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Anabela Mota Ribeiro

Guilherme d'Oliveira Martins

04.06.15

É um católico tranquilo. Uma pessoa que não precisou de se revoltar contra nada nem contra ninguém. Uma pessoa conciliadora, até nas opções: “Nunca fiz uma escolha excludente e esse é um dado que é importante no meu percurso. Às vezes olho para mim e digo que foi bom como que viver várias vidas”.

Ainda hoje parece viver várias vidas. Com quem estou a falar? Com o presidente do Tribunal de Constas?, como o presidente do Centro Nacional de Cultura?, com o ex-ministro de Guterres, o “discípulo” de Sousa Franco? Com um socialista que se tinha deslumbrado com Sá Carneiro? Com um homem de poder, que diz não ser, apesar do muito poder que tem?

Para começar, encontrámo-nos no Centro Nacional de Cultura, no Chiado. Estava assente que a entrevista não seria sobre a sua acção no Tribunal de Contas, nem sobre as notícias de todos os dias (sobre corrupção, coisas assim). Seria sobre ele. E posto isto, talvez o CNC fosse mais a sua casa.

Guilherme d’ Oliveira Martins é um homem culto, inteligente – epítetos consensuais. E surpreendente. Não é estranho ouvi-lo falar de Sophia ou Jorge de Sena, mas é improvável saber da sua paixão pela banda desenhada. É como, de repente, encontrar vestígios da criança que ele foi.

Talvez nesse tempo tenha sido menos arrumado, bem comportado. Mas o que hoje temos é um homem arrumado e bem comportado.

Nova suspeita de que há outro mundo nele: refazer em África o percurso de Bruce Chatwin. Oliveira Martins, em África, nos passos de Chatwin?

Depois há o de sempre: ter no nome Oliveira Martins e isso trazer, no código genético, uma forma de estar.

Nasceu em casa, em 1952. Tem menos de 60 anos, sim. Por ser muito sério, pode parecer mais velho. Mas depois há um vigor físico que faz perceber que é um homem jovem. Tanto quanto se pode ser jovem aos 58 anos.

Chega pontualmente, sai pontualmente. É disponível para as fotografias e para a entrevista. Como um profissional que sabe o que quer e o que esperam dele. Mas enquanto está, entrega-se ao que está a fazer. Senta-se no topo da mesa, com um caderno aberto, que nunca consulta e onde nunca toma notas. Olha nos olhos. Tem uma voz forte, o tom é constante, a colocação é algo gongórica. Mas a pose, não.

 

 

Estou a ver que escreve à mão. Através da caligrafia de uma pessoa podemos saber muito sobre ela, como diz o seu amigo, grafólogo, Alberto Vaz da Silva. O que é que a sua caligrafia diz de si?

Desde cedo comecei a escrever para jornais, e não havia computadores. Por causa do tempo e da urgência, escrevia à mão, e tinha de escrever de modo a que os tipógrafos compreendessem. Portanto, comecei por escrever numa letra bastante redonda e segura. Naturalmente não lhe vou dizer o que é que o meu querido amigo Alberto diz, mas ele acha que a minha letra é coerente com aquilo que sou.

 

Porque é que não pode dizer mais do que isso?

Há uma preocupação de ordem, de regularidade e de respeito. Tenho estes cadernos – este é o 56º volume. São sempre cheios. São óptimos instrumentos de trabalho. Escrevo de modo a poder compreender depois.

 

Para se poder compreender? Não só os outros, mas também o senhor?

Exacto. Escrevo um pouco de tudo. Notas de leitura, encontros, aquilo que é mais importante nesses encontros ou nas reuniões. Estes cadernos têm uma enorme vantagem, uma vez que estão numerados e têm datas. Guardo aqui o essencial, aquilo que preciso de recordar.

 

Funciona também como um diário?

Nunca tive um espaço diarístico, de me dirigir ao meu diário. No entanto reconstituí, em várias circunstâncias, referências a partir deste caderno. Há impressões e comentários que transcrevo para o caderno.

 

Vamos às características da sua caligrafia, à coerência em relação a quem é.  Porque é que é assim? Porque é que é essa pessoa com intenção de ser entendido pelos outros?

