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Anabela Mota Ribeiro

Gonçalo M. Tavares

17.11.21

Pensemos numa célula, na membrana, no núcleo. Pensemos num mundo onde os caminhos se fazem a pé, o perímetro é desafiado, o âmago procurado. Uma célula é uma célula é uma célula. Individuada, porosa, em relação com outras células, com outros sujeitos, com outras palavras. Um escritor como Gonçalo M. Tavares é um mundo que nos interroga no coração do que importa. Parece possível, na sua escrita, chegar à célula unitária e recomeçar, a partir dela, a compreender o mundo, a não saber nada, a ter vontade de continuar à procura, a ter vislumbres do que as coisas são. Do que é, por exemplo, a felicidade.

Foi em coisas assim que pensei quando falei com ele, numa tarde de Outono, no Folio, o festival literário de Óbidos. Interroguei-me sobre o epicentro, os seus epicentros, as palavras fundadoras. E sobre o papel da alegria no ofício de viver.

(Este texto é, então, uma adaptação dessa conversa perante a plateia.)

  

Num livro antigo, Investigações Geométricas: “Depressão, (dia seguinte). Mas afinal há ainda possibilidades (um novo dia)”. Outra entrada: “Realidade, imaginação, método para não ficar louco: abrir a tinta das coisas.” Outra ainda: “Ao medo podemos chamar possibilidade de perder a forma”. Medo, imaginação, novo: estas são as suas palavras-âmago?

Há palavras com um tom meio saltitante. Torcicologologista é um exemplo. E há palavras muito mais pesadas. Ando muito entre palavras que me puxam para baixo, que me obrigam a escavar, e palavras que são como helicópteros, que puxam para cima.

Tenho livros por todos os compartimentos, como toda a gente. Recentemente estava a ler um livro sobre o Holocausto. Devo tê-lo pousado numa secretária que tenho no quarto. Nessa noite, estava a adormecer e havia ali um incómodo qualquer. Parece uma coisa de filme, mas era como um som que não deixa dormir. Simbolicamente encontrei naquele livro [a razão do incómodo]. Abri a porta do quarto, pus o livro fora, como se põe um animal que entrou e não devia ter entrado. Fechei a porta, consegui dormir.

 

O que se lê antes de dormir interfere connosco...

Durante muito tempo lia livros muito duros, ou livros de Filosofia, e era muito difícil adormecer. Ultimamente, li Cebolinha e Mónica. Se queremos que as palavras nos embalem, para podermos adormecer, há palavras que servem para isso. E há palavras que nos acordam, que constantemente nos acordam, mesmo que tenhamos muito sono.

 

Movimento, dança: são palavras que o içam? São palavras que o põem num plano de leveza, ao contrário de medo ou ameaça, que são as tais palavras-chumbo?

Era interessante que as palavras tivessem um peso. Se calhar têm. Pôr na balança, as palavras... A palavra Paris não tem o mesmo peso para uma pessoa que se apaixonou em Paris ou para uma que partiu a perna em Paris.

Mas da palavra movimento gosto muito. Há vários tipos de movimento. A Organização Mundial de Saúde, que é muito revolucionária, tem uma definição de saúde muito bonita: “A saúde é o bem-estar físico, mental e social”. É uma definição que ainda hoje não é aplicada. Estamos quase só na saúde física. Temos uma espécie de fobia da ideia do sedentário físico. E quando as pessoas falam de querer saúde falam sempre no que vão comer, se vão correr de manhã, ou não. E a OMS está a dizer que há três tipos de sedentarismo. Uma pessoa pode ser sedentário físico, sedentário mental, sedentário social.

 

Como assim?

Se alguém não lê um livro, não tem curiosidade, tem uma imobilidade mental. Não é saudável. Se alguém durante muito tempo não conhece pessoas novas, é um sedentário social. Nesse sentido, o movimento é o inimigo deste sedentário. Associo sempre o movimento físico, mental, social: são uma manifestação pelo verbo da vida e da saúde.

 

Gostava de derivar de movimento para fuga, procura. No sentido de busca, demanda, itinerários, estar perdido. É uma coisa constante nos seus livros, alguém que está em fuga. Alguém que busca qualquer coisa (um sentido, a resolução de um enigma). A busca para corrigir o que está em desequilíbrio.

