Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Gonçalo M. Tavares (2006)

30.11.15

No dia seguinte ao nosso encontro vi-o casualmente na rua, com a barba muito espessa e uns calções que lhe davam pelo joelho. E imaginei que se dirigia à piscina, onde agora nada. A casa é perto daquela rua e do café onde nos encontrámos para conversar sobre o mundo que ele habita. Ou os mundos. Mas antes disso: este rapaz que segue pela rua para ir nadar à beira de casa é tido, consensualmente, como um dos melhores escritores da sua geração.

É um autor prolixo. E entre o muito que escreve e publica, há uma colecção a que vulgarmente se chama “livros pretos”. Na verdade, o título genérico é “O bairro”, e da série fazem parte “A máquina de Joseph Walser”, «Um homem: Klaus Klump» ou o muito premiado «Jerusalém».

Os personagens destes livros habitam um mesmo universo, um mesmo bairro, e em cada livro recuperamo-los sob luzes de diferentes intensidades.

Gonçalo M. Tavares é um homem do seu bairro, seja ele qual for. Todas as manhãs percorre caminhos e rotinas, fita pessoas, cruza enredos. Não exactamente para transferir esses mundos para os seus livros, porque esses já lá estão. É vagamente inverosímil que tudo isso esteja já escrito, independentemente do bairro. Mas é mesmo assim.

Houve um tempo, uma década, em que Gonçalo se levantava pontualmente às cinco da manhã. Quando eram dez e muitos acordavam para o pequeno almoço, ele tinha a noção de estar exaurido, e de ter o dia justificado (salvo) por causa do que escrevera.

Desses anos resultaram incontáveis páginas que começaram a ser publicadas nem há cinco anos. O mítico baú Gonçalo M. Tavares existe deveras. Ele conta: «Grande parte dos livros foram escritos antes de qualquer deles ser publicado. Entre os 20 e os 30 anos. Felizmente há distância entre o momento que faço e o momento que publico. Quando decido editá-lo olho para ele como um leitor que ainda pode cortar, e não como alguém que o escreveu. Sou de um desprendimento enorme! Posso cortar cem páginas! É uma espécie de pós-morte: agora vou pô-los no mundos dos vivos e eles seguem o seu trajecto». Mas logo a seguir confessa que cortar texto é violento, é como arrancar um bocadinho de si próprio. E que só é possível se houver tempo de intervalo.

Sobre que são os seus livros? Depende dos livros, depende do mundo. Na véspera de o ver, aliás, eu começara por perguntar quantos mundos tem ele dentro de si. «Todas as pessoas têm vários. O que talvez não seja tão comum é expressar cada um destes mundos literariamente. Todos me pertencem. Todos os tons pertencem à minha identidade».

A sua identidade, os seus livros, são mais pesados ou mais lúdicos. São mundos fragmentados, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente coesos e sólidos. Se forem mais lúdicos, e de descompressão, pertencem à série dos “senhores”: «O senhor Valery», «O senhor Brecht» ou «O senhor Calvino». Mas há também peças de teatro, poesia, ficções curtas, textos referentes a autores da sua biblioteca.

O senhor Gonçalo M. Tavares é um homem labiríntico. Há nele uma afabilidade que desconcerta e contrasta com o negrume dos livros pretos, por exemplo. E saber que tem três filhos e que gosta de ensinar Epistemologia aos seus alunos na universidade, faz-me perguntar como convivem estes mundos. Mas ele não vê nisto nada de extraordinário. Sempre foi popular entre os amigos da escola, passou a infância na rua, jogou futebol, andou ao soco. Depois fechou-se. Aos 18 anos equacionou dedicar a vida à matemática pura – há, curiosamente, nos seus livros, um racionalismo que contrasta com o tom lamechas dominante. Gonçalo queria que em cada frase houvesse uma ideia, e que esta fosse esculpida, até resplandecer na sua máxima pureza. A sua prosa é de uma economia e fulgurância notáveis.

Porque escreve ele, então? «É difícil pensar o que é que me levou aos 20 anos a fazer esse regime. Mas a escrita é uma maneira de pôr no mundo qualquer coisa que explicita o incómodo. O incómodo é como uma pessoa estar com uma roupa dois números abaixo. Não estar bem. Em vez de gritar ou bater, escrevo livros. É estranho, mas o acto de escrever, não o domino. Sento-me e não sei porque é que aparece aquilo, não programo. É um livro instintivo, quase inconsciente. Esta é uma fase. A de corte surge depois de um intervalo. E esta, ao contrário, é totalmente lúcida».

Muito antes de ser escritor, foi leitor. Criou um bunker onde punha quatro ou cinco horas por dia: «Ninguém vai tocar nestas horas. São para mim! Usei-as para ler e escrever. São quase uma necessidade fisiológica».

Comove-se com Camus ou Clarice Lispector. Mas Séneca talvez seja o que tem mais rente aos dias. Agradam-lhe as coisas que lhe escapam, que não domina - «Estas são as que não sei ainda». Por vezes, na rua, é interpelado. «O que me tira deste mundo da escrita é a biografia, são os cruzamentos com pessoas».

Cruzou-se comigo num café perto de casa. A seguir ia nadar. No dia seguinte vi-o e pareceu-me uma figura iconoclasta. Tem 36 anos, cerca de 20 livros editados.

 

 

Publicado originalmente na revista das Selecções do Reader's Digest em 2006