É difícil responder porquê. A minha formação influenciou-me muito. Em primeiro lugar a família e depois as escolas por onde andei. Sempre públicas. Fui aluno de uma escola pioneira em Campo de Ourique, a Escola nº 6, de que me orgulho.

 

Escolas públicas: por alguma razão especial?

Porque era o melhor ensino. O liceu Pedro Nunes foi, nos anos 60, e na história da educação em Portugal, um exemplo de experiência pedagógica. Tínhamos os melhores professores, o Rómulo de Carvalho, a Dra. Luísa Guerra.

 

Muito antes das escolas, vem o facto de ter nascido numa biblioteca. Queria que me contasse essa história. É como se o Oliveira Martins já estivesse imbricado desde o princípio.

Apesar de viverem nos arredores, os meus pais estavam em Lisboa quando nasci; por circunstâncias singulares, nasci no quarto que estava disponível: a biblioteca do meu avô. Que era professor de História. Vivi os meus primeiros anos muito em ligação com essa biblioteca. Quando comecei a ler embrenhei-me nos livros a que podia ter acesso (livros de ilustrações, de arte). O meu avô tinha uma grande colecção sobre os grandes museus do mundo. Para uma criança é um fascínio; uma criança visita esses quadros, essas referências.

 

Era como se ele lhe pegasse pela mão e lhe mostrasse esses quadros e esses percursos?

Era. Sobretudo porque depois me pegava literalmente pela mão e caminhávamos pela cidade de Lisboa. Era um olissipógrafo muito criterioso e conhecedor. Cada canto, cada circunstância, cada momento era uma oportunidade para falar da evolução histórica. Ao caminharmos na Mouraria, o meu avô explicava a Mouraria antes da reconquista de Lisboa, o pós-terramoto, os conventos. Fazíamos uma viagem efectiva, não virtual. E aprendi a olhar a cidade na sua relação com a natureza. Vivíamos em Campo de Ourique e começávamos por Monsanto, esse pulmão que tinha sido reflorestado recentemente. O meu avô era professor de História e Geografia e dizia-me que para entender a vida era necessário compreender os lugares e os mapas.

 

Como se fossem pessoas?

Com pessoas. Questão diferente era a relação com as casas. Todas as casas têm a sua alma, e cada casa tem também a marca das pessoas que aí estiveram. Sobretudo casas antigas onde viveram várias gerações. Hoje vivo naquela que foi a última casa desse meu avô, na Lapa. O Alberto Vaz da Silva, quando soube que ia mudar de casa, olhou para mim um bocadinho assustado, mas quando lhe disse que era a casa do meu avô, invocando essa ideia da alma e da vitalidade das casas, ficou mais descansado.

 

Foi pacífico voltar à última casa do seu avô? Os seus apelidos, a presença do seu avô foram asfixiantes? Teve necessidade de se demarcar dela e de conquistar o seu próprio espaço?

É verdade que existe sempre essa tensão na afirmação do espaço próprio. Ao longo da minha vida tenho procurado conquistá-lo. Nunca deixei de, através da investigação histórica, e através da reunião dos testemunhos daquela Geração de 70, que envolve o Antero de Quental, o Eça de Queirós, o Ramalho Ortigão, [manter uma ligação a esse grupo]. Tem sido uma experiência muito positiva, como um hobby. Não sou historiador. Gosto muito de História, por várias circunstâncias sou professor de História da Cultura Portuguesa, mas mais pelo que tenho feito em termos desse hobby.

 

O princípio desta conversa eram os livros de ilustração e as visitas virtuais aos museus, pela mão do seu avô.

Isto leva-me a um outro hobby que tem a ver com a ilustração, com o desenho e com a banda desenhada. Aqui está um espaço que me é muito próprio: como calcula a geração do meu avô via com desconfiança a banda desenhada... Não se estava no tempo em que a banda desenhada de qualidade, com bom sustento literário, pudesse existir. Mas existe, e o século XX foi a confirmação disso. O meu pai é um desenhador e incutiu-nos um grande gosto pelo desenho. Dediquei-me só à caricatura, nunca tive qualquer aprendizagem, trata-se de uma actividade despretensiosa.