É uma expressão de um filósofo de que gosto muito: a pessoa aprender enquanto está a fugir. Usar a fuga como meio de aprendizagem. Normalmente associa-se a fuga ao querer afastar-se o mais rápido possível de um inimigo.

Enquanto seres vivos, estamos em fuga. Os gregos eram muito sensatos, falavam dos deuses e dos mortais. Nós somos os mortais. Os mortais: aqueles que vão morrer. Isto é tão forte, tão terrível... Mas agimos como imortais, claramente.

 

Defensivamente vivemos na ilusão de que há para nós o instante seguinte, de que há sempre o instante seguinte.

A pessoa perceber que é mortal é perceber que estar vivo é estar em fuga disso – da morte. E estar em fuga não é uma fuga desesperada, é uma fuga consciente. Se a pessoa perceber que é realmente mortal começa a dar um peso diferente às decisões. Tenho amigos que vivem como deuses.

 

Ou seja?

Nada tem peso. Podem ver um filme mau, sabem que é mau, como se fossem imortais, como se tivessem tempo. Quando se é mortal cada decisão tem um peso, e esse peso não deprime, alegra. É o peso de eu decidir e de aquela escolha ser a de alguém que sabe que vai morrer. Todas as manhãs devíamos dizer: aquele que vai morrer, hoje vai trabalhar. Aquele que vai morrer, hoje vai a Óbidos falar. Aquele que vai morrer por enquanto pode ir a Óbidos falar. Aquele que vai morrer tem a possibilidade de comer um pastel de nata. Se, pelo contrário, colocarmos isto tudo na imortalidade, nada tem importância.

 

A palavra urgência adquire então um peso diferente: temos a urgência de fazer coisas porque somos conscientes da nossa mortalidade, da finitude do tempo, e isso é vivido com alegria. Sublinho esta palavra – alegria – tão preciosa. De certa maneira, caiu em desuso neste século, onde a aposta é no sucesso, na isenção da falha. A felicidade quase se transformou num conceito abstracto.

No antigo Egipto, uma das perguntas que faziam depois de as pessoas morrerem, era: “Alguma vez tiraste o sorriso de uma criança?”. Era uma das perguntas que tinham peso. Alguém que dissesse: “Sim, por três vezes tirei o sorriso de uma criança”, tinha um peso negativo. O julgamento final é de quanta alegria se introduziu no mundo, de quanta alegria se tirou do mundo.

O Robert Walser tem uma pergunta muito terrível, que parece muito banal: “As pessoas que vivem contigo são felizes?”. É uma pergunta decisiva. Se a esta pergunta a resposta não é um sim inequívoco, há alguma coisa que está a cair.

 

É forçado dizer que as pessoas que nos seus livros estão perdidas (perdidas no seu século, perdidas dos seus progenitores, de si mesmas) procuram a felicidade?

Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai é sobre uma menina com Síndrome de Down. E por falar em alegria, tenho tido oportunidade de me cruzar com muitos meninos com Trissomia 21. Dou mestrado em Reabilitação Psicomotora, dou aulas a futuros professores de crianças com deficiência física, mental. Cada pessoa com Trissomia 21 é muito diferente. Há meninos muito malandros e maus (felizmente, é uma maneira de se defenderem). Mas há uma coisa base que é a alegria.

Nesse livro, a personagem central vai com a menina tentar encontrar o pai por várias cidades, e a menina é uma espécie de salvo-conduto. A certa altura ele chama-lhe um Moisés que separa as águas. Tudo se afasta, há uma aura [que ela tem].

Hoje, pela clonagem, um conjunto de técnicas que às vezes diabolizamos mas que têm coisas muito boas, começa a ser possível eliminar algumas doenças. A escolha de ter filho ou filha é banal nos Estados Unidos. Já se pode escolher a cor dos olhos. Mas tirando essas questões estéticas, há doenças. Uma das discussões que existem é se estamos à beira de eliminar a possibilidade de existir Trissomia 21. A maior parte dos cientistas diz que não devemos eliminar esta hipótese.

 

Porquê?

