Guilherme d'Oliveira Martins (2014)
Como é o mais puro Portugal? É um país contraditório e ciclotímico, ora lixo ora feito de heróis do mar. É um país onde medra o medo e a audácia. Onde toda a gente vê corrupção por todos os lados e ninguém se considera corrupto. Onde há uma separação vincada entre um nós e os outros.
Nós, eu, entrevistámos Guilherme d’Oliveira Martins sobre os outros, de que somos parte, também, claro. É uma entrevista a duas velocidades, combinada há semanas, que tem como cais de partida “Na Senda de Fernão Mendes”. O livro acompanha percursos portugueses no mundo. Vai de S. Petersburgo a Malaca, vai de Ruben A. a Ruy Cinatti. Geografias e peregrinações com um enredo poético, à procura da nossa identidade. A segunda parte da viagem vai ao encontro do ambiente destes dias, da turbulência que nos faz equacionar a palavra corrupção como uma das palavras do ano.
Oliveira Martins é o presidente do Centro Nacional de Cultura e o presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção. É também o presidente do Tribunal de Contas. Em qualquer caso, é um homem que confia na forçosa imperfeição da democracia.
No seu livro mais recente usa a expressão “o mais puro Portugal”. Partamos dela para pensar a nossa essência.
Essa ideia de um Portugal puro não existe, mas há uma raiz portuguesa que se projecta e assume diferentes [formas]. Finisterra é sempre um lugar onde muitos se encontram e é uma espécie de destino. Os muitos povos que nos constituíram ligaram-se. Partimos deste continente em miniatura de que fala o Orlando Ribeiro. É o primeiro intelectual a falar da tensão entre as muitas diferenças e uma homogeneidade identitária. Vamos pelo mundo e quando descobrimos um português, ainda que tenha uma origem diferente da nossa, sentimos uma identificação com ele.
Sentimo-nos em casa. Há fronteiras constantes de 800 anos. Coisa única na Europa.
Essa fronteira estável permite a constituição de uma identidade muito forte marcada por uma língua.
A língua é o fio de Ariadne, é o que une? Isso pode aproximar-se da mais pura essência do português?
A matriz é a língua. Claro que uma língua não existe sem as pessoas que a falam.
A língua convoca uma identidade, um imaginário, uma pertença.
É uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. Parece um paradoxo. Quero dizer que a nossa língua, criada neste ocidente peninsular, projectou-se pelo mundo, com diferenças; e vai ser matricial na relação com os outros. Não é de adaptação mas de recriação. Não pode ser uniformizada numa só realidade, a da lusofonia. E não é só a capacidade de adaptação [que nos marca], é a síntese e o diálogo.
Que outras coisas nos distinguem em qualquer lado do mundo? Em que é que se pensa quando se pensa na alma portuguesa?
Não há um paradigma. Até porque somos resultantes de muitas coisas. Mas há uma atitude. Tem a ver com a capacidade de ir ao encontro do desconhecido. Correr riscos.
Correr riscos porquê? Porque somos obrigados a isso? Ocorre-me uma expressão do velho Telmo Pais em “Frei Luís de Sousa”: “Necessidade pode muito”.
Muitas vezes há essa força da necessidade. Vamos para Ceuta e depois para África porque somos um país pobre. Somos levados para fora pela capacidade de ir ao encontro do incerto.
No livro fala de perder o medo.
Jaime Cortesão tem razão quando diz que o franciscanismo teve um papel importante porque chamou a atenção para a relação com a Natureza. A Natureza era necessariamente boa; antes o Atlântico era visto como um lugar de monstros, de perigos. Antecipamos o Renascimento na relação com a Natureza.
Por um lado, parece que não temos/tivemos medo de grandes empresas. Por outro, no dia a dia, o retrato que mais frequentemente fazem de nós é o de um povo acanhado, com uma baixa auto-estima, com medo do outro.
Somos contraditórios. O medo: todos lemos o que José Gil nos diz sobre o medo de existir. O Eduardo Lourenço, no ensaio “O Labirinto da Saudade”, fala muito na ciclotimia. A Lídia Jorge, há poucos anos (no contexto das agências de rating), usou com felicidade outra expressão: oscilamos entre ser heróis do mar e ser lixo.
Agora estamos na fase do lixo. Refiro-me ao ânimo.