 

[Mostrar-me-á, no final da entrevista, uma folha A4 com uma caricatura de pessoas que integram um grupo de trabalho. O traço é preciso, o retrato humorístico].

Quando falo da importância da banda desenhada, falo da necessidade de compreender a representação. Hoje em dia, nas mais modernas expressões da literatura, inclusivamente em Portugal, temos uma ligação cada vez maior entre a palavra e a imagem.

 

Dois heróis de banda desenhada.

O Tintim e Blake e Mortimer. Mais tarde o Corto Maltese, que chega a Portugal quando estou na universidade. Desde que tomei contacto com o Corto Maltese, tive uma grande ligação a essa personagem.

 

É o espírito de aventura que o faz ter uma ligação a estes personagens?

É. E no caso de Blake e Mortimer, essa curiosa ligação entre o imaginário e a ficção científica. A escola belga, dirigida por Hergé, e fortalecida por Edgar P. Jacobs, vai dar-nos essa extraordinária ideia da ligação entre a representação, a cor e o movimento. Em Portugal, a mais moderna banda desenhada é de grande qualidade.

 

Um herói de BD portuguesa de que goste.

Os autores de banda desenhada portuguesa dedicam-se a determinados temas e não têm heróis. A banda desenhada portuguesa tem raízes muito antigas que nos levam a grandes autores como Stuart ou Botelho; esses autores procuraram ter heróis, à semelhança do que acontecia internacionalmente.

 

Conhece Filipe Seems, o herói de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves? O mundo dele cruza a literatura de Borges com a imagem de “Blade Runner”, por exemplo. E passa-se em Lisboa. O senhor é um rapaz de Lisboa.

Conheço. É muito interessante.

 

Alguma vez quis ser, fora dos livros, um herói de BD? Alguma vez foi rebelde e quis viver uma vida aventurosa?

Uma das minhas características é ser profundamente realista. Gosto da aventura, indiscutivelmente. Por isso gosto das viagens. Todas as viagens que tenho organizado no Centro Nacional de Cultura envolvem um lado de aventura. Fomos a África na peugada do Bruce Chatwin. Fomos ao Benim, até à fronteira do Togo visitar uma tribo onde se praticava o vudu. No ano seguinte fomos ver como é que esse vudu se tinha repercutido no candomblé de Salvador; e fomos à casa branca onde Jorge Amado se iniciou. Fazemos viagens com os livros, lendo os livros.

 

Nem na adolescência foi rebelde? Queria saber do gérmen de inquietação, de curiosidade, de não resignação, que deve ter existido lá atrás.

Nunca fui um rebelde, até porque na família tive sempre um grande espaço de liberdade e compreensão. E na universidade, em 1969, o grande ano da crise académica da minha geração, a minha rebeldia era compreendida. Não precisei de me revoltar contra nada nem contra ninguém. Em 1968, recebemos no Pedro Nunes colegas que vinham de Paris, discutíamos com eles com toda a naturalidade. Nessa altura fui vítima do primeiro acto de censura.

 

Porquê?

Uma situação um bocadinho absurda. Era aluno do Padre Alberto, que era uma figura importante como exemplo, e na Páscoa lançámos uma iniciativa com diversos colóquios sobre a fome no mundo. Pediram-me para fazer um cartaz para anunciar a iniciativa e eu, suponho que de uma revista francesa, recortei uma imagem do Biafra, que estava na ordem do dia, e afixei-a no átrio do liceu. Fomos para as aulas e, para grande surpresa, quando regressámos o cartaz tinha desaparecido. Na casa da minha família havia um retrato de Antero de Quental, o que no século XIX era difícil, porque ele era um suicida e as pessoas procuravam não recordar essa circunstância. Eu tinha uma grande admiração por ele, mesmo sendo um suicida. Para alguém que vive num ambiente aberto, onde falávamos da liberdade, do socialismo, foi um choque [aquele acto de censura].

 

Como é que se explica a uma criança que alguém acaba com a sua vida? Tem memória disso?

Explicaram-me em virtude de haver uma doença, Antero de Quental era bipolar. Na minha família a explicação não era dramática, não era a de um julgamento negativo. Encontrei descendentes do próprio Antero de Quental que me diziam que na sua família não se falava [do assunto].