Podemos dizer que a pessoa não tem consciência, mas se forem bem protegidos, muitas vezes têm uma vida muito alegre. Mostra como somos invulgares enquanto espécie humana. Não faz sentido julgarmos que aquela alegria, por não ser consciente, é pior do que a nossa. Damos um peso muito grande à questão de a pessoa ter lucidez, consciência. O essencial não é isso, é a alegria. A alegria que a pessoa tem e a alegria que a pessoa consegue transmitir.

Falando do Alzheimer. Tenho um colega, a mãe tem um mundo de absoluta fantasia. Um mundo que não existe. Um conjunto de imagens consecutivas que não existem. Tem a sensação de que o marido ainda está vivo. Está muito claro que ela vive num estado de alegria inconsciente. Qual é o sentido de agarrar nesta senhora e dizer: “O seu marido não está vivo”? Entre a lucidez e a alegria, não há dúvidas: a alegria é muito mais importante.

 

Como é que ficou tão difícil uma coisa essencial – a alegria?

N’ O Torcicologogista tenho duas personagens, uma que acorda a dizer sim, e uma outra que a primeira palavra que diz é não. Há por vezes tanta tensão na cidade que estamos a ser transformados em máquinas que acordam a dizer não. Quererem obrigar-nos a ser uma espécie que acorda a dizer não é das maiores violências que existem. Como é que acordamos radiantes? Não é habitual, infelizmente.

 

Há um verso de Alexandre O’Neil (que por acaso traz para o seu último livro, num outro verso), e que agora me ocorreu. Fala do modo funcionário de viver. É nesse que vivemos, peça de uma engrenagem, árida, movimento acelerado, com grande dificuldade em parar, escutar, ver. A ideia de máquina e de processo é outra constante no seu universo. Escrevi um texto sobre a avaria. Todos estamos fascinados com a electricidade, e a electricidade é o símbolo desta velocidade. Só há momentos de paragem súbita quando há uma avaria. Quando se está em casa e a electricidade vai abaixo, há uns que estão no computador, outros na televisão, e a primeira reacção é: “Que desgraça!, o que é que nos foi acontecer?”. Com o tempo, se a avaria por felicidade se prolongar, as pessoas começam a relaxar e há qualquer coisa que aparece, que é imprevisível – é outro tempo.

A electricidade ilumina. Inicialmente era a possibilidade de nos vermos uns aos outros. Quando a electricidade é transformada num meio técnico que faz com que a minha presença corporal seja apenas simbólica… Se estou ao lado de uma pessoa, a dois metros, e estou na Internet, o meu corpo simbolicamente está aqui. A electricidade transforma o nosso corpo num traço abstracto que está simbolicamente ao lado, mas na realidade estamos noutro lado.

 

A nossa atenção está fora de nós, fora do nosso corpo.

É, é a questão da atenção: a nossa atenção está onde estamos. O que é terrível no canto da sereia da electricidade, das comunicações, é que o sítio onde está a nossa atenção e o sítio onde está o nosso corpo é raro coincidirem. De vez em quando o nosso corpo encontra-se com a nossa atenção e diz: “Bem, há tanto tempo que não te via”. É uma fragmentação da vida muito violenta.

 

Lá atrás falávamos de avaria...

Quando as coisas avariam , quando já não posso telefonar, mandar mensagens, fico numa rua sem saída. De repente tenho o corpo e a atenção sincronizados. Quando vários corpos e várias atenções estão sincronizadas cria-se qualquer coisa muito animal e muito humana ao mesmo tempo. Estamos aqui e a nossa atenção está aqui. E há duas pessoas que têm o seu corpo e a sua atenção num mesmo espaço. Isso é qualquer coisa de invulgar, hoje. A avaria é uma possibilidade de alegria, de voltar à alegria animalesca e humana que tínhamos.

 

Há uma coisa que acontece ao corpo e que não acontece na electricidade, ou na velocidade: a cicatriz. No seu livro Investigações Geométricas lê-se: “Não há formas novas. É impossível começar. Mas a única hipótese é voltar a começar.” Isto põe-nos no passo seguinte, aquele que sucede à cicatriz.