1998, Ano Internacional dos Oceanos, Expo-98: havia a ideia de que tudo estava ao nosso alcance. Estávamos na fase heróis do mar. Eduardo Lourenço conclui, e estou de acordo com ele: não somos nem melhores nem piores do que os outros. Afinal, não podemos esquecer que partilhamos uma maravilhosa imperfeição.
É uma frase optimista para nos embalar nestes dias em que temos de nós a pior das ideias. O país está deprimido. Mas não está amorfo, está zangado consigo próprio. Basta ouvir as pessoas na rua.
Está inequivocamente zangado, e não podemos iludir esses problemas. Normalmente somos melhores nas dificuldades do que no sucesso. Deixamo-nos embalar no sucesso. Idealizamos o passado. Mas é um passado que não existe – a não ser na imaginação das pessoas. As dificuldades existiram sempre. Sustentabilidade económica só tivemos na História em cinco situações. Descobrimentos, ouro do Brasil, emigrações, volfrâmio, fundos comunitários. Cinco vezes. E nunca dependendo exclusivamente de nós.
Ou dependendo pouco de nós.
A célebre carta do Francisco Sá de Miranda ao rei D. João III é muito interessante. É escrita num momento em que há um império de dimensão universal. Sá de Miranda, consciente das dificuldades, diz: “Cuidado”. O reino estava a desertificar-se. Alexandre Herculano chama-nos a atenção para o facto de começar a História de Portugal apenas no século XII. Diz: “Somos porque queremos. Seremos enquanto quisermos.” Este elemento – vontade – é muito importante. Em dificuldade os portugueses respondem. Há dias olhava as estatísticas e um economista meu amigo dizia: “As famílias portuguesas comportaram-se muito bem perante a crise”. A taxa de poupança duplicou. Passou de 6% para 12%. Significa que perante as dificuldades as pessoas, por si, [aforram].
Por si só, com receio do que possa vir a acontecer. Não é o Estado a empurrá-las para isso.
Joel Serrão dizia que o Estado é o grande Messias. Mas o cidadão comum tem uma grande capacidade de resistência, ainda que haja sempre essa ciclotimia.
Impressiona que os ciclo e contraciclos sejam tão curtos. Fomos heróis do mar em 98. Foi ontem. Recebemos fundos da Europa, e foi a última vez que tivemos dinheiro a sério, nos anos 80. Foi ontem. Como compreender que tão rapidamente estejamos no polo oposto aquele de onde partimos? É assim com todos? Não somos só nós, a andar às cambalhotas?
É connosco. No fundo, não aceitamos o fatalismo do atraso. Isto tem a ver um pouco com a nossa inserção europeia. Somos europeus. Mas não podemos esquecer aquilo que o comissário para o alargamento (no momento em que entrámos) Lorenzo Natali dizia: “Quando os portugueses e os espanhóis entrarem na CEE, ela muda de natureza”. Neste sentido: [a Comunidade] já não é apenas aquele conjunto de países do centro da Europa (que estiveram envolvidos nas Guerras). Os países da Península Ibérica têm uma projecção extra-europeia que é relevante e que obriga a pensar a Europa não como um espaço fechado sobre si mas um espaço que só pode crescer se tiver um maior entrosamento com outros espaços. As Américas, Ásia, etc.
A pertença à Europa, no caso português, não apagou as características próprias do país. Portugal parece às vezes um filho insubordinado. Quer pertencer, lutar contra o fatalismo do atraso, mas mantém características de uma natureza indómita, uma têmpera que é comum a Espanha e à Itália do sul. O que é facto é que não crescemos à mesma velocidade que os restantes países.
Considerando apenas a Europa, somos periféricos. Considerando o mundo global, não somos. Se pensarmos no reforço da parceria atlântica, Portugal não é periférico. Pensemos na tensão entre o mar e o continente: Portugal é uma potência eminentemente marítima. Não é por acaso que a velha aliança luso-britânica ocorreu.
Um parêntesis para dizer que é moda dizer que o futuro está no mar. Mas o mar é muito caro. A investigação obriga a uma forte cooperação internacional. Vamos precisar, para aproveitar melhor a nossa plataforma continental, de uma acção muito exigente. O nosso triângulo de sobrevivência no futuro é Educação-Ciência-Cultura. Muitas vezes, na história portuguesa, foi desvalorizado.
Foi e é. Parece uma conversa gasta.