 

Sobretudo para os católicos, Antero tinha cometido um pecado contra o seu próprio corpo. Era esta a maior dificuldade?

A minha relação com o sagrado e com a vida religiosa foi sempre positivamente influenciada por pessoas com horizontes abertos, onde essa questão do pecado final de Antero nunca era colocada. Antero continuava a ser para nós aquele que Eça de Queirós tinha designado como Santo Antero.

 

Dante põe nos círculos do Inferno poetas que admira enormemente. E à porta do Purgatório, um suicida. É espantoso, atendendo ao período em que a “Divina Comédia” foi escrita e ao cristianismo do autor.

Na relação entre fé e razão houve sempre, nas pessoas que mais me influenciaram, uma preocupação de um equilíbrio entre os dois elementos.

 

E não uma prevalência da razão? Olhando para o seu avô pensaria que sim.

Significa valorizar a razão, mas compreender também os limites. Conheci pessoas muito inteligentes, (o mestre Sousa Franco foi das pessoas mais inteligentes que conheci); e os mais inteligentes são aqueles que compreendem os limites. Quem encara a razão como algo omnipotente, é alguém que não compreende a limitação própria daquilo que levava Carl Popper a dizer “nunca saberemos o suficiente para ser intolerantes”. Considero que a investigação e crítica científica são fundamentais e que a compreensão da História e dos tempos obriga a entendermos o papel da crítica, da ciência, do conhecimento. Mas simultaneamente o entendimento de que esse conhecimento envolve limites. Temos de funcionar como o atleta do salto em altura, temos de ir por fases, e ir sempre tentando saltar mais alto, conhecer mais.

 

Pode falar-me da sua relação com a fé e com a igreja? É uma coisa determinante na sua vida, na sua identidade?

É um elemento muito importante, porque relaciona os limites, a dúvida e o sentido. Através de grandes poetas que admiro, como Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, através da sensibilidade e da poesia, podemos aproximar-nos um bocadinho mais desses limites de que temos de ter consciência.

 

Como se fosse uma via, não de conhecimento, mas de acesso?

Sim, claramente. Ainda que na relação fé/razão concorde com o meu amigo Frei Bento Domingues, um dominicano e alguém que pode reler, à luz da modernidade, um autor como São Tomás de Aquino, que era muito preocupado com o elemento racional, com a demonstração. No entanto, é indispensável compreendermos que essa racionalidade obriga a entender aquilo que está para além dela, e aquilo que significa a incerteza.

 

A propósito de Sousa Franco, que referiu como sendo uma pessoa com grande importância na sua vida: a relação com ele teria sido a mesma se não fossem ambos católicos?

Certamente que sim. Encontrámo-nos em 1971, 1972, ele era meu professor. Foi uma relação antes de mais ligada às matérias que ele dava e que depois eu segui, porque fui seu assistente nas Finanças Públicas. Hoje, no Tribunal de Contas, estou num lugar onde ele também esteve.

 

Qual a história dessa relação?

No início houve uma relação de um grande professor que influenciava os seus alunos e que tinha uma presença e uma entrega efectivas. Fascinou-me a tal ponto que no campo científico, do Direito, segui as áreas que eram as áreas que ele cultivava. Com o tempo, aproximamo-nos mais.

 

Apesar do gap geracional?

Tinha mais 10 anos do que eu, mas era um jovem. Tivemos uma relação praticamente familiar, era padrinho da minha filha mais nova. As circunstâncias levaram a que os meus dois filhos mais velhos tenham sido, também, assistentes dele.

 

Um pouco consanguíneo, tudo isto.

Um bocadinho. A nossa relação pessoal foi influenciada pelos valores comuns que tínhamos, mas no início foi uma relação puramente académica.

 

Foi verdadeiramente um mestre para si?

Foi, indiscutivelmente. Há várias referências, em vários domínios na minha formação. Já há pouco falei da minha professora de Filosofia, que nos introduziu no Existencialismo; e a de um intelectual como o padre Manuel Antunes.