Se pensarmos na história do século XX, percebemos que as nossas cicatrizes são quase ar. O homem é capaz de resistir a coisas impressionantes. Há casos de pessoas que estiveram em Auschwitz, que saíram e que tiveram filhos, constituíram família. Esta ideia de reconstrução, de começo novo está no centro do ser humano. Quando alguém consegue reconstruir a partir do momento em que a sua família foi exterminada, do momento em que viu coisas horríveis, e consegue ter filhos, a partir daí qualquer cicatriz é menor.

 

Como é que não desabamos depois do extermínio, depois do fim das utopias, depois da decepção? De onde vem esse ímpeto, essa coisa vital que nos faz acreditar na nova forma do dia seguinte, ter filhos, fazer vida?

A linha do horizonte é muito bonita. É uma linha ficcional, privada. Parece que é mesmo uma linha que o mundo está a traçar, e aquilo não existe. Esta capacidade óptica de vermos a linha do horizonte, alimenta-nos. Temos uma espécie de miragem, sempre. Não vemos só o muito perto, somos um animal de projecto, de linha do horizonte. O que é terrível é quando as pessoas crescem num ambiente onde levantar a cabeça é qualquer coisa de castigável. O movimento do esternocleidomastoideo, que levanta a cabeça, e que não está só circunscrito àquele corpo e àquele momento, e consegue ver o dia seguinte, é um movimento de qualquer tragédia.

Durante muito tempo andei com uma frase da Clarice Lispector, do Perto do Coração Selvagem: “De qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”. Depois de qualquer conflito ou tragédia, ou depois de qualquer tédio, que às vezes é o mais difícil, levantar como um cavalo novo...

 

A imagem que me ocorre para esse cavalo novo é a de um movimento que atravessa o vento, sem medo. Tem muito de pureza, de força inaugural.

Uma coisa muito chocante para mim em termos da espécie humana é perceber a forma como somos indefesos. Se compararmos o homem com os outros animais, é impressionante a fragilidade. O homem é de longe o animal que nasce mais inábil, mais tonto. Um bebé recém-nascido não percebe nada. Se a consciência fosse essencial havia aqui uma coisa claramente errada. O que marca a espécie humana é que se não tivéssemos um cuidador, já tínhamos desaparecido. Existimos porque temos um instinto amoroso, que é inexplicável.

 

Um instinto que nos faz cuidar do indefeso.

É este gesto amoroso que funda o humano. O que é incrível é a fragilidade dos bebés.

Um espectáculo de terror é ver um insecto que foi virado de costas para o chão, a mexer as patas, a tentar virar-se e a não conseguir. Quando crianças, por vezes, perversamente, púnhamos os insectos de costas para o chão. E depois, a brincarmos aos deuses, lá os virávamos de novo. Um bebé, até aos três, quatro meses, se se colocar de costas, não se consegue virar. Tal como o insecto, precisa de um toque de alguém, de um dedo. Um bebé precisa de alguém para se pôr na posição certa em relação ao chão.

 

Somos na relação com outros, carentes do contacto com outros. O gesto é criador.

O ódio é secundário, este gesto é que funda o humano. Individualmente somos isto, nascemos isto, somos este insecto.

É extraordinário como é que há sempre pessoas para nos darem esse pequeno toque, para nos virarem. Tenho um fascínio por este toque. Quantas vezes não são os pais os cuidadores, os que dão o toque, são outros.

 

Ouço-o falar desse insecto e lembro-me de o ver num filme de Marco Martins. Estava a escrever e atacava o computador como um animal. Era um gesto muito feroz e ao mesmo tempo voraz. Pensei que podia ser alguém que come com sofreguidão, mas também podia ser alguém que vomita. De qualquer modo trata-se de um movimento físico que remete para a condição animal.

Sou amigo do Marco Martins e concordei com isso que é um bocado estranho, filmarem-me a escrever. A certa altura esqueci-me de que ele estava. Quando escrevo é uma coisa puramente física. Nos dias em que as coisas correm bem, começo a escrever e estou três, quatro horas assim. Sem fazer uma pausa, sem comer, sem beber. É mesmo seguido. Às vezes paro meio a tremer, com fome. A escrita é muito animalesca.

 

Animalesca como?