E chegamos a 1974 com 25% de analfabetos. Número impensável.
Quando se fala de atraso, habitualmente fala-se de crescimento, défice, despesa... Reduz-se tudo à questão económico-financeira. Outra forma de falar do nosso atraso é falar desses dois dígitos.
É falar do analfabetismo e de uma desvalorização do conhecimento. O grande desafio que hoje temos é o da aprendizagem. É transformar informação em conhecimento. Sou optimista nesse domínio, na tomada de consciência de que esse é um desafio de sobrevivência. Na carta que o infante D. Pedro escreveu ao seu irmão D. Duarte, a carta de Bruges, viajando pela Europa, [pode ler-se]: “Temos que fazer aquilo que de melhor os europeus fazem”. Esse desafio continua hoje bem presente. Dir-me-á: não o fizemos. Pois. Mas agora é uma questão de sobrevivência.
A aposta no conhecimento.
Sim. Não é pôr dinheiro em cima dos problemas. Não é apenas pensar em montantes. É pensar na criação de valor. A participação no Produto Interno Bruto da língua e da cultura é muitíssimo maior do que os números que por aí se apuram. Estes números que se apuram são com base em critérios de curto prazo. [Mas seremos] 400 milhões de falantes do português no final do século XXI.
Enquanto não transformamos isso em valor, falta dinheiro de caixa. Falta dinheiro para o todos os dias.
Falta a tesouraria, exactamente.
Todos estarão de acordo consigo quanto ao valor e à potencialidade da língua. Mas, e agora, como é que almoçamos? Como é que enfrentamos a falta de dinheiro em que o país está?
Essa é a exigência perante a qual nos encontramos: ter respostas inteligentes que não vão apenas atrás do que é mais fácil e imediato.
Hoje é impensável, mas lembramo-nos bem da pressão que existia nas últimas décadas: “Não se gastam suficientes milhões dos fundos comunitários”. Não se [cuidava] de saber do resultado da aplicação dos fundos. Se o balanço da utilização dos fundos comunitários é positivo? É muito positivo. Mas fizeram-se coisas que não se deviam ter feito.
Há sempre lugar para o desperdício. Há sempre lugar para a corrupção. São como que efeitos malignos e acessórios que vêm com uma força vital.
Se tenho a preocupação de pensar nos temas da cultura e da educação e da ciência, tenho o dever profissional, porque sou presidente do Tribunal de Contas, e uma grande exigência para avaliar, para ver como se utiliza o dinheiro, para ver quais são os resultados – e dizer que, se há margens de desperdício, temos que as combater.
Combatê-las não significa dizer que vamos tornar-nos perfeitos. Muitas vezes diz-se: “Se não vamos tornar-nos perfeitos, não vale a pena”. Vale! Vale a pena dar os passos necessários sabendo que nunca faremos tudo. Mas teremos que nos aproximar daquilo que é um dever. O mesmo em relação à corrupção. O problema da corrupção é antes de mais um problema de preveni-la. A ocasião faz a infracção. Temos que reduzir drasticamente essas ocasiões.
Qual é a percepção que temos disso?
O Eurobarómetro revelava: perguntavam ao português se temos um ambiente de corrupção: 90% das pessoas dizem que sim. Preocupa-me muito este número.
90% é esmagador.
É. Há países que têm valores maiores, mas com o mal dos outros podemos nós bem. É um número esmagador e não podemos aceitá-lo. Mas perguntadas as pessoas sobre: viram-se envolvidas num caso de corrupção?, 1% das pessoas, apenas, dizem que estiveram envolvidas. Portugal está abaixo da média; a média europeia é 3,5%.
As pessoas não têm noção de como a corrupção está instalada em pequenos circuitos do seu dia a dia?
É isso mesmo.
Quando falam de corrupção estão a pensar na grande corrupção?
Exactamente. Como se não tivesse a ver com o cidadão comum. Alguém me dizia: “Esse 1% é óptimo. Significa que há poucas situações...”. É péssimo! Significa que as pessoas não têm consciência que os riscos existem próximo [delas].
Fui muito criticado por tê-lo dito, até pelos sindicatos da função pública, e acusado de ser injusto. Um jornalista disse-me: “Ontem fui tratar um assunto da minha mãe. Disseram-me que se quisesse que o assunto andasse rapidamente tinha que ir a fulano ou a beltrano ou a sicrano”. Era a demonstração clara e inequívoca de que não é 1%. A corrupção começa num favor e acaba num crime.