 

Tenho ideia que o professor Sousa Franco não era tão bem comportado como o senhor parece ser. Isso, para si, era uma coisa fascinante? Ter aquele brilho e aquela presença, e simultaneamente ser mais desalinhado.

Isso é um motivo de admiração. Esse lado também me fascinava nele. Tivemos sempre uma relação óptima e nunca nos zangámos.

 

Sempre foi bem comportado, mesmo em criança?

Fiz tropelias, como todas as crianças.

 

Disse que todos temos que nos demarcar em relação à família. Gostava de saber como é que traçou o seu percurso individual. Fale-me mais das angústias, das fracturas, das coisas que estão dentro de si e que o fizeram escolher esta opção e não aquela.

Fui sempre avesso a fazer escolhas prejudiciais. Por isso escolhi o Direito Económico, que não está no coração do Direito; está numa margem e numa relação interdisciplinar com outra área, a Economia. Por outro lado, desde cedo senti uma grande atracção pelo mundo da educação. Alfabetizei todos os meus filhos.

 

Porque é que decidiu fazê-lo?

Para fazer uma experiência, moldar crianças de cinco anos de idade, e ver quais as diferenças. Li as referências históricas da pedagogia. Vários colegas meus, designadamente pedagogos, viram com muita desconfiança essa minha audácia, disseram que isso era uma temeridade. E eu persisti, e com sucesso. Ainda hoje os meus filhos reconhecem que foi muito bom. Quando alguns colegas estavam nos primeiros passos da alfabetização, já eles seguiam noutro caminho.

Portanto, havia esta preocupação com a Educação. Depois, nunca deixei o campo da História, da investigação, da reunião dos documentos. Nunca fiz uma escolha excludente e esse é um dado que é importante no meu percurso. Às vezes olho para mim e digo que foi bom como que viver várias vidas.

 

É reconhecidamente uma pessoa muito inteligente. Não o imagino inseguro quanto a isso, com necessidade de se afirmar nesse domínio… Ou teve?

Todos temos necessidade de nos provar permanentemente. Provar, não as nossas qualidades, mas provar que podemos fazer. Não basta dizer que temos esta ou aquela qualidade. Nada do que é verdadeiramente importante pode ser fácil. Estamos no Centro Nacional de Cultura e à nossa frente está um quadro de Júlio Pomar. Pomar disse-me uma coisa que nunca esqueci: “Na minha produção artística recuso permanentemente a facilidade”. A exigência é muito importante. Temos de sentir dificuldade na afirmação da diferença.

 

Foi por causa dessa dificuldade que foi para a política? Porque tinha de ir a votos, merecer a aprovação do outro, dos seus pares políticos, dos seus eleitores?

Para ser franco, não. Gosto muito do fenómeno político, do envolvimento político. Não é tanto para provar que gosto da vida política, mas sim para confrontar as ideias e as realizações, o pensamento e a acção. Recuso a ideia de que há um fatalismo do atraso para Portugal. Muitas vezes, quando verifico a popularidade dos discursos negativos, pergunto-me como é que se resolve o problema. No caso português há um dado que é insofismável: durar nove séculos significa que há qualidades indiscutíveis para superar dificuldades. É preciso vermos que capacidades existem.

 

Porque é que se envolveu na política, de facto?

A ideia do meu envolvimento político tem a ver com a capacidade de demonstrar que é possível passar dos ideais à acção. Muitas vezes me têm perguntado o que é que considero melhor e pior na minha passagem pela Educação. O que teve resultado positivo foi a educação pré-escolar. Em 1995, quando o professor Marçal Grilo me convidou para ser Secretário de Estado, a educação pré-escolar era acção social, era guarda de meninos em creches, e hoje temos uma das mais altas taxas de frequência da educação pré-escolar da Europa.

 

É a sua marca, apesar de só ter estado dois anos na Educação?

Como Ministro, mas estive quatro anos como Secretário de Estado. Sim, é aquilo em que a equipa tem mais orgulho. Houve um pensamento, um programa, todos temos a nossa responsabilidade. Depois há a capacidade que o país, o sistema e as pessoas tiveram de pôr isso em prática. A frustração tem a ver com o ensino secundário, que é muito virado para o prosseguimento de estudos, e não é um ensino secundário moderno, capaz de valorizar a dimensão artística ou profissional. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a educação artística está na primeira linha de qualquer sistema educativo. A arte está no início. É pegando por aí que é possível compreender um processo de aprendizagem.