Deixo de ser consciente do que estou a escrever e começa qualquer coisa que tem a ver com o movimento. Como escrevo ao computador e não corrijo logo, consigo ver perfeitamente a velocidade a que escrevo pelas letras fora do lugar. Num dia meio alucinado em que escrevo 20 páginas, as primeiras páginas são escritas de forma lenta. As letras estão quase todas no seu sítio. Mas a certa altura começo a acelerar, a acelerar! Há páginas que são escritas a dez quilómetros hora, outras a 100. O mais fascinante é perceber que as páginas que escrevo a 150 quilómetros por hora são muito mais fortes do que as outras. E estão muito mais próximas do final, de estarem terminadas.

 

Escreve sempre num jacto?

Há uma imagem no pensamento e depois escrevo. Mas, quando começa a acelerar, o que tento é fazer coincidir o momento de escrita com o momento em que estou a pensar. Agrada-me muito. É perder a consciência, é perder a lucidez. Quando sou muito consciente, estou a fazer qualquer coisa que já conheço.

É uma coisa mesmo física. A mesa, o computador, o corpo é quase uma bola. Como se fosse um animal híbrido que começa nos sapatos, passa pela cabeça, pelo teclado, mesa, chão, pés. Um animal híbrido que é uma esfera. Não há alegria comparável, não há nada do exterior (tirando a parte pessoal) que me dê maior alegria.

 

Isto é próximo do sonho? E quando se lê a posteriori, quando lê essas páginas que se fazem no momento em que se fazem, que não estão pré-configuradas, como é que é esse encontro? Compreende tudo o que ali está? Decifra?

A escrita para mim tem este momento de alegria, de excitação física. Depois é um olhar mais frio, mais técnico, nada entusiasmante. Muitas vezes não consigo decifrar, as letras estão de tal forma fora do lugar que não percebo o que queria escrever. Mas gosto que a velocidade me impeça de perceber o que fiz. Acontece muitas vezes que por um acaso carrego na tecla que põe maiúsculas; é como se fosse alguma coisa intencional, do próprio texto.

 

Há um crocodilo que aparece no Torcicologologista, há uma frase que é lida quando a pessoa acorda... Tem falado de animais, temos falado de um plano cujas coordenadas não são exactas.

Essa escrita violenta e rápida tem associações que não dominamos, associações imprevistas. Pode-se aproximar do sonho. A escrita não é um trabalho intelectual, é um trabalho físico. Escrever é um verbo físico. Saltar, andar, escrever. Não ponho o verbo escrever próximo do verbo pensar, ponho próximo do verbo andar. Só quando olho mais tarde é que talvez seja um processo mais pensado.

 

E as fundações deste processo físico, deste verbo escrever? Só começou a publicar aos 31 anos, e tinha escrito já muito, muito. Uma vez disse-me que esses foram anos de fundação. Quando estava pronto, começou a edificar para fora e começou a ser visível o trabalhado no subterrâneo.

Sobre a fundação. O meu pai é engenheiro. As obras começavam por abrir um buraco. E passados três meses o que havia era um buraco. Depois começavam as fundações. E só passados quatro ou cinco meses é que a casa ia crescendo – de baixo. Começava no piso 0, depois começava a subir. Isto marcou-me muito, a casa pousar e fundar.

Fundar tem a ver com fundo, tem que se abrir um buraco, pôr lá alicerces, e depois começar a crescer. Pousar é a coisa mais frágil do mundo. Se quiséssemos fundar esta garrafa tínhamos que começar a escavar. Se quiséssemos que esta garrafa diante de um toque não caísse, a única hipótese era trabalharmos muito no que não é visível. Escavar, criar uma protecção que não é visível. Sinto que estou a começar.

 

A começar?

Há um desfasamento entre o momento em que se publica e o momento em que eu faço. A sensação é a de existirem duas vidas, uma vida exterior, a que se torna pública; e uma vida interior, que é estar noutro tempo. É como se existissem 15 anos, dez anos de interior que ainda não é público. Isso dá-me uma tranquilidade em relação ao exterior, defende-me. E tem a ver com esse tempo de fundações.

 

Onde é que aprendeu? Um verso da Antígona: “O homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”. Os livros são fogo ardente, também? É preciso deixar de ler para começar a escrever?