As pessoas têm uma grande complacência com o favor e uma total tolerância em relação ao crime. Tem que ver sobretudo com escala.
É. Acontece, porém, que é como a bola de neve. Começa muito pequenina, as pessoas não lhe dão importância – e depois podem ficar soterradas.
Na cultura dos países do norte [da Europa] considera-se que quem não paga impostos rouba. Rouba: não é o Estado, é a sociedade, é o seu próximo. É essa cultura calvinista que funciona? Respondo que é a questão do ovo e da galinha... Verdadeiramente, esses países, onde há uma maior consciência da defesa do interesse comum, e onde, quando se conhecem infracções ou irregularidades, elas são denunciadas, criaram condições favoráveis ao desenvolvimento desta mentalidade puritana.
Aqui, impera a permissividade.
Impera muitas vezes a permissividade.
Temos uma compreensão diferente das situações se estamos envolvidos, se são os nossos vizinhos ou primos que estão envolvidos. E existe uma demarcação nítida entre “os outros” (que cometem actos de corrupção) e “nós”. Nós, não.
Pois, nós não. Mas isso tem solução. Através de mecanismos preventivos.
Por exemplo.
Privilegiar as decisões colegiais. Garantir que alguém que tem relação com o público não se mantém muito tempo no mesmo lugar. Garantir a circulação – para evitar a simpatia. A simpatia é compreensível. Temos é que retirar a pessoa que tem contacto com o público da distinção [que faz] entre o amigo e o não-amigo.
Está a pensar em limites de mandatos?
Limites de mandatos. Circulação das responsabilidades. Colegialidade. Três soluções simples. Há pouco tempo ninguém punha regras em relação aos presentes.
Até que montante é razoável dar um presente?
O Conselho de Prevenção da Corrupção disse que o problema não é o montante. O problema fundamental é a sua eventual influência. Pode ter um valor mínimo e ser importante. Em regra: não há presentes. Lembranças: são de valores irrisórios.
Fizemos um caminho. A democracia fez um caminho positivo.
O Chico Esperto adorava fugir aos impostos e vangloriava-se disso. Ao mesmo tempo tinha uma atitude penalizadora em relação aos grandes empresários, ao grande capital e às infracções destes. Mas a situação mudou nos últimos dez, vinte anos. As pessoas que não pagam impostos deixaram de ser toleradas pela comunidade da mesma maneira. É esta a impressão que tem?
É. É o efeito positivo de uma abertura. As sociedades abertas são sempre melhores do que as sociedades fechadas. Sempre que fomos uma sociedade fechada, empobrecemos e [a situação] piorou. O cumprimento das obrigações cívicas é algo que tem a ver com todos. Se todos pagarem impostos, podemos ser mais justos na repartição. O Portugal moderno tem de ser, cada vez mais, cumpridor desses compromissos.
Sobre a corrupção: falou da simpatia. Gostaria de juntar o parentesco. É muito fácil desenhar uma teia: A é primo de B, que foi casado com C... Num país de dez milhões de habitantes, isto é inescapável.
O problema fundamental é o conflito de interesses. O sistema de prevenção é realizável, baseia-se numa definição de fronteiras relativamente aos conflitos de interesses.
Devia existir uma carta onde isso estivesse sistematizado?
Tenho muita desconfiança relativamente à multiplicação das leis. Sempre disse que ter muitas leis e muita complexidade favorece a corrupção. Tem que haver regras simples, claras, que os cidadãos compreendam.
A crise financeira em Portugal teve, para já, uma consequência: a economia não registada aumentou. Passámos de cerca de 20% para 26%. Noutros países europeus há uma situação semelhante. Ao reduzir a economia não registada aumentamos a tributação e criamos condições para uma maior justiça [social]. Fala-se de austeridade: eu insisto na palavra sobriedade. É uma palavra que nos leva a uma qualidade permanente.
Confiança e desconfiança são palavras fundamentais. O português é, de uma maneira geral, desconfiado em relação ao seu vizinho, ao Estado.
Esse individualismo é uma das nossas características. Tem sido referida por todos quantos olham a nossa realidade. António Sérgio, que era um grande cooperativista, queixava-se de que havia grandes resistências à cooperação.