 

Em relação à sua passagem pelas Finanças, tem também um diagnóstico feito?

A minha passagem pelas Finanças foi relativamente rápida e em circunstâncias particularmente difíceis. Fui Ministro das Finanças porque era Ministro da Presidência e assumi uma responsabilidade política. É muito difícil haver uma marca. Olhando para trás há uma orientação de rigor e de disciplina que foi possível dar e de que me orgulho. A frustração é inerente às circunstâncias e à dificuldade das mesmas.

 

Foi chefe de gabinete do professor Sousa Franco em 1979. Foi a sua primeira ligação ao poder? Antes tinha um passado estudantil activista, e na Juventude Social Democrata.

Tinha estado no PSD e tinha trabalhado com o Francisco Sá Carneiro. Fui secretário-geral adjunto em 1975 e foi uma experiência particularmente importante. Trabalhei na área da juventude, mas também na formação política por esse país, de norte a sul, com o Pedro Roseta e o António Rebelo de Sousa. Dedicámo-nos à formação sobre a social-democracia. Interiorizámo-la de tal forma que, no meu caso, continuei como social-democrata no sentido próprio.

 

Fale mais dessa relação com Sá Carneiro.

Era uma personalidade muito interessante, alguém que corria contra o tempo. A minha ligação com ele começa na ruptura de Francisco Sá Carneiro na Assembleia Nacional e na Ala Liberal. Quer Sá Carneiro, quer Miller Guerra influenciaram muitos jovens que admiraram aquela coragem extraordinária de romper.

 

Viam neles a coragem de romper naquele segmento, naquele grupo. Que era diferente do grupo Soarista, outro grupo de resistência.

A oposição clássica tinha a nossa admiração.

 

Mas não era o seu grupo.

Ainda que tenha participado nos primórdios da SEDES. E tínhamos uma relação muito próxima com aquilo que em 1969 foi a CEUD, [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática], a candidatura promovida por Mário Soares. Onde esteve, por exemplo, António Alçada Baptista, um grande amigo e uma pessoa que me influenciou também, na experiência d’ O Tempo e o Modo. Francisco Sá Carneiro era uma personalidade muito impositiva. A minha relação com ele foi muito boa, tenho uma óptima recordação desse tempo.

 

Porquê a ruptura?

Ocorre em 1979. Por causa de um tema particularmente interessante para nós: a evolução da democracia e saber qual o caminho que se devia seguir. Se o de uma nova Constituição, porventura por via referendária, ou se devíamos cumprir escrupulosamente o que estava estabelecido na Constituição de 76 e nos dois pactos que foram celebrados entre o MFA e os partidos. O meu entendimento era o de que se devia cumprir, como se cumpriu, aquilo que a Constituição estabelecia: haver uma revisão constitucional, como viria a acontecer em 1982, e nessa revisão constitucional fazer-se a transição para um regime plenamente civil. Essa foi a razão da divergência. Que no entanto não afectou as relações pessoais. Entre a política e a vida pessoal deve haver sempre uma distinção clara.

 

Desejou ser político, ter uma carreira política? Pensou nisso como uma via possível onde tinha desejo de se afirmar? Ou queria ser um jurista e fazer a sua carreira no seio da universidade?

Entendi sempre que a vida política deve decorrer da responsabilidade cívica. Recusei uma carreira política porque entendo que a independência de quem está na vida política é muito importante. Recuso o discurso contra os políticos, mas entendo que os melhores políticos são os que têm vida própria e que podem dizer com independência aquilo que se lhes oferece dizer. A política profissional tem um terrível inconveniente: a dependência. Nunca me passou pela cabeça ter uma carreira política como profissional, por isso tive sempre a universidade e a carreira de jurisconsulto. Disse que continuava a ser um jurista no activo. É importante para o meu próprio equilíbrio.

 

Não quis pelo menos ser um homem de poder?

O poder atrai sempre muito.