A leitura e a escrita não podem ser vistas como inimigas, senão a escrita transformava-se num intervalo da leitura, ou vice-versa. A leitura, o cinema constroem imagens que misturadas com milhares de outras imagens vão produzir qualquer coisa. A ideia da leitura como inimiga da escrita, ou como qualquer coisa que tem que ser interrompida quando se escreve... não me parece. Se a pessoa estiver obcecada por um autor, se só ler esse autor, pode haver qualquer coisa que o marque excessivamente.

Sobre a curiosidade, o Deleuze tem uma coisa muito bonita. Diz que há duas forças. Normalmente associamos o poder a emitir, a ter força para influenciar os outros. Mas o Deleuze diz que há dois tipos de poder, o poder de influenciar os outros e o poder de ser influenciado. É tão fraco aquele que não consegue marcar os outros como fraco é aquele que não consegue ser marcado pelos outros.

 

Porque é que é uma fraqueza não ser marcado pelos outros?

Porque isso é a pessoa ter medo de si própria, pensar que não tem uma autonomia, uma força suficiente para resistir aos outros. A uma leitura, um filme. Só podemos marcar os outros se tivermos disponibilidade auditiva, visual para ser marcados pelos outros. Isto é uma grande manifestação de força. A pessoa sentir-se tão forte que pode estar na posição de ouvir.

Uma coisa que caracteriza a adolescência, quer os adolescentes tenham 15 anos, quer tenham 40, é a necessidade de num grupo se imporem. As pessoas fortes são pessoas que raramente falam, que ouvem. Essa disponibilidade para receber é uma força.

 

Entre o interior e o exterior, entre o que foi escritor e o escritor publicado, há um mundo. Ao mesmo tempo, parece que tudo foi já feito. O que é que ainda se pode escrever de novo?

A questão é sempre qual é o ponto de vista em relação ao tema. Quantos beijos existem? O beijo é a coisa mais vulgar, já vimos milhares de beijos. Se virmos aquela cena do Tarkovsky, vemos que ali não é o beijo que é novo, é o ponto de vista em relação ao beijo.

 

É considerado um dos beijos mais bonitos da história do cinema, e está na Infância de Ivan.

Alguém que tem a ilusão de pôr um tema novo… Há uma série de teóricos russos que analisam as fábulas, analisam as histórias clássicas, e mostram como estão ali todas as relações possíveis. Os gregos fizeram todas as relações possíveis. Sobra-nos um ponto de vista.

 

Falámos já do Marco Martins e agora do Tarkovsky. De que forma o cinema se relaciona com o seu trabalho?

Os livros são todos muito distintos. Há livros mais visuais. Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do seu Pai, é muito visual. Há outros que são muito de reflexão, que é o inverso do visual. O Short Movies é apenas uma forma de descrever aquilo que vemos fisicamente. Se não entrarmos na psicologia e só descrevermos os gestos, podemos chegar a qualquer coisa de muito profundo.

Houve uma altura em que em Lisboa fizeram um conjunto de cerimónias ligadas ao Oriente, e um amigo levou-me a um ritual japonês do chá. A primeira coisa que fizeram foi dar uma malga pesadíssima, logo que entrámos. Precisávamos das duas mãos para a agarrar. Logo a seguir o mestre encheu-a com chá a ferver até ao topo. (Vínhamos a falar, a gozar, aquela arrogância dos 20 anos ocidentais. E em menos de um minuto estamos todos calados. E ninguém pediu silêncio. E todos imóveis. Qualquer movimento e queimávamo-nos. Se disséssemos uma palavra também nos queimávamos. Mesmo em termos de pensamento, não havia hipótese de pensarmos noutra coisa senão na malga com chá a ferver.) Depois o chá foi arrefecendo, bebemos o chá e o mestre despediu-se. Não disse uma palavra. Foi a experiência mais espiritual que tive, e foi puramente de opção material.

 

O que é que aprendeu?

Ensinou-me muito sobre como é que chegamos ao centro. Muitas vezes chegamos por um caminho que parece um caminho oposto.

 

Pensou ser jogador de futebol. Ainda tem prazer em jogar?