Não sabemos se o outro nos vai roubar a ideia, o nosso pequeno pão.
É. Essa desconfiança é um dos nosso defeitos. Temos dificuldade em pôr em comum as iniciativas. A confiança e a coesão são os elementos essenciais para que a democracia funcione. A democracia é a aceitação da imperfeição. A diferença entre as ditaduras e as democracias é que as ditaduras aspiram a ter uma sociedade perfeita e a democracia reconhece a pessoa tal como é. E por isso consagra sistemas de equilíbrio de poder, de separação de poderes, de limitação dos mandatos. É o pior dos regimes à excepção de todos os outros, dizia o Churchill. Como responde a democracia aos desafios da desconfiança? Através da valorização da legitimidade do exercício. Cada vez mais.
Parece uma pescadinha de rabo na boca. Pretende-se a valorização do exercício de poder político e judicial (são os que mais estão em causa) numa altura em que a desvalorização é colossal. Como fazer, então, a valorização?
Há uma avaliação permanente. Que tem que ter regras. Freios e contrapesos.
Como é que eles estão a funcionar tão mal em Portugal? A percepção que existe é a de que esse equilíbrio de forças não está a acontecer. Em que direcção o sistema vai? Ele está de facto podre?, como muitos dizem. Como é que poderia funcionar melhor?
Não sou tão pessimista relativamente ao funcionamento da democracia em Portugal. O que digo é que não podemos instalar-nos nas fragilidades da própria democracia. A democracia, sendo o regime da imperfeição, é frágil. E a liberdade é frágil. Nunca adquirimos para todo o sempre a liberdade (basta ver a História). Tem de ser permanentemente preservada e conquistada. Sendo eu presidente de um tribunal superior (não posso esquecê-lo), penso que essa limitação dos poderes, a avaliação, por exemplo, ao modo como se gasta o dinheiro público tem funcionado. Há um reconhecimento internacional desse ponto. Agora isto obriga a um grande empenhamento e sobretudo a introduzir factores de mobilização das pessoas. E acção crítica. E instituições aptas a ouvir. E instituições aptas a responder.
Percebo que não tem o discurso apocalíptico que se ouve por estes dias. O de que estamos num fim de regime. Que é preciso fazer explodir e construir de novo. É o que acontece quando as pessoas sentem agonia e desconfiança em relação às instituições. A sua resposta passa por uma atitude crítica, que é a que permite perceber o peso de cada coisa.
Uma atitude crítica e uma compreensão da durabilidade das instituições. Há uma grande lição [a extrair dos] países do norte da Europa: as coisas não se resolvem através de dramas, alterações súbitas e radicais. Normalmente, essas têm consequências muito negativas. E não resolvem os problemas. Insisto na legitimidade do exercício. A legitimidade da origem é fundamental (o voto, a presença dos cidadãos). Depois temos de encontrar mecanismos que aliem a participação cívica, o sentido crítico e a avaliação rigorosa por instituições que nos digam que se utilizaram os meios, cumpriu-se ou não se cumpriu o objectivo [proposto]. Olhando os últimos 30 anos, há um estudo do Instituto Superior Técnico, que está publicado pelo Tribunal de Contas, que nos diz que temos derrapagens entre duas e sete vezes. Sete vezes. A nossa preocupação é tirar lições disto. Não é dizer que nada é possível.
Recusa o discurso que brama que isto é tudo uma grande bandalheira.
O discurso apocalíptico tende a criar bodes expiatórios. Não resolve nada – a não ser aquietar as consciências de alguns. Falávamos da corrupção e do entendimento de que isso não é uma questão minha, é uma questão dos outros: se digo que isto está tudo mal, fico com a consciência [descansada], mas nada fiz para ajudar a superar a situação.
Estou a pensar numa pessoa que mete uma cunha na câmara para que o licenciamento da casa ande mais depressa ou outra que recebe luvas por um grande empreendimento em Angola... Toda a corrupção é corrupção?
Toda a corrupção é corrupção. Ponto final.
Regressemos ao livro, para terminar. Usa uma expressão de que gosto muito: pasmar. Pensemos nas viagens, no caminho dos portugueses que foi seguindo mundo fora. O que é que lhe causou pasmo?
A capacidade que temos de ver coisas diferentes e novas. Esse olhar que não é distraído ou indiferente. Não ter medo do que é diferente.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014