 

O que é que atrai exactamente?

É a capacidade de influenciar e marcar a História. Mais do que a importância de uma lógica de poder, que não tenho, a minha atracção pela política passa pela ligação entre as ideias e a acção. Procurar que as ideias não fiquem apenas no domínio etéreo da sua formulação. Mas não me vejo como homem de poder.

 

Neste momento ocupa dois cargos de imenso poder. É presidente do Tribunal de Contas e presidente do Centro Nacional de Cultura. Como é que, mesmo assim, não consegue ver-se como um homem de poder?

Porque não.

 

Mas tem a noção de que tem muito poder? Depois, tudo depende do exercício desse poder.

Certamente que sim. Realisticamente temos que compreender a importância do poder e dos poderes. Quando Montesquieu formula a teoria da separação de poderes, que é uma pedra angular dos sistemas constitucionais modernos, diz: “Só o poder pode limitar o poder”. Temos de ter plena consciência disso, mas nunca considerar o poder como um fim em si mesmo. Isso é altamente corruptor.

 

Quando aceitou o cargo para a presidência do Tribunal de Contas, pensou em Sousa Franco?

Tinha que pensar.

 

Como se fosse uma espécie de tributo ao mestre.

Pensei em Sousa Franco e todos os dias, quando entro no meu gabinete, onde tenho a fotografia dele, me lembro de tudo o que me ensinou, do que falámos. Lembro-me da última conversa que tive com ele, foi no meio da campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Falámos longamente do Infante D. Pedro, que é uma figura maldita da História, uma vez que morre numa estúpida guerra civil em Alfarrobeira. A reflexão que fizemos, a propósito do poder, foi a dessa contradição que acontece muitas vezes com figuras marcantes. Às vezes, momentos fugazes do exercício da vida política podem ser mais influentes do que momentos mais longos. Tudo está nessa capacidade de transformar as ideias e os ideais em factos e em acção. Quando recordo Sousa Franco, recordo sempre o lado que ele tinha de influenciar o futuro através de determinados gestos, e simultaneamente esse elemento de permanência e persistência que leva a que as sociedades funcionem.

 

Quando tomou posse destes cargos de poder, e voltando à sua família, essa presença ainda se fazia sentir? Pensou se o avô teria orgulho em si?

Francamente, não. Não foi algo que me viesse logo ao pensamento. A memória das pessoas que me são queridas é recordada em momentos fundamentais, mas procuro que a minha reacção seja comedida e relativa.

 

A expressão “Vencidos da Vida” era própria da Geração de 70, a que pertenceu um seu tio-bisavô. Na sua vida, teve sempre a certeza de que não seria um vencido da vida?

Nos estudos que tenho feito, a expressão “Vencidos da Vida” é irónica. Ramalho Ortigão enquanto lia uma revista disse que havia um clube em Paris que se chamava “battus de la vie”. “Vencido”, aqui, não é derrotado. O professor Eduardo Lourenço salienta que a memória dos Vencidos da Vida não é uma memória de derrotismo, mas uma memória de um desafio em que temos de ser melhores. Eu concordo com ele. Ele usa uma expressão extraordinária: “Temos que nos ater à nossa maravilhosa imperfeição”. Temos de compreender essa imperfeição. Não há sociedades perfeitas – esse é o desafio.

 

Pergunto de outra maneira: o medo do falhanço perseguiu-o em algum momento?

Esse risco existe sempre para quem entende que a responsabilidade é um dado importante. Estamos sempre no fio da navalha. E na decisão política muitas vezes cai sobre os nossos ombros uma grande responsabilidade. Nesse aspecto nunca podemos ter a certeza de que vamos vencer. E ao não ter essa certeza, temos de trabalhar e exigir muito. O talento e a inteligência não bastam. É indispensável que através de uma grande persistência e trabalho possamos superar as dificuldades e os obstáculos.

 

Por fim, uma graça. Ainda fica furioso, ou não fica furioso, quando lhe falam do Mr. Bean?  Quando googlamos o seu nome, imediatamente aparece, também, uma fotografia do Mr. Bean.

Não fico furioso, como nunca fiquei furioso. Lido muito bem com essa situação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010