esses ensinamentos da Igreja de Roma; já adulto, descobriu o candomblé.
E não só o candomblé. O budismo, o vedanta, várias... Especialmente as religiões orientais.
Qual é a presença que a religião tem na sua vida?
Muito grande. Nunca me senti mal com a sensação da transcendência.
Nunca teve a imagem do Deus punitivo que a Igreja Católica instiga?
Essa era uma prótese imposta pelo convencionalismo religioso ao meu redor. O meu sentimento religioso sempre foi de abraço com a divindade, abraço profundo e fraterno. Ao longo da vida fui separando o sentimento religioso dessa questão da institucionalidade. Eu tenho uma religião como vida. E portanto com tudo: com os códigos mas também com o caos, com a liberdade absoluta.
Uma unidade na diversidade.
Um macrocosmos num microcosmos. O cosmos e o caos. Foi a isso que cheguei.
Chegou em que momento da sua vida?
Foi há pouco. Foi ontem, foi hoje. É agora. Está a ser.
Gostava de o ouvir sobre a Tropicália, sobre o que o movimento representou. Foi uma nova fase na sua vida, que cortou com o «Gil quadrado» e inaugurou uma fase quase de desbunda.
Foi. Coincidiu com umas experiências psicadélicas, de expansão de estados de consciência para transbordo de limites, derramamento, extensionalidade, diálogo intenso entre verticalidade e horizontalidade... Caí na farra, caí na gandaia.
O que seria diferente em si se não tivesse conhecido Caetano Veloso, que fez consigo a Tropicália?
Essa é uma pergunta que continuo a me fazer. E para a qual tento várias respostas. Em resumo, respondo sempre da seguinte forma: teria sido um músico bem mais simples do que sou. Tenho a impressão que a presença do Caetano na minha vida chamou a atenção para a complexidade como elemento essencial da constituição da expressão. E eu busquei. Caetano trouxe a curiosidade em relação ao complexo.
Ele libertou-o?
É. Se ele não tivesse aparecido na minha vida, talvez eu tivesse ficado com uma visão religiosa mais estreita, com uma visão estética mais estreita, com uma visão moral mais estreita. Caetano deu facilidade de expansão à minha vida, à minha existência.
Foi uma espécie de irmão homem?
É o irmão que eu não tive. E não é só um irmão homem. É o irmão mais velho, o mais sábio.
Curiosamente ele é que é o da desbunda. Isso de ele ser o irmão mais velho é uma novidade...
Mas essas coisas são novidade o tempo todo, mesmo para mim. São graus, camadas de conhecimento, de compreensão sobre o passado, sobre as minhas relações com as pessoas que vão chegando e vão-se sobrepondo ao longo dos tempos. Várias coisas que estou falando aqui sobre Caetano e sobre mim, eu nunca disse antes. São essa complementação constante do significado da vida, do significado da origem das coisas. Eu gosto disso. Gosto de uma coisa que só tenho começado a compreender agora, nos últimos tempos da minha vida, que é a mudança.
Mudança?
Nada está pronto. Não há referências que possam ser eregidas como definidoras do seu presente ou do seu futuro. Não há códigos. O que há sempre é flutuações do caos. A ordem é uma flutuação do caos, efémera, passageira. Não há ordens perenes, permanentes. Nesse sentido, não há modelos. Há sempre mudança, mudança, mudança.
Mas há sempre uma coisa, que é a memória.
É, mas até ela muda muito. Porque as interpretações que fazemos do passado, dos factos, das vivências, daquilo que gravou-se em forma de sentimento ou de pensamento, até as reinterpretações a cada instante são novas. Não há memória, nesse sentido de que a memória está aqui dessa forma. A memória é como a própria vida. Ela também é mudança.
Publicado originalmente no DNA do Diário de Notícias em 2003