Não tenho há décadas o prazer de jogar futebol. O prazer do jogo é muito interessante. É inútil. Há uns anos levei aos meus alunos patinhos para eles pintarem. Alunos universitários. A certa altura começam a discutir o marcador verde, o vermelho. Começam a lutar entre eles enquanto ilustravam os patinhos.

O jogo tem este fascínio pelo inútil. Triste é irmos abandonado o jogo, qualquer que ele seja. O jogo tem um prazer que não é diferido. A pessoa não joga para mais tarde ter qualquer coisa. É quase o inverso da lógica económica que existe. É ter como centro o prazer e não a vantagem económica. Isso é revolucionário. Hoje, se quisermos fazer micro revoluções, é fazermos um jogo.

 

Explique melhor porque é um acto revolucionário fazer qualquer coisa inútil.

Quase sempre estamos a fazer o contrário. O prazer foi colocado no dia seguinte. E as crianças têm isso muito claro: o jogo é central para as crianças porque para elas o prazer é para ser agora. Há uma fase a partir da qual pensamos: “Vou fazer isto para ter prazer mais tarde. E mais tarde faço isto para ter prazer mais tarde”. Uma espécie de adiamento de prazer que é interrompido por uma coisa chamada morte. A maior parte das pessoas, quando estão a morrer estão a dizer: “Agora que eu ia começar é que estão a interromper.” O jogo é a questão do presente.

 

Escrever, a literatura, os seus livros são uma forma de construir utopias?

Não vejo que a literatura tenha por função construir utopias ou distopias. O que me interessa é perceber pequenos gestos. A criação deve contribuir para uma alegria lúcida. Mas a lucidez não é pintar tudo de amarelo. A lucidez muitas vezes é ver o lado escondido do humano. Há uma parte de indiferença em relação ao outro ser humano que temos que assumir, isso não tem mal nenhum. O que funda a espécie humana, por um lado, é aquele gesto amoroso, o da bondade; por outro, é uma coisa muito terrível. Se formos lúcidos temos que dizer: “Prefiro que morras primeiro que eu”. Sobrevivemos porque temos este instinto. E este instinto é o da maldade. Felizmente não somos expostos ao limite de ter que matar o outro para sobreviver, mas em pequenas escalas é isso que vamos fazendo. Uma situação limite como o suicídio, é inexplicável. Somos feitos para querer viver, no limite eliminando, se for preciso, o outro.

 

Gostava de terminar com uma passagem d’O Torcicologologista, Excelência. “Mas o que se exige é mudar a ordem das letras, a combinação das letras. A forma como as letras ao lado umas das outras formam palavras. No fundo queremos uma nova combinação entre palavras. As revoluções seguem assim a metodologia que alguns poetas aconselhavam, promover uma nova combinação de palavras. Encontros raros entre palavras era uma das definições de poesia.”

O Rimbaud definia a poesia como um encontro raro entre palavras. Um encontro imprevisto entre duas palavras. O átomo da literatura não é uma palavra, são duas palavras. Na Clarice Lispector é muitas vezes essa associação improvável que eleva a frase, como se a frase ganhasse altitude a partir apenas de um conto entre duas palavras. A literatura é combater o lugar comum, a associação previsível. Eleger palavras é perigoso, mas a primeira função do escritor é partir as palavras. Individualizá-las.

Os lugares-comuns. Mar de gente: é bonito. Era tanta gente que era um mar. Mas a certa altura transforma-se num casamento eterno. O trabalho de um escritor é separar mar, separar gente, pô-los em circulação e pô-los disponíveis para fertilizarem com qualquer outra palavra. Esta disponibilidade amorosa das palavras dá o tom da escrita.

 

Fala de palavras como se falasse de pessoas. É pensar que as palavras estão amorosamente disponíveis ou de costas voltadas para outras palavras, como as pessoas.

Muito do nosso entendimento quando falamos entre nós é construído por acasalamento de palavras que estão ali muito unidas. Às vezes pensamos que essas palavras são uma única. Mar de gente devia ser escrito com hífen no meio. Esse é que é o inimigo da linguagem, as novas palavras criadas por associações velhas. Pormos em circulação essa disponibilidade afectiva é um bom ofício.

 

Publicado originalmente na revista Ler em Dezembro de 2015